A vingança dos pais-fundadores


Os líderes europeus quiseram o Tratado de Lisboa ilegível, para o esconder do escrutínio pela opinião pública. Deliberadamente impróprio para leitura directa, declararam-no incompreensível para o cidadão comum e afastaram, com o argumento da complexidade, todos os referendos populares, incluindo os prometidos.

A razão para este ostensivo medo do povo era óbvia, embora ninguém o confessasse: o trauma dos salões face ao chumbo do Tratado Constitucional nos referendos em França e Holanda. Para que não se repetisse, decidiram não enfrentar o problema, nem digerir a questão, mas fugir pela porta dos fundos. Substituíram a democracia pela “demofobia”.

Só que havia um referendo incontornável: o irlandês. Toda a gente o sabia. E, aí, a estratégia de dissimulação e medo corria o sério risco de surtir o efeito exactamente contrário ao pretendido, como procurei prevenir nos múltiplos debates em que intervim sobre o Tratado de Lisboa. Foi o que aconteceu na Irlanda.

Uma estratégia e um discurso concebidos para afastar referendos favoreciam objectivamente que as coisas corressem mal naquele referendo que tinha mesmo que ser feito. O pequeno esquecimento era, aliás, uma temeridade leviana face ao anterior tropeço irlandês do Tratado de Nice. Quando muitos denunciam (muitas vezes, aliás, sem objectividade) que houve muita mistificação na Irlanda quanto ao real conteúdo e efeitos do Tratado de Lisboa, é bom que se penitenciem, pois a deliberada ilegibilidade favoreceu toda a sorte de manipulação e mistificação. Quando os mesmos criticam a elevada abstenção e a pouca mobilização do campo do “Sim”, é necessário que se acusem a si mesmos por terem escolhido um discurso europeu adverso à participação e mobilização dos cidadãos.

Um dos erros que apontei aos que afastaram o referendo esperado em Portugal foi o de que mostravam vistas curtas. O erro não foi só português; foi geral e pressionado pela Alemanha, França e Reino Unido. Mas não devia ter sido nosso. Se tivéssemos feito o nosso referendo logo em Fevereiro ou Março e o resultado fosse “Sim”, como era previsível, isso – além das vantagens do referendo europeu – teria quebrado o enguiço e contribuído para a mobilização e vitória do “Sim” na Irlanda. Ninguém pode obviamente garanti-lo. Mas essa é a minha convicção, como repito desde há meses. Para usar uma expressão de Adriano Moreira, a “democracia furtiva”, esta corre sempre o risco de acabar mal. Foi o que se viu.

Esta crise institucional é grave. Acontece numa altura especialmente difícil, em que a União Europeia – no arrasto da crise financeira, no rescaldo da subida dos preços alimentares e em plena crise dos combustíveis – devia exibir, diante de si e do mundo, mobilização, liderança e coesão. Infelizmente não é assim. Os responsáveis não são os irlandeses, nem os cidadãos em geral, olhados com desconfiança e distância. São os líderes que lideraram no caminho errado e escolheram a demofobia que deu nisto.

Se ainda estamos aqui, devemo-lo também a outras imprudências que vinham de trás, do controverso processo da Constituição Europeia, de que o Tratado de Lisboa é um derivado, e que já haviam gerado em 2005 outro impasse. Esses erros são todos filhos da mesma arrogância e resultam de querer substituir o método consagrado dos “pequenos passos” pelo do “Grande Salto em Frente”.

Muito do irrealismo do processo constitucional europeu iniciado na Convenção assentou na convicção de que, como alguns disseram, era tempo de romper com os “pequenos passos”. Fui dos que sempre o critiquei, lembrando frequentemente um trecho emblemático da Declaração Schuman que celebramos todos os 9 de Maio: “A Europa não se fará de um golpe, nem numa construção de conjunto: far-se-á por meio de realizações concretas que criem em primeiro lugar uma solidariedade de facto.”

Há líderes e centros de opinião, de interesses e de pressão, que querem reinventar a Europa e fazê-lo à força, se necessário, confiando mais nas suas ilusões e construções teóricas do que nos ensinamentos sábios da experiência prática. Chamo-os de “avancistas”, visionários que crêem ver para lá do horizonte, mas não olham ao terreno que pisam, nem medem o passo que segue. Esses são os grandes responsáveis por mais esta crise, assim como já da anterior.

Precisamos de importantes reformas urgentes, sobretudo no processo de decisão europeu e nalgumas competências comunitárias. Esse era o principal mérito do Tratado de Lisboa, tal como do falhado texto anterior. Tudo já podia – e devia – estar feito, se seguíssemos os pais-fundadores e o seu método rigoroso, calibrado, pontualizado, em lugar de enveredarmos por alamedas pomposas, carregadas de algumas extravagâncias e fantasias, evoluindo tristemente para uma crescente desconfiança (e medo) quanto à manifestação directa da vontade popular. É grave que a Europa esteja cativa desses líderes do erro, peritos em autismo e arrogância, chocante dificuldade em ouvir. Comentários ao referendo da Irlanda já o revelam: para eles, o erro não está nos seus erros; está no povo e nos cidadãos. Salvaguardadas as proporções, Robert Mugabe ou Hugo Chávez não diriam melhor.

As Comunidades Europeias são a mais espantosa e brilhante construção política das últimas décadas. A União Europeia também poderá sê-lo, se voltar à sabedoria da Declaração Schuman e escolher o compasso da cidadania. A História ensinou-nos e confirma que a grande passada está nos chamados “pequenos passos”. O “Grande Salto em Frente” ou dá desastre, ou nem sai dos blocos de partida.

O que se repetiu em Dublin, como antes em Paris e na Haia, foi um alerta, um ponto de ordem dos pais-fundadores. O futuro depende de os voltar a escutar e seguir.


José Ribeiro e Castro
ex-Presidente do CDS, eurodeputado

PÚBLICO, 9.Julho.2008



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