O eurolusocídio
Insisto há anos para conhecermos o valor económico da língua portuguesa. Vivemos tempos materialistas — vale pouco o que não pesa em percentagens do PIB. Às tantas, o governo pareceu agarrá-lo e desencadeou uns estudos. É o caminho certo e novas iniciativas vão-no levando mais fundo.
Agora, a contracorrente, o Governo acaba de dar uma dentada valente precisamente no valor económico da nossa língua: consumou-se a primeira etapa de um “lusocídio” — a exclusão do Português do regime europeu de patentes. O Parlamento Europeu não nos defendeu e o Governo entregou-nos, traiçoeiramente, no Conselho, pela calada da manhã.
O debate parlamentar foi elucidativo. O alemão Lehne, relator, mostrou ao que vêm os entusiastas do regime trilingue de Munique (inglês, francês e alemão): «Se algum Estado — ditou ele — se acha tão importante para querer a tradução das patentes na língua nacional, pague-a!»
Do alto da sua arrogância, nem se apercebeu que o mesmo pode dizer-se para a Alemanha, numa frase que é uma barbaridade para a construção europeia, seus princípios e valores. Mostra a nova ideologia trilingue, que pode vir a ter vastíssimas consequências. Mas nem isso impressiona o Governo português na sua deserção, nem os eurodeputados que se esquecem de defender o interesse nacional.
Este atentado a valores básicos da União Europeia vem convenientemente embrulhado em mistificações quanto aos «custos» a poupar, no meio de chavões sobre «competitividade», para impressionar quem quer ignorar a realidade. Em Estrasburgo, depois de loas à «competitividade europeia», a ministra Enikő Győri, pela presidência húngara, debitou o argumento conhecido: «Nos EUA, um inventor pode adquirir uma patente para todo o território pelo equivalente a 1850 euros. Na UE, o mesmo custa 20 000 euros para apenas 13 Estados.»
As coisas não são exactamente assim, mas deixemos os pormenores. Os espanhóis provaram, sem serem contraditados, que todos os custos registais não pesam mais de 1% a 2% dos gastos em I&D no desenvolvimento de qualquer patente. E, desde logo, se a Europa quisesse regime igual ao americano, optaria pela solução do «English only», que poderia ser aceitável e que a Comissão e o Conselho abandonaram, com a cumplicidade de Portugal. Por outro lado, falando de competitividade europeia, é evidente que ela já não é uniforme; e ficará pior se o mercado interno não proteger devidamente a igualdade e não-discriminação. Ora, com o regime de Munique nas patentes, os alemães ficarão ainda mais competitivos e nós, portugueses, ainda menos.
Se pensasse à comunitária, a Comissão deveria assumir para a UE a totalidade dos custos de tradução, como acontece em todos os domínios, em decorrência do multilinguismo dos Tratados.
Mas a mistificação é maior. O custo médio de traduzir uma patente para português é de 1000 a 1500 euros, o que não é exorbitante para o trabalho que remunera e a segurança jurídica que proporciona. Aliás, esses “custos” de tradução não são burocracia, mas economia — correspondem a um sector de actividade profissional, altamente qualificado, que irá para o desemprego. E esta actividade económica tem real utilidade cultural e social, proporcionando a rodagem e actualização permanente da nossa língua como língua de ciência e tecnologia. Para Portugal, este sector significa exportações de serviços de 30 a 40 milhões de euros anuais, correspondendo metade às traduções — com o regime de Munique, isto irá perder-se e, em parte, ser substituído por importação.
Mais sintomática é a distorção mental: alemães e Comissão clamam contra “custos” de tradução, mas nada se importam com os custos da burocracia. O Instituto Europeu de Patentes carrega seis mil funcionários e paga-se caro. Se uma tradução custa 1000 a 1500 euros, um pedido de patente europeia custa tipicamente, só em taxas administrativas, cerca de 4000 euros! Com mais alguns requintes: se o requerente se atrasa um dia, apanha uma penalidade de 50 por cento do valor em falta; além do pedido, tem de pagar mais cerca de 1000 euros das primeiras anuidades; há actos muito caros como, por exemplo, uma busca ou um exame (1800 euros cada) ou uma opinião técnica (mais de 3500 euros). E todas estas taxas para “mangas de alpaca” são principescamente actualizadas: subiram 5% em 2010, um ano em que a inflação na zona euro não chegou a 1%.
A garantia do Português é que incomoda, desprezando o facto de os “custos” corresponderem a economia, emprego, produção cultural, exportação de serviços. Mas o peso da burocracia de Munique, esse não tem importância nenhuma! Há melhor evidência da má-fé subjacente ao debate? E dos interesses reais que se jogam e impõem?
O Governo desrespeitou a Constituição e a lei de acompanhamento parlamentar. E, a nível europeu, pode arguir-se violação do Tratado de Lisboa. Por isso, a nossa esperança só pode ficar em os espanhóis honrarem a promessa e não darem tréguas no Tribunal de Justiça. Em Bruxelas e Estrasburgo, poucos são os portugueses em que podemos confiar nestas lutas.
O Governo traiu. O presidente da Comissão Europeia age, às vezes, como português não praticante. E, no Parlamento Europeu, o retrato foi este: a favor do interesse nacional, só CDS (Nuno Melo e Diogo Feio), PCP (Ilda Figueiredo e João Ferreira) e dois PSD (Carlos Coelho e Graça Carvalho); contra o interesse nacional, todo o PS e a maioria do PSD.
Foi assim o eurolusocídio.
José Ribeiro e Castro
Deputado do CDS-PP
Presidente da Comissão de Negócios Estrangeiros e Comunidades Portuguesas
Ex-líder do CDS
PÚBLICO, 21.Fevereiro.2011
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