O Português atropelado


Por estes dias, na União Europeia, está novamente lançado um camião TIR contra a Língua Portuguesa, os seus interesses e os nossos direitos. E, como é costume, parece andar quase tudo distraído enquanto, clandestinamente, no segredo de corredores europeus, se decidem irreversivelmente questões estratégicas para Portugal.

Tenho criticado o que chamo de “periferia mental”, um misto muito lusitano de fanfarronice e de complexo de inferioridade – a nossa maior pecha na construção europeia. É irmã siamesa da atracção nacional pela improvisação de “verdadeiro artista”, o gosto da última hora, a aversão por estratégia, planeamento, persistência. Motiva actuações tipicamente tardias, desinformadas e moles, com abdicação de nós mesmos perante a geral ignorância da opinião pública. Tudo nos vai acontecendo, sem que ninguém se dê bem conta disso, nem quando, como e porquê.

Este “dossier” a que, agora, me refiro reúne todos os ingredientes. A coisa tem, como é habitual, uma designação árida, hermética, tecnocrática: chama-se “Cooperação reforçada no domínio da criação da protecção de patente unitária”. E a coisa vai a debate, hoje à tarde, no Parlamento Europeu, com votação já amanhã.

Detrás da aridez, porém, jogam-se interesses simples e fundamentais da nossa língua no quadro europeu. Joga-se também um pouco da nossa economia e interesses absolutamente vitais de sectores profissionais. E joga-se ainda a legitimação, ou não, do assalto ao mecanismo das cooperações reforçadas para destruir processos estabelecidos de decisão comunitária e garantias fundamentais dos Tratados. Mas, apesar de estarem em causa valores tão importantes para o estatuto internacional do Português, para a nossa economia e para o “modus vivendi” europeu, nem sabemos, em geral, com excepção do CDS, o que pensam os nossos representantes europeus, nem tivemos a menor sombra de debate entre nós. Depois… será tarde. É o império da periferia mental e a sua terrível lei de bronze.

Tenho particular curiosidade em ver como actuarão os eurodeputados do PS, para ver se podem ser levadas a sério afirmações de fidelidade à Língua Portuguesa ou se também aí já venceu a rendição e a desistência.

Resumindo um complexo “dossier”, o que está em causa é a cavalgada de alguns para imporem no registo europeu de patentes um estatuto de privilégio para três únicas línguas (Inglês, Francês e Alemão) com desprezo de todas as outras vinte, incluindo o Português – que é, por sinal, a terceira língua europeia global. Em consequência, a obrigatoriedade de tradução das patentes em Português para valerem em Portugal será torpedeada, o que, além dos interesses profissionais e empresariais portugueses directamente atingidos, desqualifica a nossa língua como língua internacional, atinge gravemente o Português como língua de Ciência e Tecnologia e prejudica a segurança jurídica das patentes. Como justificação, usam-se os conhecidos chavões da “inovação e competitividade” e assusta-se os incautos com os estafados argumentos dos “custos” de tradução. Mas para tudo isto há, ponto por ponto, para quem quiser realmente informar-se, abundantes contra-argumentos, que explicam por que as organizações representativas do sector em Portugal, conhecedoras da economia real e, mais que isso, seus actores, estão tenazmente contra esse cenário, mau grado a surdez patológica de muitos dos nossos representantes e governantes. A verdade é que a nossa inovação não será servida, pelo contrário. A verdade é que a competitividade das empresas portuguesas será prejudicada. A verdade é que a questão dos “custos” é uma completa falácia, que levaria, aliás, à derrocada completa do edifício do multilinguismo em que assenta a União Europeia e começa por ser direito fundamental de cidadania.

O “dossier” é, para mais, o que podemos chamar uma golpada, numa matéria (o regime linguístico das patentes) em que o Santíssimo Tratado de Lisboa inscreveu a regra da unanimidade. A Comissão Europeia apresentou uma proposta de regulamento em 30 de Junho, que, pelo Tratado, deveria ter sido submetida a consulta do Parlamento Europeu. Passados poucos meses, o Conselho concluiu – aliás, bem, porque a proposta era má – que ela não obteria unanimidade. Mas não se chegou sequer “aos finalmente”, porque o Parlamento Europeu nem chegou a pronunciar-se – e, portanto, nunca o Conselho pôde ensaiar deliberar em sentido próprio. Então, em manobra concertada de antemão, doze Estados-membros precipitam o truque da “cooperação reforçada”, em marcha acelerada, nunca vista: a 10 de Dezembro, indicação no Conselho; a 14 de Dezembro, proposta formal da Comissão; a 15 de Dezembro, o Parlamento Europeu designa relator o Presidente da Comissão de Assuntos Jurídicos, um alemão; a galope, esta comissão despacha o assunto em 20 e 27 de Janeiro e o plenário deliberará hoje e amanhã. Enfim, a estocada final no Conselho está marcada para 10 de Março, consta que já com a cumplicidade do Governo português, que nos terá entregue em silêncio. Uma vergonha.

Se o Parlamento Europeu não nos salvar, teremos que aumentar a resistência e o protesto contra este TIR que nos atropela. Protesto contra a “Europa a retalho”. Protesto contra a manipulação da cooperação reforçada, abusada de modo precoce e impróprio. Protesto contra a fraude aos Tratados. Protesto contra a destruição de garantias inscritas no Tratado de Lisboa. Protesto contra o desrespeito dos interesses nacionais, tanto na economia, como na cultura. Protesto contra a discriminação linguística. Protesto contra o atropelo do estatuto internacional da nossa língua. Protesto contra o truque e a manobra.

É esta a Europa de que os cidadãos não gostam. É esta a Europa que não presta.


José Ribeiro e Castro
Deputado

PÚBLICO, 14.Fevereiro.2011

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