Salvação nacional. A palavra ao Presidente.
É difícil aceitar como chegámos aqui. Raramente se ouviu tantos a falar de “fim de regime”.
Na manhã de 11 de Março, Sócrates pôs o ministro das Finanças a anunciar o quarto PEC de uma série frenética em menos de um ano. Ao modo dos cognomes dos Reis, foi assim: em Abril, caído o pano sobre a grande encenação do Orçamento de Estado 2010, chegava o PEC I, “O Breve”, o tal que ia pôr tudo em boa ordem; em Maio, vinha já o PEC II, “O Mentiroso”, a mostrar que o anterior fora mentira, como ele seria também; no fim de Setembro, em cima do OE 2011, anunciou-se o PEC III, “O Depressor”, cujos efeitos recessivos o governo sempre teimou em negar; e, como a verdade tem muita força, aí está agora o PEC IV, “O Ruinoso”, consequência do anterior. Não será ainda o último; nem o penúltimo ou antepenúltimo, se isto não levar uma volta.
O governo perdeu a mão. O país está desgovernado. “Estabilidade” é ironia, graça pesada, humor negro.
Não era difícil prever. O plano inclinado estava à vista. Eu próprio, que não sou bruxo, fui dos que o previ. Com a fragilidade da situação política e a deterioração financeira do Estado e do país, iríamos de mal a pior. No 10 de Junho, o Presidente da República chegou a dizer: “Como avisei na altura devida, chegámos a uma situação insustentável” – e, todavia, a situação continuou a ser sustentada. Nunca percebi que não se forçasse a clarificação nesse primeiro semestre de 2010.
Pasma como, enfrentando Portugal uma crise financeira terrível, a mais severa desde há mais de um século, que pesa como fardo insuportável sobre a economia e praga negra sobre a vida e o futuro dos cidadãos, a política vai rolando em clima de campanha e pré-campanha eleitoral desde há três anos consecutivos.
O primeiro-ministro e o seu estilo “panglossiano” têm a principal responsabilidade: discurso de negação; incapacidade de assumir a má notícia; entre outros tiques da maioria absoluta de 2005, falta de vontade real para acordos duradouros. Mas a responsabilidade não é só sua.
Quando recordamos a campanha eleitoral de 2009 e o chorrilho de mentiras do governo e do PS, não custa entender que as pessoas desacreditem cada vez mais. Como esquecer a escandalosa ficção de sustentar até ao final do ano que o défice público não seria superior a 5,7% do PIB? E, depois do extraordinário aumento da função pública em ano de eleições, bastaria percorrer o programa eleitoral socialista para corar de vergonha – se a houvesse. Ele era TGV, novo aeroporto e terceira travessia do Tejo; ele era mais auto-estradas, SCUT velhas e novas, PPP em abundância; ele era prestações sociais em alta, RSI a rodos, novo cheque-bebé, etc. – cabazes de fartura para enganar eleitores. Quem pretende o ministro das Finanças enganar quando diz, agora, que “a oposição anda a enganar os portugueses” a respeito de “sacrifícios”?
Deixou-se Sócrates formar governo minoritário – ainda com esse programa extravagante! E, quando já era impossível esconder a gravidade da crise, com o défice exposto nos 9,4% do PIB e a crise grega a esgotar a paciência dos mercados e a aguçar a atenção também sobre Portugal, não se quis forçar uma coligação maioritária para a legislatura, nem precipitar eleições que clarificassem o quadro.
Havia uma reserva mental geral: eleições antecipadas, mas só em 2011, depois das presidenciais – como e para quê nunca entendi bem. Por que eram as eleições más em 2010 por causa da “crise” e serão boas em 2011 quando a crise é incomparavelmente pior? Por que era mau fazer eleições com os juros da dívida na casa dos 3% e será bom fazê-las quando vão perto dos 8% e a subir? Qual a lógica e o patriotismo disto?
A situação piora em todas as frentes: a recessão está aí, as falências sucedem-se, os desempregados estão acima dos seiscentos mil, as finanças públicas continuam em estado crítico apesar das doses de cavalo de agravamento tributário e de cortes a frio nos vencimentos e pensões de reforma. Foi preciso eu chegar aos 57 anos de idade para viver num país em que se corta o salário às pessoas. Foi preciso chegar este governo para termos desemprego acima de dois dígitos.
O PEC IV marca, ainda, o cúmulo do abandalhamento institucional. O primeiro-ministro já nem se preocupa em fingir: desrespeita o Presidente, ignora a Assembleia, as conversas com os partidos são fingimento, os parceiros sociais papel de cenário.
Anunciando o PEC a 11 de Março, o governo manteve a ficção de diálogo na Concertação Social com base num quadro que sabia ultrapassado. Reunindo com os partidos sobre a Cimeira extraordinária do Euro, sonegou-lhes o essencial da posição portuguesa. Tendo estado em peso na Assembleia a 10 de Março para a moção de censura, a todos escondeu o que já tinha decidido. E, cereja em cima do bolo, Sócrates decidiu nada dizer ao Presidente, violando frontalmente o dever constitucional, como denunciei logo nesse dia.
Gosto de ouvir as vibrantes tiradas de PS e Francisco Assis contra os que atacam o sistema parlamentar e os deputados. Mas o que pensa o PS que o país pensa quando é o seu líder e primeiro-ministro a tratar a Assembleia como um circo e os deputados como palhaços?
O governo responde perante Presidente e Assembleia da República (art.º 190º) e o primeiro-ministro perante o Presidente (art.º 191º, nº 1), tendo a específica competência de “informar o Presidente da República acerca dos assuntos respeitantes à condução da política interna e externa do país” (art.º 201º, nº 1, alínea c). Quando o primeiro-ministro vai a Bruxelas apresentar medidas tão gravosas, para visto da chanceler alemã e do Presidente francês, pode escondê-las do Presidente do seu próprio país?
Sócrates pôs-se a jeito para ser demitido, ao ofender o “regular funcionamento das instituições democráticas”. É a segunda vez. Da primeira, não foi demitido. E toda a gente acha que, desta vez, também não. Se for assim, acho mal.
Precisamos de actos e palavras que protejam a democracia, defendam Portugal, permitam que nos salvemos. Ao precipitar o choque neste momento, no fio da navalha, entre as cimeiras europeias de 11 e 24 de Março, Sócrates esticou de novo a corda: joga Portugal como aposta limite do seu póquer obsessivo. Lança-nos como ficha da sua política de casino.
A palavra é do Presidente da República. Só o Presidente, ouvindo os partidos e o Conselho de Estado, poderá estar em condições de poupar o país a que a crise estoire na semana pior – em cima de Cimeira europeia decisiva – e marcar a pauta para o rumo consistente que se seguirá.
Se Sócrates fosse demitido e houvesse espaço de patriotismo no PS, ainda poderia ser procurada uma solução de emergência, de salvação nacional, neste quadro parlamentar – ainda que a margem seja estreitíssima quer pela degradação do quadro político, quer pelo precedente criado por Jorge Sampaio. Se não, a não haver uma intervenção constitucional, patriótica, agregadora, de algum modo impulsionada pelo Presidente, a ruptura está aí e as eleições são inevitáveis.
E, tendo-se tornado inevitáveis, quanto mais cedo, melhor. É uma lástima como deixamos chegar as coisas até ao apodrecimento e do apodrecimento, à gangrena.
A saturação das pessoas com a política vem daí. Daí e de não se ver de onde desperte a esperança.
José Ribeiro e Castro
Deputado
JORNAL "I", 18.Março.2011
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