Clareza e prontidão. Responsabilidade.


Não tenho a certeza de, na classe política a que pertenço, toda a gente estar bem consciente da extrema gravidade da situação a que Portugal chegou. Não tenho a certeza de que lhe atribua a imperativa prioridade que a seriedade do caso exige. Quando os sinais de iminência de ruptura se sucedem dia após dia, quando os indicadores de prolongada recessão se acumulam, quando os cenários de aperto se acastelam, quando o horizonte de dificuldades nos cerca – só uma suave distância face à realidade permite compreender a aparente ligeireza que ainda se vê.

A situação reclama sentido de Estado, prioritário e imperativo. Exige clareza e prontidão. Capacidade de decisão é isso: decidir e agir depressa, quando a adversidade o exige. A hora em que estamos é uma hora dessas. E pelas vozes que ressoam pela Europa, oxalá não seja tarde.

É facto que vamos para eleições. E não pode negar-se ao próximo governo o direito de definir as políticas que escolha. Mas isso agora não tem importância nenhuma, ou melhor, tem-na num sentido completamente diferente do que me parece dominar alguns espíritos.

Ouvem-se declarações que dão a ideia de que A ou B só estariam dispostos a aceitar a herança a benefício de inventário. Não há disso em política. Quem mostrar receio ou dúvidas quanto às condições em que aceita receber o país pode, aliás, acabar por ser rejeitado. O eleitorado quer sentir confiança e coragem em quem se apresenta como alternativa. Se não, poderá ser tentado a manter os mesmos.

Já sabemos que a situação é muito má. Desconfiamos até que seja pior do que todos os dias se vai revelando. Mas não estamos em tempo de esquisitices e grandes exigências. É tempo de fechar o mais depressa possível o pacote de ajuda financeira e assumir colectivamente, sem tergiversações, perante parceiros da União Europeia e o FMI, os compromissos que são a contrapartida exigível e o início do saneamento financeiro. Por cada dia a mais que passar, a herança será muito pior.

O próximo governo só saberá o que encontra depois de lá estar. Nenhuma discussão nesta altura vai alterar o fundamental disso. Até porque essas discussões são inevitavelmente poluídas pelo debate eleitoral e não trazem nem rigor, nem saúde. Por outro lado, a troika que aí está – Comissão/BCE/FMI – é a maior interessada em não se enganar, pois vem justamente determinar as necessidades financeiras, as capacidades de pagamento, o montante e o calendário do empréstimo a fazer e o regime a seguir para garantirmos o reembolso.

A oposição pode – e deve – indicar o que preferirá fazer se ganhar as eleições. Com uma condicionante: se puder e quando puder. Os governos Sócrates gastaram, alienaram, destruíram a margem de manobra de Portugal – esse é um dos seus maiores passivos. E uma das principais tarefas do próximo governo é precisamente repô-la a pouco e pouco. O próximo governo pode preferir outro receituário e querer fazer diferente. Mas só mais tarde poderá defini-lo: quando, assumindo o poder, firmar o seu próprio diagnóstico; e quando puder oferecer aos credores alternativas sólidas, consistentes, aceitáveis. Agora, é só conversa – e a conversa só prejudica.

Se o próximo governo descortinar rapidamente áreas em que consiga aceleradamente mais emagrecimento do Estado e redução da despesa, poderá propor a revisão do plano aliviando a carga sobre a receita. Mas só nessa altura – não hoje! Se o próximo governo definir uma reengenharia do esforço do lado das receitas, que o torne mais justo no plano social e igualmente eficaz (ou mais eficaz) no plano financeiro, também o poderá propor. Mas só nessa altura – não hoje! Com uma certeza: os credores aceitarão, tendencialmente, tudo o que não prejudique os objectivos fixados e possa até facilitar o seu alcance. Mas desconfiarão e rejeitarão tudo o que soe a tergiversação, o que pareça tibieza, o que não revele suficiente energia, determinação, eficácia. Até por isso, convém não os inquietar desde já com ruídos fora de contexto.

Bem sei que o guião do PS é o de as novas medidas serem piores que o PEC 4, culpando a oposição pelo chumbo do PEC 4. Uma mentira, que tem de ser combatida por um contra-guião vigoroso. A primeira verdade é que o PEC 4 resultou unicamente da mentira do PEC 3 – confessar, como o governo explicou, que a justificação estava em ajustá-lo ao cenário macroeconómico de recessão, é a própria confissão da mentira do PEC 3, pois toda a gente disse, na altura, que este ia ser recessivo e o governo não estava a tê-lo em conta. E o PEC 3 fora já consequência da mentira do PEC 2, assim como o PEC 2 fora o efeito da mentira do PEC 1 – tudo em menos de um ano. E a outra verdade é a de que o PEC 4 já não chegava, nem chega, por três razões: primeiro, a recessão a estimar é ainda mais alta do que aquela que o governo Sócrates, a contra-gosto, admitiu (uma quebra de 0,9% do PIB); segundo, haverá que aplicar nos exercícios de 2011/13 as novas regras quanto aos prejuízos e à dívida do sector empresarial do Estado (nomeadamente, nos transportes) e que estar preparado, algures em 2012 ou 2013, para o resto da factura BPN; e, terceiro, quando o novo governo tomar posse, com meio ano andado, a execução orçamental poderá estar em parte comprometida.

Seja como for, não se combate o guião do PS, enredando-nos nele. Só se o combate de três maneiras: primeiro, contribuindo responsavelmente para virar, depressa, esta página da visita dos “inspectores do crédito externo”; segundo, repetindo à exaustão o contra-guião, com a vantagem de ser o verdadeiro; terceiro, mostrando prontidão e coragem para assumir Portugal, no estado em que estiver, esteja como estiver.

O que os portugueses querem como Alternativa é essa exacta coragem. Para poder mudar! Se não, não mudam. E é isso também que esperam os credores. Se quem nos visita e analisa, ou quem nos lê lá fora, conclui que “uns são aldrabões e outros não sabemos, mas já deu para ver que têm medo” – então é que Portugal irá conhecer dificuldades bem sérias e um quadro tão duro que nem conseguimos imaginar.

Já escrevi que o problema de disputar eleições no meio do incêndio é que sobra pouco para discutir além da porta por onde entram os bombeiros e se devem usar água ou neve carbónica. Nos últimos dias, tem-me espantado – e angustiado um pouco, devo admitir – ver actores principais, a começar no primeiro-ministro, que revelam grande destreza em exercícios de equilibrismo no arame, por cima de uma arena com chamas já intensas. Gabo-lhes o sangue-frio. Admiro os nervos de aço. Mas, em rigor, não estão a jogar o seu futuro, Estão a brincar com o nosso.

Virem a página! Com prontidão e patriotismo. Depressa. Só haverá debate eleitoral depois disso. E só haverá futuro novo com esse aperto superado.


José Ribeiro e Castro
Deputado

PÚBLICO, 16.Abril.2011

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