Europa: a carambola dos náufragos
Não há coisa mais irritante e impopular por estes dias do que as agências de notação – as famosas agências de rating. No nosso subconsciente colectivo e individual, não deve haver ninguém que não responsabilize essas agências pelo estado a que chegámos: quer como abençoadores da irresponsabilidade antes da crise, quer pela actuação posterior, antipática, oportunista e abrasiva, contra vários Estados. Mas, se nos fosse dado o poder de atribuirmos uma notação ao processo político europeu, que rating atribuiríamos? Seguramente alguns furos abaixo de lixo. É verdade: baixámos a lixo – nas finanças, na economia, na política.
Dá pena olhar a União Europeia por estes dias: é o boiar errante de 27 náufragos à deriva. Por muita que seja a pressão sobre a Grécia, ou a Irlanda, ou nós, ou Espanha, ou a Itália, ou França, ou outros, todos são náufragos de uma antiga nau que perdeu o rumo. A Alemanha é apenas o mais poderoso dos náufragos e a sua própria estabilidade é meramente aparente. A Holanda também e nem a Finlândia escapará.
Os resultados e o rescaldo das eleições em França e na Grécia apenas agravaram essa percepção evidente. Pensar-se-ia que as mais importantes destas eleições seriam as francesas, num país incontornável da construção europeia. Mas, em boa parte, foram-no as eleições gregas, pela cascata de incertezas e de perigos que confirmaram e acastelaram no horizonte próximo de todos. Um irmão que se afunda pode arrastar todos os outros num vórtice medonho. Esse é o espectro imediato de dúvida avassaladora que Atenas projecta. É possível um cordão sanitário? Ou teremos efeito dominó?
A crise já contaminou a democracia. E, feitas eleições em Maio, é por Junho que temos que esperar: em França, porque faltam as legislativas, carregadas de outras interrogações inquietantes; na Grécia, porque o retalho geral em que implodiu o sistema partidário bloqueou qualquer governo e força novas eleições. Depois, em Junho, logo veremos por que mais teremos que esperar…
A crise também contaminou todo o edifício europeu. A Grécia, enquanto chora, dá ideia de que se ri de quem se ri dela – e anseia sem dúvida por fazer chorar quem a despreza. A França, do garboso Hollande, que iria fazer frente à gélida Merkel, rumou rapidamente a Berlim, antes mesmo de olhar sequer para Bruxelas. Até um raio caiu no avião de Hollande, forçando-o brevemente a interromper a viagem, especulando-se sobre se terá sido De Gaulle, ele mesmo, a mandá-lo.
Os náufragos que são os 27 Estados-membros vagueiam às tabelas por carambolas ocasionais. É inevitável que se choquem neste boiar sem rumo certo, pura navegação à vista. Limitam-se a procurar evitar choques mais violentos que afundassem um só deles e, atrás deste, os demais. Não podem fazer muito mais que isso. A Grécia empurra a Irlanda, que empurra Portugal, que empurra Itália, que empurra a Espanha, que empurra a França, que... empurra quem? Todos se empurram e ninguém puxa por ninguém – essa também é parte do problema.
Nesta encruzilhada complexa que se aperta e adensa, onde mora o sonho europeu? Está morto. Ou só adormecido. Mas a Europa não terá solução, nem caminho, enquanto não o despertar outra vez – sobretudo depois de se ter deixado cair no pântano onde está atolada.
A 12 de Maio, participei como muitos outros, em Bruxelas, no “Juntos pela Europa”, uma iniciativa de diferentes movimentos cristãos que se celebrou simultaneamente em dezenas de cidades europeias.
Senti aí o antídoto certo para esta crise. Mas apenas vagamente, porque a Europa também abriu a crise da sua fé. Estava lá o Espírito, mas não o corpo da Europa. Era forte a força dos que participaram, mas foram poucos no meio da enorme multidão de náufragos, que continuam ou ansiosos, ou distraídos – em ambos os casos, perdidos.
Os cristãos podem ter, nesta crise, um papel importante; e têm seguramente essa responsabilidade. A palavra cristã sobre a Europa continuou sempre fiel, mesmo quando a Europa dela se apartou. E, apesar de muitas críticas justas e necessárias, fortes e vigorosas, contra fraquezas e erros crescentes do processo europeu – muitos conduziram-nos a esta crise –, não há nos textos oficiais da Igreja um só traço, uma sombra leve que fosse de eurocepticismo. Pelo contrário, somente palavras e incentivos de convocação ao futuro. Chamamentos. Para fora do naufrágio. De volta ao sonho europeu.
Os tempos, em França, na Grécia, em Portugal, na vizinha Espanha, por todo o lado, estão carregados de descrença. Não admira. E o único antídoto para a descrença é especialidade dos cristãos: a Esperança. Não chega – é verdade. Mas, sem ela… nada feito.
Apeteceu-me até brincar com a Oração de São Francisco, de que gosto muito, e improvisar umas linhas novas a preceito:
Onde houver descrença, que eu leve a Esperança.
Onde houver desânimo, que eu leve o ânimo.
Onde houver cizânia, que eu leve a união.
Onde houver desnorte, que eu leve o rumo.
Quis pensar também numa linha para as agências de rating e os mercados. Não consegui. Não creio que rezem, nem que queiram aprender. É outro o caminho por que temos de ir. O mesmo caminho e os mesmos passos que foram trilhados pelos três grandes fundadores: Adenauer, Schuman e De Gasperi – por sinal, todos cristãos. Não foi por acaso.
José Ribeiro e Castro
Deputado
Revista PASSOS, 17.Maio.2012
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