Honra e palavra; ética, princípios e país.


Nunca tive ocasião de ler nada sobre a muito estimulante questão que foi colocada: “Quais os limites ao dever de solidariedade entre membros de um governo de coligação?” E é ao correr da pena que, despretensiosamente, alinho algumas ideias que me ocorrem como contributo para organizar pensamento a respeito de um problema de grande actualidade na nossa vida política e de importância crucial nas sociedades democráticas contemporâneas onde se vai tornando cada vez mais rara a formação de governos maioritários de um só partido.

A pergunta supõe, desde logo, a existência desse dever de solidariedade. Já não é mau. E é um começo essencial: os membros de um governo de coligação estão vinculados reciprocamente a um mútuo dever de solidariedade. Parece óbvio. Mas, nas sociedades mediáticas contemporâneas, até o óbvio necessita de ser afirmado – e não só afirmado, carece de ser incessantemente recordado e repetido: existe o dever de solidariedade; e esse é dever é recíproco, por todos e cada um dos dias do governo de coligação.

Por outras palavras, a cada momento, as decisões políticas de cada um dos membros do governo de coligação e a forma de as pensar e actuar não é informada única e exclusivamente pelo interesse próprio, ou pela visão própria de cada um ou pela interpretação que cada um faria dos acordos de coligação, mas é temperada também pelo dever de solidariedade concreta entre parceiros. E isso aponta naturalmente para a necessidade de estarem devidamente oleados os mecanismos de consulta, de diálogo e de concertação permanente entre parceiros, começando pelos respectivos líderes. Nenhuma coligação funciona bem quando o clima de diálogo e entendimento entre líderes não é bom. Todas as coligações funcionam bem quando o clima de diálogo e entendimento entre líderes é bom e é sólido.

Regressando à questão dos limites, o quadro fundamental de referência é o que resulte dos próprios acordos de coligação, que podem ser mais ou menos detalhados, mas de que sempre se extrairá alguma coisa a esse respeito: ou bem naquilo que esteja expressamente determinado, ou bem naquilo que dele implicitamente se possa e deva extrair. Estes são os limites que resultam da palavra e da honra mútua dos contratos, numa formulação bem conhecida: pacta sunt servanda.

Este será, por assim dizer, o quadro dos limites contratuais: ninguém está obrigado a mais do que o acordo de coligação estipule ou do que deste se possa legitimamente extrair; e, na medida em que o dever de solidariedade é recíproco, como acima já referi, também resulta naturalmente do “contrato”, mesmo que ele nada diga, que uma parte pode alegar estar desobrigada do dever de solidariedade, se a outra parte, entretanto, incumpriu. Isto é, uma parte pode retaliar incumprimento. Não dá muita saúde a uma coligação entrar por aqui, é verdade; mas, às vezes, acontece e pode ser uma fase necessária até se regressar a novo patamar de estabilidade e respeito mútuo.

Há, porém, outros limites além dos limites meramente contratuais. Ocorrem-me sobretudo aqueles limites que resultem da ética, aqueles que se imponham por princípios de hierarquia superior – sejam princípios gerais, sejam princípios específicos de um parceiro de coligação e que o outro não possa desconhecer – e aqueles, ainda, que decorram do interesse nacional. E estas considerações para além do plano contratual valem em dois sentidos: valem no sentido de que o dever de solidariedade cede perante elas; e valem também no sentido de impor directamente o dever de solidariedade se a sua quebra ou ofensa estiver em causa.

Explico-me.

Em primeiro lugar, um parceiro de coligação não está obrigado ao dever de solidariedade que resultaria do “contrato” se a acção ou posição concreta que se tratasse de empreender ou de tomar infringisse um dever ético superior. Mas um parceiro de coligação, em contrapartida, está também obrigado ao dever de solidariedade, mesmo para além do “contrato”, quando ocorra que não empreender a acção ou não assumir a posição de que se trate resultasse na quebra de um dever ético superior. Atenda-se, por outro lado, a que o valor ético em causa pode ser um valor ético substancial – uma questão verdadeiramente fundamental – ou um valor ético meramente funcional – a decência do comportamento relacional. No primeiro caso, diremos que um parceiro pode opor uma objecção ética; no segundo, que ele é sujeito a uma obrigação ética.

Em segundo lugar, um parceiro de coligação também não está obrigado ao dever de solidariedade que resultaria do “contrato” se a acção ou posição concreta que se tratasse de empreender ou de tomar atentar contra princípios fundamentais – e, neste caso, quer se trate de princípios fundamentais de ordem geral, quer de princípios fundamentais do quadro axiológico, ideológico ou doutrinário próprio do parceiro que os invoca e que o outro parceiro não possa desconhecer. Mas um parceiro de coligação, em contrapartida, também está obrigado ao dever de solidariedade, ainda que para além do “contrato”, quando se verifique que não empreender a acção ou não assumir a posição de que se trate resultaria na quebra de determinados princípios fundamentais – neste caso, apenas quando se trate apenas de princípios fundamentais de ordem geral.[1] No primeiro caso, diremos que um parceiro pode opor uma objecção por observância de princípios fundamentais; no segundo, que ele é sujeito a uma obrigação de acatamento de princípios fundamentais.

Enfim, em terceiro lugar, um parceiro de coligação não está igualmente obrigado ao dever de solidariedade que resultaria do “contrato” se a acção ou posição concreta que se queira empreender ou tomar ofenda ou viole o interesse nacional. Mas um parceiro de coligação, em contrapartida, já estará também obrigado ao dever de solidariedade, mesmo para além do “contrato”, quando aconteça que não empreender a acção ou não assumir a posição de que se trate redundaria em atentado contra o interesse nacional. E cabe aqui também observar, à semelhança das considerações de ordem ética, que as questões de interesse nacional a levar em conta podem ser tanto de substância (questões de “sempre” ou “nunca”) como meramente de oportunidade (questões de “talvez”, mas “não nesta altura”). No primeiro caso de alegação do interesse nacional, diremos que um parceiro pode opor uma objecção de interesse nacional; no segundo, que ele está sujeito a uma obrigação de interesse nacional.

Uma outra ordem de considerações interessantes tem a ver não já com a exigência ou não exigência ou com o fundamento destas, mas tão só com o grau de exigência. Na verdade, quando pensamos no cumprimento ou no afastamento do dever de solidariedade, não é a mesma coisa pensarmos numa situação em que esteja em causa a própria continuidade ou ruptura do governo de coligação ou outras situações de importância mais ligeira: um simples comentário ou declaração lateral ou a mera sinalização de uma divergência sem relevância de maior. Para estes casos mais ligeiros, os limites do dever de solidariedade podem parecer e eventualmente considerar-se como mais ténues. Todavia, creio importante sublinhar dois aspectos: primeiro, mesmo nestes casos, não creio tratar-se de uma isenção do dever de solidariedade, mas mais apropriadamente de critérios mais flexíveis de “relevação de faltas” ou de um certo fechar de olhos; e, segundo, importa ter presente os efeitos sempre abrasivos de uma sinalização frequente das divergências, cuja acumulação sempre mina a credibilidade da coligação, desgasta a sua coesão, favorece a ocorrência de crises mais graves e pode provocar a sua ruptura e queda. Ou seja, o dever de solidariedade impõe-se sempre, excepto quando ultrapassados verdadeiramente os seus limites acima aludidos; as consequências da sua quebra é que podem ser mais ou menos relevantes, dependendo obviamente da conduta de que se trate, da sua densidade e dos seus efeitos políticos. Mas, ainda quando a falta seja ligeira, não se pode entender que aí não existem limites: por exemplo, não pode entender-se que não há limites à sinalização sistemática das divergências, desde que, formalmente, a estabilidade política nunca seja posta em causa, numa linha absurda de “estamos sistematicamente em desacordo, mas governamos em conjunto”. Além do dano que um tal quadro representaria para a credibilidade do sistema político e a consistência da acção governativa, é quase certo que uma dinâmica desse tipo evoluiria rapidamente para um quadro degradado de sistemático passa-culpas e, por conseguinte, para a ruptura e queda da coligação.

Por último, uma palavra breve para os membros independentes de um governo de coligação. Creio que o quadro de referência é fundamentalmente o mesmo, com as únicas adaptações decorrentes da própria individualidade de cada um dos independentes e de não serem parte do acordo de coligação. Desde logo, o facto de não serem parceiros não os exime dos deveres que resultam do acordo de coligação, em tudo o que não seja restrito ao quadro estritamente inter-partidário e suas relações. Isto é, estão igualmente sujeitos ao respectivo quadro contratual: devem tudo o que se contiver no “contrato”, não devem nada do que for para além do contrato. E, na mesma ordem de razão, seja para alegarem não dever fazer, seja para se lhes impor deverem fazer, os membros independentes estão igualmente sujeitos às considerações de ordem ética, de princípios fundamentais e de interesse nacional que acima deixei mencionadas.

Sintetizando, quais são, em meu entender, os limites ao dever de solidariedade entre membros de um governo de coligação? São de duas ordens: por um lado, de honra e palavra, os que decorrem, directa ou indirectamente, explícita ou implicitamente, do acordo de coligação; por outro lado, de ética, de princípios e por interesse nacional, os que se impõem por razões de uma ordem superior.


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[1] A tutela de princípios fundamentais do quadro axiológico, ideológico ou doutrinário próprio de um parceiro de coligação só pode ser feita, como é óbvio, pelo próprio parceiro que os invoque e não pelo outro parceiro que os quisesse impor.


José Ribeiro e Castro
Deputado, jurista

DIREITO & POLÍTICA, 17.Julho.2013

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