A trapalhada dos mandatos
Há responsáveis políticos pela incerteza que rodeia a candidatura de Fernando Seara à Câmara Municipal de Lisboa, bem como outras similares, e pelo folhetim político-judiciário que as tem perseguido.
Os primeiros responsáveis são os sectores do PSD portuense e a direcção do CDS, com sectores do CDS-PP portuense, que iniciaram, há mais de um ano, uma cruzada de dúvidas militantes sobre a lei vigente. E os segundos são as direcções nacionais do PSD e do CDS que, havendo dúvidas, nada fizeram para esclarecer sem margem para dúvidas o sentido da lei. Se acrescentarmos que também ficou pelo caminho a anunciada revisão da lei eleitoral autárquica, reunimos um vistoso pacote de fracasso político da coligação. Se recordarmos que, quanto a esta revisão, já havia um consenso fundamental PSD/CDS em Dezembro de 2004, o fracasso afigura-se ainda mais estrondoso nove anos depois. E, se, na questão específica da limitação de mandatos, tivermos presente a falta também da direcção do PS quanto à conveniente clarificação da lei, que foi de iniciativa do Governo PS (Sócrates), fica completo o quadro de irresponsabilidade geral do regime - um quadro de que já não é possível alguém conseguir escapar inteiramente ileso. Há porcarias assim.
Somos um país de pouca memória. As pessoas esquecem-se. Somos de pouca atenção. O cidadão comum não cuida da exactidão. E somos de pouco rigor. Abundam os que se fincam em opiniões definitivas sem estudarem sequer os assuntos. E, normalmente teimosos, nunca dão o braço a torcer, nem corrigem o erro. Ninguém se engana - só os outros.
Isso também aconteceu aqui. Haviam passado quase oito anos. E muita gente não se lembrava, outra não sabia sequer, o que tinha sido discutido e decidido em 2005. O clima estava aberto para um novo debate.
E, de facto, o que foi aberto foi um novo debate: não já sobre a limitação de mandatos, mas sobre se é ético ou não é ético, sobre se está certo ou está errado, que um presidente de câmara que já não pode concorrer mais no município a que presidiu se apresente noutro município e aí possa iniciar uma nova carreira. É legítimo, mas é outro debate. E, aqui também, as opiniões dividem-se: há quem ache mal; há quem não veja mal nisso; e há quem ache bem.
Só que a dúvida militante lançada sobre a lei infectou também este outro debate. Poderia ser que se considerasse não haver impedimento legal, mas como, com excepções, decidiu o PS, se entendesse não candidatar ninguém nessas condições. Mas não! O debate foi incendiado - como era, aliás, o propósito inicial: ilegitimar, intimidar e desqualificar quem se candidatasse nesse quadro. Sobretudo se fosse no Porto. Mas a Revolução Branca ampliou ainda a contestação. Foi isso que gerou o espectáculo político-judiciário deplorável a que temos assistido desde há meses.
A dúvida que foi aberta correspondeu a uma amnésia selectiva destinada a afectar a candidatura de Luís Filipe Meneses à Câmara Municipal do Porto.
Quem participou e acompanhou o processo legislativo da limitação de mandatos em 2005 não pode seriamente ter a mais pequena dúvida sobre o sentido da lei. Todavia, porque a lei não ficou com a redacção mais feliz, a dúvida era jogo possível ao aplicar a lei pela primeira vez oito anos depois. Num país de jogadores e de fraca memória, quis-se lançar a cruzada da dúvida, com um propósito: condicionar a decisão do PSD quanto ao Porto e bloquear, à cautela, a candidatura de Meneses.
Mas a dúvida, uma vez aberta, é geral e empestou o debate. Contaminou todo o processo e gerou um caos político-judiciário de que já ninguém se sairá bem: saem mal os deputados, que deviam ter esclarecido; saem mal as direcções partidárias, que deviam ter ordenado o esclarecimento; saem pior os que estão ora de um lado, ora de outro, como o CDS; saem mal (e atingidos) alguns candidatos tratados de "ilegítimos"; saem mal os tribunais que uns decidem num sentido, outros noutro. Sai mal a política que não presta, sai mal a justiça que não há. Sai mal a República, sai mal a democracia. Sai mal o Estado de direito. Se isto não é governar mal, o que é governar mal?
Fizeram-se correr rios de tinta sobre uma sofisticada dúvida cruciante que se inventou: o limite de mandatos é referido à "função" ou ao "território"? Mas isto, salvo o devido respeito, é juridicamente uma estupidez, pois, num presidente de câmara, não há separação possível entre função e território - a sua função é toda ela territorial. E, por conseguinte, o mandato também: é territorial. O mandato do presidente da Câmara de Óbidos não é o mandato do presidente da Câmara das Caldas da Rainha, como o de Fronteira não é o de Avis, nem o de Lagos o de Portimão. Esses mandatos não se podem somar, assim como não somamos peras e maçãs: são coisas diferentes.
A lei de limitação de mandatos só limita obviamente o mandato onde o cargo foi consecutivamente exercido e se esgotou o número de reeleições que o legislador permite.
Mas não é só por isso que a dúvida lançada não é pertinente. É que, quando um candidato muda de autarquia, cessa a ratio legis, porque o autarca não carrega consigo aqueles factores de condicionamento da escolha livre dos eleitores que o legislador quis apartar: o candidato não faz inaugurações noutra terra, não prepondera no emprego noutro local, não condiciona a vida associativa a partir do poder. Claro que pode ter mais notoriedade; mas isso também o Cristiano Ronaldo e não é por causa disso que o impedimos de ser candidato.
Aliás, diversamente do que por aí se ouve com leviandade, a lei mostra absoluta eficácia na eliminação dos "dinossauros" como era seu propósito. Dos quase 200 que existiam no mandato 2009/13, não mais de 15 presidentes tentarão nova eleição noutro local. E, destes 15, se metade vencer e começar nova contagem, será muito. Se isto não é renovação, hão-de-me explicar o que é renovação.
José Ribeiro e Castro
Deputado
PÚBLICO, 8.Agosto.2013
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