A verdadeira história da lei de limitação de mandatos


A lei de limitação de mandatos de 2005 visou impedir a eternização no lugar dos presidentes de Câmara Municipal – o que, a meu ver mal, se alargou também aos presidentes de Junta de Freguesia. Porquê? Porque esse era o problema que existia; e o problema, portanto, que importava resolver.

Podia ter sido outro o problema, por exemplo o de impedir que os presidentes de Câmara pudessem saltitar de município em município. Mas não foi. Porquê? Porque esse problema não existia. E porque, nos poucos casos em que esse facto ocorreu, nunca merecera reprovação, nem, menos ainda, suscitara a necessidade de remédios legais que o proibissem.


O
princípio constitucional é o da renovação (art.º 118º). E a renovação faz-se pelas próprias eleições: no fim do mandato, os titulares depõem os seus lugares; e, recandidatando-se, são os eleitores que decidem se querem reelegê-los ou não. Porém, casos há em que o poder e a preponderância do titular é tal que a eleição não chega – é preciso que a lei force a renovação.

A experiência internacional mostra o problema em cargos executivos personalizados, de que os exemplos típicos são os Presidentes da República e os presidentes de municípios ou, onde existam, governadores regionais ou provinciais eleitos directamente. Pensemos nos presidentes de Câmara: um município tem um poder local tão forte, gerando directa e indirectamente emprego (serviços municipais, bombeiros, misericórdias, instituições sociais, etc.), podendo multiplicar feitos e inaugurações em cima da campanha eleitoral e preponderando de tal forma na vida local (clubes, sociedades recreativas, agremiações diversas, pólos culturais, rádios e jornais locais, etc.), que a reeleição do presidente está largamente garantida. E havia, de facto, duas centenas de “dinossauros” que se eternizavam desde há décadas, alguns desde 1976 e um de antes.

A Lei n.º 46/2005, de 29 de Agosto, foi feita para pôr cobro a isto – e apenas a isto. Toda a gente o sabe.



Para a lei ter o significado que a leitura mais radical e restritiva pretende, não seria uma lei de limitação de mandatos, mas uma lei de inelegibilidades. Se quisesse impedir que quem tenha sido presidente de Câmara em doze anos continuados (até em municípios diferentes) não pudesse ser candidato uma quarta vez em qualquer município, a lei declararia inelegível uma quarta vez quem das três vezes anteriores já tivesse exercido o cargo. Ora, não é isso que a lei faz.

A lei escolheu a técnica da limitação de mandatos porque tinha o exacto propósito da limitação de mandatos em sentido próprio: quis limitar a três o número de mandatos consecutivos no mesmo lugar e impedir a reeleição consecutiva para além disso.

Por sinal, o Bloco de Esquerda pretendeu exactamente a outra regra. E nessa medida é que eu digo que, se a seriedade se servisse à meia-dose, a contestação que o BE mantém é a única que é “meio séria”: o BE sempre defendeu essa ideia – que, porém, não fez vencimento.

O projecto do Bloco dizia claramente: “não são elegíveis durante um quadriénio” – ou seja, estabelecia uma inelegibilidade geral, que seria também inelegibilidade para vereador e decorreria de apenas dois períodos de exercício (oito anos). Mas, pormenor fundamental e decisivo, o projecto do Bloco foi rejeitado! E o processo legislativo seguiu somente com base na proposta de lei, que tinha a outra linha: pura limitação de mandatos, proibição de reeleição.



Para entender o processo legislativo, é preciso ter presente que o PS – então com maioria absoluta – decidiu poluir o debate parlamentar com a introdução em simultâneo de uma limitação de mandatos dos presidentes de Governos Regionais e, em paralelo, do primeiro-ministro. Foi por isso que, vindo da legislatura de 2002/05 (em que ocorreu a revisão constitucional que o permitiu) um certo consenso para limitar a três os mandatos autárquicos, o debate se entornou outra vez entre PS e PSD numa lei que teria que ser aprovada por maioria de dois terços: o PSD só aceitava a limitação dos mandatos autárquicos.

É esse contexto que explica que, na generalidade, a proposta de lei só recebesse os votos favoráveis de PS e BE, com votos contra de PSD e PCP, abstendo-se CDS e PEV. E, na votação final global, a proposta de lei teve de ser desbobrada em dois textos de substituição materialmente distintos, de que um foi aprovado com a maioria de dois terços (os mandatos autárquicos) e outro não (os outros cargos). Foi também esse quadro de semi-conflito e de necessidade de desagregação do texto legislativo inicial que gerou mudanças de redacção, ficando o texto final menos claro, mas ainda assim bem inteligível.

A lei fala em “três mandatos consecutivos” e tanto aquilo que é um mandato autárquico (uma função estritamente territorial), como o conceito de consecutividade evidenciam não haver o menor impedimento legal a que um presidente de Câmara se candidate noutro local, buscando não já uma reeleição, mas uma primeira eleição: não é o mesmo mandato, nem é facto consecutivo – não é “sucessivo”, “seguido”, “ininterrupto”, “contínuo”, “continuado”.

Por estas e outras mais é que formei a ideia de que quem participou ou acompanhou o processo legislativo de 2005 só por má-fé, por crónica distracção, por interesse político enviesado, por calculismo partidocrático ou por um ataque fulminante de Alzheimer pode fingir que não sabe e colaborar na cruzada militante de dúvida que por aí foi armada.


José Ribeiro e Castro
Deputado

PÚBLICO, 14.Agosto.2013

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