Limitação de mandatos – factos e populismo


Um dano já inapagável nesta querela da limitação de mandatos, que inicialmente prejudicou com inusitada rispidez a candidatura de Fernando Seara – e afecta também outros candidatos do PSD, da CDU, de coligações PSD/CDS e do PS – é não só o desgaste adicional suportado por alguns, mas o desprestígio efectivamente acumulado por todos.

A mossa não vai desaparecer. Mas a incerteza terminará em breve. Falta pouco. E muito me surpreenderá que, quando o Tribunal Constitucional houver de decidir, a final, a questão de fundo, não prevaleça o único sentido com que a lei foi discutida e aprovada: há impedimento a que o presidente se recandidate, não há impedimento a que concorra noutro município.

Porém, nunca fiando. Nunca tinha visto um porco andar de bicicleta - ultimamente, porém, isso acontece com invulgar frequência.

Pelo que conheço da lei e acompanhei do processo não tenho a mais pequena dúvida sobre o significado e o alcance da lei de limitação de mandatos que a Assembleia da República discutiu e aprovou entre Maio e Julho de 2005: um presidente de Câmara não pode ser reeleito para um quarto mandato consecutivo, mas nada impede que se candidate noutro local qualquer. No primeiro caso, é a lei que decide; no segundo, são só os cidadãos a decidirem democraticamente.

Creio, aliás, que, se o impedimento mais apertado que alguns pretendem existisse na lei, seria inconstitucional – pois consistiria, sem válida ratio legis, na limitação desproporcionada da capacidade eleitoral passiva de um cidadão, com violação também do princípio da igualdade.


O
processo legislativo que ocorreu está carregado de elementos para refrescar a memória de quem se tenha esquecido e para clarificar o entendimento de quem tenha dúvidas. Vejamos apenas as curiosidades mais significativas.

Por exemplo, o CDS. O CDS absteve-se. E só não votou a favor da lei, por não concordar com a limitação de mandatos que era estendida nos mesmos termos às freguesias. Eu era Presidente do CDS na altura, fui informado dos antecedentes e definiu-se orientação. Exprimi reservas apenas quanto aos presidentes de Juntas. O grupo parlamentar concordou e é isso que consta das intervenções, incluindo declarações de voto. Mas a intervenção principal no plenário ilustra bem a posição estável do CDS, que vinha, aliás, da direcção anterior do partido, que também integrei.

Disse, no debate, o deputado do CDS: «Portanto, estamos de acordo com a limitação de mandatos para as autarquias locais [com excepção das freguesias, como assinalava a seguir], fundamentalmente porque entendemos que o primeiro mandato é, sobretudo, de planeamento de uma obra, o segundo, se o povo assim entender, de execução da obra e o terceiro de gestão dessa obra, enquanto o quarto mandato poderá ser considerado uma gestão demasiado prolongada dessa mesma obra.» Este, aliás, era um estribilho – e bem – na intervenção do CDS: 1º mandato, planear; 2º mandato, executar; 3º mandato, concluir. Quem pode duvidar de que se estava a falar sempre e só do mesmo município?

Há uma ainda mais elucidativa intervenção do PCP, que foi sempre contra a limitação legislativa dos mandatos. Às tantas, criticando a proposta de lei, disse expressamente o deputado do PCP: «Aliás, a limitação de mandatos dos órgãos executivos num determinado município em nada impede que estes venham a assumir tal responsabilidade no município vizinho.» E ninguém o contraditou! Nem podia contraditar, porque era exactamente isso que estava a ser discutido e viria a ser decidido.


A
falta de rigor com que esta matéria tem sido apreciada é bem ilustrada na decisão do tribunal de 1ª instância que, em Lisboa, ainda na fase “Revolução Branca”, tomou a primeira decisão contra Fernando Seara. A decisão da Meritíssima Juíza do 1º Juízo Cível foi trabalhosa, mas tem uma falha elementar: no seu afã de coleccionar argumentos contra a candidatura, menciona em apoio dessa tese o preâmbulo da proposta de lei que tudo originou. Mas, ó tropeço dos tropeços, o texto legislativo da proposta de lei era, ele, absolutamente inequívoco, pois usava o verbo “reeleger”: “o presidente da câmara municipal e o presidente da junta de freguesia não podem ser reeleitos para um quarto mandato consecutivo” – reeleger, como é óbvio, refere-se exactamente à mesma função no mesmo local. E, portanto, se o texto normativo dizia isto, o preâmbulo só pode significar o inverso do que a Meritíssima Juíza entendeu; e a decisão devia ter sido logo precisamente ao contrário.

A direcção política do CDS, por seu turno, parece ter preferido uma linha de rigor científico. É a interpretação da lei com GPS: no Porto, a lei vale de uma maneira; já em Lisboa, vale de outra, que, por sinal, também se aplica a Aveiro e à Guarda. A lei varia com o paralelo e o meridiano.

Nem se pense que esta novíssima escola jus-geográfica ou geo-jurídica adoptada pelo CDS é estapafúrdia. A jurisprudência nacional segue-a com a mesma desenvoltura, não cessando de aplicar decisões diferentes em Lisboa, Porto, Aveiro, Évora, Guarda, Beja, Loures, Tavira, Alcácer do Sal, etc. É cada terra com seu uso…

Houve ainda aquele episódio dos “de” e “da” por que ficámos a saber como, de modo caricato, a Imprensa Nacional/Casa da Moeda se auto-investiu de poderes legislativos. Só por cá!... Esses “de” e “da” são, a meu ver, irrelevantes para a decisão do caso; mas, se fossem relevantes, o texto não poderia deixar de interpretar-se, como é óbvio, tal como foi efectivamente votado e publicado pela Assembleia da República (Decreto n.º 15/X).

É por tudo isto que já ninguém sai bem deste novelo. E há responsáveis políticos por terem sido lançadas mais pazadas de lama em cima da classe política, agravando o seu desprestígio – e também dos tribunais. O caldo populista alimentou-se mais um pouco. Foi jogo perigoso. Muito censurável.


José Ribeiro e Castro
Deputado

PÚBLICO, 20.Agosto.2013

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