A democracia "ketchup"


O Manifesto Por Uma Democracia de Qualidade não teria préstimo de qualquer espécie se vivêssemos num regime de democracia representativa. Mas não vivemos. A democracia representativa atingiu um estádio de fraude generalizada. Vivemos mergulhados num teatrinho: a democracia só é representativa no sentido de representação teatral – a representação política esvaiu-se e perdeu por inteiro sentido e autenticidade. 

Num quadro europeu, integrado, de ambiente democrático, quem se sente representado nas decisões que são tomadas? Quem crê ter contribuído para essas decisões europeias, que preponderam cada vez mais nas nossas vidas e que apenas nos são comunicadas? A nível nacional, quem sente que as decisões governamentais ou parlamentares ecoam debates sociais em que tenhamos tido palavra e gesto? Salvo um ou outro voto divergente, qual é o deputado que, com verdade, pode dizer que realmente fez parte? Quem, não sendo chefe, pode dizer que teve voz? Onde estão as reuniões dos grupos parlamentares onde, lei a lei, decisão relevante a decisão relevante, uma vontade colectiva se tivesse verdadeiramente formado? Quem, além de ninguém, pode dizer que participou? Nos partidos europeus, integrados, onde estão os maiores partidos nacionais, quem pode dizer que contribuiu? Onde está o debate, que viesse da base? Onde sobra o sentido de efectivamente se pertencer, ser-se parte do conjunto europeu? E, nos partidos políticos nacionais, chave da democracia, quem participa, quem debate, quem decide? Quais são os órgãos que efectivamente funcionam? Onde é que há debate prévio, orgânico, aberto e informado? Onde são tomadas as decisões que nos governam? 

O regime está capturado. Tornou-se processional. Se a vontade colectiva não se forma como deveria formar-se, se os órgãos de representação não funcionam correctamente, se a escala da representação foi invertida, onde são tomadas as decisões? Nos centros de interesse. Decidem, influenciam, comandam: comunicam com selectos nós de poder, que irradiam o facto consumado de cima para baixo. Assim estamos. 

O regime é top-down como as embalagens de ketchup nas mesas dos fast food. O regime é comida rápida de cima para baixo. Impera a consumadocracia: quando podemos discutir, é normalmente perante o facto consumado. Não contribuímos para as decisões a tomar; alinhamos ou desalinhamos perante decisões já tomadas. Nos vários patamares da representação política, nos diferentes degraus de construção da vontade colectiva, a participação foi sendo furtada. O regime é uma matrioska decorativa: bonitinha, mas vazia. 

O modelo ketchup contaminou, aliás, toda a vida colectiva. As histórias recentes do BES e da PT mostram como a completa quebra de institucionalidade viciou a vida empresarial, que se recheou de gente a assinar de cruz, administradores que se confessam verbos de encher. O regime é ketchup e nós pagamos o preço. A comida rápida sai cara – porque, é sabido, os centros de interesse são gananciosos. 

Às vezes, perante tanto disparate acumulado, ouve-se perguntar: como foi possível termos decidido estas loucuras? É que, na verdade, não decidimos quase nada. Ninguém verdadeiramente nos perguntou; e quase nada realmente pudemos deliberar. Quando muito, consentimos. Ora, hoje, a questão urgente é essa: deixarmos de consentir. 

É urgente devolver cidadania aos deputados, dar-lhes senhorio, escolhê-los directamente, vesti-los de responsabilidade, apetrechá-los para serem exigentes. Só deputados cidadãos, em vez de caudatários, podem representar a cidadania. 

Cresceu o sentimento de crise da democracia. Nem é bem verdade: o que está em crise é a farsa em que a transformámos. Pondo termo à farsa, a democracia salva-se. 


José Ribeiro e Castro
Deputado, ex-líder do CDS

JORNAL "I", 24.Dezembro.2014


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