O seu voto conta - os falsos argumentos contra os uninominais
O artigo 149º, n.º 1 da nossa Constituição permite, desde 1997, a introdução de círculos uninominais no nosso sistema eleitoral para a Assembleia da República. Mas fá-lo num quadro preciso. Ora, leia:
«Os Deputados são eleitos por círculos eleitorais geograficamente definidos na lei, a qual pode determinar a existência de círculos plurinominais e uninominais, bem como a respectiva natureza e complementaridade, por forma a assegurar o sistema de representação proporcional e o método da média mais alta de Hondt na conversão dos votos em número de mandatos.»
Para quem não esteja familiarizado com estas tecnicidades dos sistemas eleitorais, esclareço que se designa "círculo uninominal" aquele que elege um só deputado (um nome), por oposição aos "círculos plurinominais", que elegem vários deputados (muitos nomes) normalmente por listas partidárias. No primeiro caso, é eleito para representar o círculo um só candidato: aquele que obtenha maioria, havendo sistemas em que basta a maioria simples e outros em que se exige maioria absoluta com recurso a uma segunda volta entre os mais votados. No segundo caso, são eleitos para representar o círculo vários candidatos, normalmente por repartição e ordenação proporcional das listas, como é o caso em Portugal. Como é óbvio, os círculos uninominais são sempre mais pequenos que os plurinominais, isto é, representam a população de circunscrições territoriais mais pequenas.
O Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE, de que sou um dos promotores, tomou posição no sentido da introdução da possibilidade aberta pela Constituição (existência em simultâneo de círculos plurinominais e uninominais), entre as possíveis alternativas apresentadas para corrigir os vícios actuais das nossas eleições e do funcionamento dos partidos.
Logo surgiram críticas aos "uninominais" com base em preconceitos ligeiros. Foi o caso, nomeadamente, do artigo de Rui Sá (PCP), no JN, em 15.9.2014 - Ganhar na secretaria - e do texto de Francisco Louçã (BE) no PÚBLICO, em 4.9.2014 - O nosso deputado pessoal.
Diz o primeiro: «Suponhamos que o círculo uninominal era a cidade do Porto e que os candidatos apresentados pelas diferentes forças políticas eram aqueles que foram apresentados para a presidência da respectiva Câmara Municipal em 2013. Isto significava que Rui Moreira, com 39% dos votos, passava a ser o único deputado da cidade do Porto na Assembleia da República! Ou seja, 61% dos eleitores, que preferiram outro candidato, não teriam qualquer representante. Num sistema que aumentaria significativamente o "voto útil", ou seja, as pessoas teriam tendência a votar em quem tem mais probabilidade de vencer, o que, naturalmente, beneficiaria os candidatos dos maiores partidos. Contribuindo, mais uma vez, para a alternância PSD/PS, perpetuando o "bloco central de interesses...".»
E diz o segundo: «No entanto, se [a reforma eleitoral] se baseasse em círculos uninominais poderia eliminar os 48 deputados dos outros partidos (talvez pudessem sobrar um ou dois, consoante o desenho geográfico dos círculos). Pode-se então perguntar se essa reforma eleitoral para eliminar oposições é a democracia de que precisamos nestes tempos de aflição nacional. Costa e Seguro acham que sim e que a coisa vale um grande acordo de regime com o PSD. (...) E os eleitores até poderiam escolher entre o PS e o PSD. Claro que ambos podem acrescentar que se corrigirão as malfeitorias dos círculos uninominais com uma pequena compensação aos eleitores que ficam impedidos de eleger os seus deputados, os dos outros partidos. O facto, no entanto, é que nenhum deles apresentou qualquer ideia concreta nesse sentido. Se o fizerem um dia, duvido que os outros partidos o aceitem, porque passariam a ser excluídos pelo sistema de voto e só tolerados pela esmola da maioria.»
O argumento é o do costume: o de que a reforma favoreceria apenas os maiores partidos, levando a afunilar a representação parlamentar e a deitar fora milhões de votos, que ficariam não representados. Habitualmente, ouvem-se ainda outros argumentos contra: o caciquismo; o oportunismo; e o localismo, vindo sempre à baila a história do queijo Limiano. Eco global de todos estes alegados "inconvenientes" foi também o artigo de crítica de Rui Tavares (Livre), no PÚBLICO, em 25.8.2014: Más boas ideias. Diz, nomeadamente: «não foi por terem círculos uninominais que os portugueses, no século XIX, tiveram eleitos mais próximos dos eleitores. E não é se eles forem reintroduzidos extemporaneamente no século XXI que os terão.» E segue com críticas - justas, aliás - ao modelo britânico, ou equivalentes.
Ora, não é assim. O que está em causa não é adoptar o modelo inglês, nem sequer parecido.
Esses argumentos seriam verdadeiros e procedentes se nós quiséssemos um sistema apenas com círculos uninominais. Ora, nem é isso que propomos, nem sequer a Constituição o permite.
O que propomos - e o modelo para que a Constituição apontou na reforma de 1997 - é um sistema em que convivem círculos uninominais e círculos plurinominais, sendo os plurinominais distritais ou regionais e podendo haver ainda um círculo nacional de compensação. Como referência, podemos usar um sistema bem experimentado e que não gera nenhum daqueles efeitos atacados por Rui Sá e Francisco Louçã: o sistema alemão (embora retirando-lhe a exigência do mínimo de 5% de votos, que é uma limitação injusta e, entre nós, inconstitucional).
Aqui, os eleitores têm dois votos: um, para votar no deputado que querem (uninominal); outro, para votar no partido da sua preferência (lista plurinominal). E cada circunscrição regional tem os seus deputados divididos por dois tipos de círculos: o círculo regional, onde se apresentam listas plurinominais à metade dos lugares; e tantos círculos uninominais (no interior do círculo regional) quantos os outros lugares a eleger, ou seja, a outra metade. O voto que decide a proporção a respeitar na conversão em mandatos é o da votação plurinominal (partidária), que rege a representação proporcional rigorosa no Parlamento. Mas cada candidato vencedor em cada círculo uninominal fica logo eleito: o seu lugar conquistado é descontado à quota proporcional que ao seu partido caberia na região; mas, se por acaso, aconteceu ficar acima da quota partidária, exercerá na mesma o mandato conquistado (os chamados mandatos suplementares).
O sistema não prejudica, portanto, os partidos mais pequenos, sobretudo se, acima das circunscrições regionais, ainda acrescentarmos um círculo nacional de compensação (à semelhança do que foi introduzido nas eleições regionais açorianas), com dimensão suficiente para corrigir quaisquer distorções na representação parlamentar e assegurar uma proporcionalidade justa. A exigência constitucional é clara: «assegurar o sistema de representação proporcional e o método da média mais alta de Hondt na conversão dos votos em número de mandatos» - o que está muito bem.
A única consequência para os maiores partidos é que, num sistema misto deste tipo, terão provavelmente uma proporção maior dos seus deputados eleitos nos círculos uninominais, enquanto os partidos mais pequenos terão uma proporção maior de eleitos nas listas plurinominais. Mas nem isso se pode dar por certo, pois há partidos pequenos em que a popularidade local de uma figura política consegue a eleição uninominal..
Certo, certo é que o Manifesto POR UMA DEMOCRACIA DE QUALIDADE se bate, como tem sido repetido, por uma reforma eleitoral honesta - impecavelmente honesta -, sem truques, nem malabarismos, por forma a garantir «a justa e impecável representação proporcional dos cidadãos, do território e das correntes políticas», como está escrito. Justamente, rejeitamos qualquer sistema feito de habilidades para "ganhar na secretaria".
Este sistema de articulação uninominais/plurinominais assegura perfeitamente essa honestidade e rigor. Nem poderia ser de outro modo.
Além disso, todos os outros alegados "vícios" (caciquismo, oportunismo, localismo, etc.) são eliminados pelo convívio no mesmo espaço de plurimoninais e uninominais, em que a lógica gregária e colectiva tende naturalmente a prevalecer.
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Nota final - O artigo de Rui Sá reserva-me ainda uma menção pessoal, de cor portuense: «Ribeiro e Castro, um dos subscritores desse manifesto, diz que o objectivo da reforma eleitoral que propõem é "dar mais poderes aos eleitores e aproximar os deputados eleitos dos cidadãos". Mas felizmente, e porque a inteligência não ilumina só alguns e vai sendo distribuída de uma forma mais ou menos equitativa, não podemos deixar de recordar-nos que Ribeiro e Castro foi eleito deputado, encabeçando a lista do CDS pelo distrito do Porto, não tendo qualquer ligação à vivência e às populações da região - pelo que não devia cometer o pecado de nos dizer "olhem para o que eu digo não olhem para o que eu faço"...»
A minha eleição como cabeça-de-lista pelo Porto (duas vezes consecutivas, diga-se), daria uma longa história. Amaro da Costa já o tinha sido; e Adriano Moreira também. Honro-me muito disso, quer por servir um distrito de que gosto muito, onde já fiz muita actividade política e que é uma das mais importantes regiões de Portugal, quer por ter dobrado a representação do partido: tínhamos 2 deputados, passámos a 4 (e podíamos ter chegado a 5, se não fossem uns erros de terceiros.) O argumento de Rui Sá, porém, não argumenta nada. Por um lado, no ponto de vista dele, só prova que eu não ando nisto por interesse pessoal, até defendendo um sistema que, no seu entender, me prejudicaria. Por outro lado, se o sistema fosse implantado e eu voltasse a ser candidato pelo Porto, eu tanto poderia ir encabeçar a lista plurinominal regional, como ser candidato num dos vários círculos uninominais da região; e, nesse caso, se não fosse eleito, fariam os eleitores muito bem. Os eleitores têm sempre razão.
José Ribeiro e Castro
Jurista e deputado
AVENIDA DA LIBERDADE, 19.Janeiro.2015
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