Contra a ratificação do Tribunal Unificado de Patentes
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votação da Proposta de Resolução 98/XII
(Aprova o Acordo relativo ao Tribunal Unificado de Patentes, assinado em Bruxelas, em 19 de Fevereiro de 2013)
Vivemos tempos de descrédito do sistema político – vários sinais o evidenciam. Diversas vozes críticas o vão apontando, lamentando, denunciando. O crédito dos partidos caiu para as ruas da amargura. E o nome dos políticos rasteja pelo chão – às vezes pela lama. Ser político tornou-se, aparentemente, uma ocupação maldita, longe da mais nobre das artes ao serviço do país e da cidadania. Isso não é bom. É muito, muito mau.
Precisamos de outras formas de fazer política. Democraticamente. Com seriedade. Com substância, consistência, autenticidade. São palavras, ideias, apelos que se ouvem por todo o lado.
Os factores que têm contribuído para aquele evidente declínio são vários. Um (apenas um) é o da ilegitimidade de procedimentos e decisões, confundindo legalidade formal com legitimidade. Nem tudo o que é legal é legítimo. E caiu-se, com demasiada frequência, em actos e decisões políticas que, revestidos da força impositiva de lei, regimentos, estatutos, vão carregados de ilegitimidade – ou porque ferem valores superiores, ou porque não seguiram regras idóneas de processo.
O caso desta votação de hoje, a que me oponho, poderá vir a constituir um exemplo de escola de acto profundamente ilegítimo, mascarado de legalidade.
Este é o segundo acto de um movimento falsamente europeu e, a meu ver, gravemente lesivo de interesses fundamentais de Portugal.
O caso reveste-se daquela obscuridade técnica que é propícia a manobras e artifícios diante da indiferença dos cidadãos e da opinião pública. “Patente europeia de efeito unitário”? “Patente unitária europeia”? “Tribunal Unificado de Patentes”? “O que é isso? Sei lá… Quero lá saber… Uma esquisitice qualquer. Coisa sem interesse.” – assim pensarão muitos.
Do que se trata é da instalação de um regime profundamente discriminatório entre europeus no quadro do mercado interno e do seu funcionamento, através da imposição, em matéria de patentes, de uma troika linguística: alemão, francês e inglês. Estas línguas passam a ter privilégios exclusivos, discriminando-se e desqualificando-se todas as outras línguas europeias. Passaria a ser assim no regime das patentes – foi o primeiro acto, consumado no final do governo Sócrates. E passará a ser assim também em sede da justiça específica respectiva – é o segundo acto, que hoje a Assembleia da República aprovou.
Não entrarei, aqui, na discussão de fundo. Recordarei apenas que a matéria é da maior importância e sensibilidade, porque é de molde a:
1. Ferir interesses e direitos fundamentais de Portugal quanto à Língua Portuguesa e ao seu estatuto internacional. O Português, quarta língua mais falada no mundo, terceira língua europeia global, a língua mais falada do hemisfério Sul, terceira língua do Ocidente, língua em afirmação e procura crescente, segunda língua do petróleo e do gás, é, assim, baixada – ou melhor, rebaixada – ao estatuto da terceira divisão das línguas europeias. Com Portugal a votar a favor.
2. Ferir interesses fundamentais da nossa economia. Torna-nos linguisticamente mais periféricos, cria novos custos e encargos de contexto às nossas empresas e aumenta a sua exposição e vulnerabilidade a ataques de terceiros, concorrentes. Os representantes empresariais dos sectores não têm cessado de o sinalizar; e estudos reputados confirmam-no.
3. Ferir interesses fundamentais de cidadania. O novo regime judicial específico discrimina no acesso à Justiça e torna desigual o equilíbrio das partes, além de bem mais onerosa a Justiça para aqueles que não fazem parte do envelope privilegiado da troika linguística.
Acrescento mais um ponto, a meu ver absolutamente essencial: este pode ser um passo sem recuo. Ao embarcarmos num acordo internacional fechado, a recuperação de direitos e interesses que tenham sido malbaratados pode ser impossível, ou muito dura e custosa.
Por outras palavras, estes passos têm sempre que ser muito bem pensados e reflectidos, longamente debatidos e maduramente ponderados. Não é o que se passa. O PSD forçou, com o CDS a reboque, uma votação final a trouxe-mouxe.
Retomo a linha da ilegitimidade.
Este é um movimento falsamente europeu, como há pouco referi. Se fosse um instrumento de direito europeu, nem esta aprovação e processo de ratificação teriam lugar. Isto é, a própria natureza da contratação internacional e do processo nacional de deliberação mostra que não se trata de matéria da União Europeia, mas de um expediente não-europeu mascarado de “europeu”. É, de resto, a continuação e consumação de outra primeira fraude procedimental aquando do primeiro acto deste ataque normativo. Nessa altura, em 2011, governava Sócrates, impôs-se (e acolheu-se) o mecanismo da “cooperação reforçada”, como truque para tornear, quanto às patentes, o regime de igualdade e não discriminação linguística regulado nos Tratados, assim fugindo à necessidade de unanimidade. E tudo isto é feito não para fazer bem a todos e à União como um todo, mas para fazer bem a uns e mal a outros – isto é, para discriminar: favorecer uns, prejudicar outros.
A primeira legitimidade que pode, assim, ser questionada é a legitimidade europeia, à luz dos seus princípios, regras e valores constitutivos. Em minha opinião, este é claramente um exemplo da Europa que não presta.
A segunda linha de ilegitimidade tem a ver com o meu partido, o CDS.
Aquando do primeiro acto deste movimento de ataque, em 2011, o CDS liderou a contestação política e parlamentar, fazendo-o também um pouco antes, já a propósito do denominado “Acordo de Londres”. Governava, então, Sócrates, que conduziu as primeiras cedências sucessivas de Portugal. Fomos acompanhados por PCP, BE e PEV, em graus diferentes; o PSD alinhou com o PS. Tive intensa intervenção nessa altura, em que era também o Presidente da Comissão de Negócios Estrangeiros. Fi-lo com gosto e convicção, como está abundantemente documentado. E fi-lo no sentimento de este ser o pensamento do partido e também a linha da direcção do partido.
Constatei, entretanto, que não. Entristece-me ver o nome do CDS associado a esta coisa. Fui reler o Programa do Partido e verificar o Manifesto Eleitoral de 2011, não fosse alguma coisa ter-me escapado; e confirmei que o erro não era meu: o valor da Língua Portuguesa e do seu estatuto internacional estão bem plasmados em ambos os documentos do CDS.
Não conheço nenhuma decisão, fosse do Congresso, fosse do Conselho Nacional, fosse da Comissão Política do meu partido que autorizem o CDS e os seus representantes a renunciar à Língua Portuguesa, a baquear na defesa da igualdade concorrencial das nossas empresas e profissionais perante os concorrentes europeus ou a aceitar qualquer discriminação ou desigualdade no acesso à justiça nacional e europeia. A actuação partidária está, a meu ver, ferida de ilegitimidade, por nos levar a fazer exactamente o contrário do que devíamos ter feito.
Embora não seja da minha conta, também não sei de qualquer debate sério a este respeito em qualquer órgão do PSD e no seu grupo parlamentar. Apesar da importância e do melindre da matéria, o sistema funcional é o de “carregar pela boca” como nos velhos canhangulhos ou nos gansos do foie gras. A linha política parlamentar é a do “come-e-cala”.
E há uma terceira linha de ilegitimidade, que é a mais grave: a ilegitimidade desta decisão parlamentar, face aos factos do processo.
Importa recordar os três tipos de interesses fundamentais em causa: interesses e direitos fundamentais de Portugal quanto à Língua Portuguesa; interesses fundamentais da nossa economia e das nossas empresas e profissionais; interesses fundamentais de cidadania, n o acesso à Justiça. E importa lembrar, ainda, que, como acordo internacional, se tratará porventura de um passo sem recuo.
É sabido serem várias as organizações representativas que se exprimiram contra; e haver pólos de interesses legítimos de profissionais que se têm manifestado contra. Em contrapartida, não se conhecem organizações relevantes, portuguesas, que apoiem o novo regime e avancem argumentos convincentes.
Há constitucionalistas que suscitaram questões de possível inconstitucionalidade, quer já aquando do primeiro acto, quer deste segundo acto relativo ao Tribunal Unificado de Patentes. E estas questões não foram suficientemente tratadas, nem dirimidas.
Neste quadro, o normal e saudável, para um processo parlamentar completo e legítimo, seria que a comissão encarregue de apreciar e emitir parecer (a Comissão de Negócios Estrangeiros/CNECP) colhesse pareceres e contributos específicos da 1ª comissão (quanto às questões de constitucionalidade e de acesso à Justiça), da 4ª comissão (quanto às questões europeias), da 6ª comissão (quanto às incidências na nossa economia, nas empresas e nos profissionais) e da 8ª comissão (quanto às questões da língua e seu estatuto).
Dir-se-á: ninguém requereu. Primeiro, só em parte é verdade. Segundo, sendo necessário, estávamos em tempo de o fazer.
Quando tive conhecimento de esta matéria estar pendente de parecer da CNECP e não ter sido pedido contributo da Comissão de Assuntos Europeus/CAE, requeri, a 19 de Março, que isto fosse feito. O Presidente da CAE agiu prontamente no próprio dia, apresentando a questão à Presidente da Assembleia da República, que despachou, no dia 23, nos seguintes termos: «Redistribua-se conforme solicitado. Às 2.ª e 4.ª Comissões.» (Retenha-se bem o teor deste Despacho da PAR, a que voltarei adiante.)
No dia 24, é-me comunicado este Despacho, incluindo a indicação de que o parecer da CAE era distribuído ao CDS-PP. Como coordenador, assumi de imediato a responsabilidade.
No dia 25, apresentei um plano de audições para ser efectuado pela CAE, no contexto do parecer determinado. Todas elas são pertinentes – poderiam, quando muito, propor-se mais algumas, com outros pontos de vista ou representando outros interesses relevantes.
No dia 31, a CAE apreciou o plano de audições apresentado – e chumbou-o em globo, pelo voto da autoridade do PSD. Não me recordo de semelhante precedente. Não me recordo de um relator de um parecer propor perante a comissão a que responde um plano de audições pertinentes e estas serem globalmente rejeitadas, impedindo o seu trabalho.
Propus a audição da Confederação da Indústria Portuguesa – a Assembleia não quis ouvir. Propus a audição da Associação Portuguesa de Consultores em Propriedade Intelectual – a Assembleia não quis saber. Propus a audição da Ordem dos Advogados – a Assembleia chumbou. Propus a audição de uma delegação representativa de tradutores de patentes (especialistas doutorados) – a Assembleia desprezou. Propus a audição do constitucionalista Prof. Rui Medeiros – a Assembleia rejeitou. Propus a audição da Deloitte, a propósito do estudo feito recentemente sobre a matéria – a Assembleia impediu. Propus a audição do embaixador de Espanha, sobre a posição do Estado espanhol – a Assembleia declinou. Propus a audição do embaixador da Polónia, sobre a posição do Estado polaco – a Assembleia reprovou. E propus a audição da delegação da Comissão Europeia, sobre o estado geral da matéria – a Assembleia descartou. Com o seu voto impositivo e global contra o plano de audições apresentado, a autoridade do PSD boicotou e impediu um trabalho sério por parte do relator da CAE.
Esta questão foi apreciada na reunião seguinte da 4.ª Comissão, a 7 de Abril, em que apresentei também quais seriam os efeitos deste quadro muito negativo.
E, na mesma reunião da CAE, foi aprovado um requerimento para ser solicitado parecer à 1ª Comissão sobre as alegadas questões de possível inconstitucionalidade. Este pedido de parecer foi aprovado com votos favoráveis do PS, CDS-PP, PCP e BE e o voto contra do PSD.
Porém, prosseguindo a desabrida correria da obcecada investida contra uma pronúncia parlamentar em termos decentes, é precipitada a votação definitiva a trouxe-mouxe que hoje se consumou. No dia 8 de Abril, na Conferência de Líderes, o PSD (com o CDS a reboque) apontou a votação para hoje, na suposição de um parecer que a CNECP se preparou para aprovar, a preceito, em reunião extraordinária, ad hoc, no dia 9, ontem.
O resultado não poderia ser pior e mais deplorável.
O próprio parecer da CNECP, que habilitou o agendamento da votação para hoje, omite, cala e esconde que a CAE foi impedida de se pronunciar; e que a 1ª Comissão também. Quem um dia consultar o processo e ler os termos da pronúncia parlamentar, num acto internacional de tão grande importância e de consequências potencialmente tão graves para a nossa Língua, a nossa economia e a nossa Justiça, ficará sem conhecer os factos acima descritos. Saltou-se por cima deles como se os pudesse apagar. Ou talvez para isso mesmo: para os apagar.
Pior: o Despacho da Senhora Presidente da Assembleia da República não foi cumprido. Fez-se gato-sapato da redistribuição ordenada: «Redistribua-se conforme solicitado. Às 2.ª e 4.ª Comissões.» A CAE não se pronunciou, nem pôde concluir validamente a sua parte do processo.
E a 1ª Comissão, a quem, entretanto, validamente fora pedido um contributo, por requerimento aprovado em tempo útil, também foi impedida de se pronunciar. O requerimento aprovado há três dias deve ter apanhado um tiro de canhangulo a meio da viagem entre a 4ª e a 1ª comissões.
Esta Legislatura que já tinha, noutra ocasião, inaugurado a metodologia que designei de “legislar à paulada”, inaugurou hoje uma nova variante, com maior sofisticação, esmero e aditamento: “legislar à paulada, com mordaça”.
Agiu-se para serem caladas as 1ª e 4ª comissões parlamentares. E, já antes, se agira, no interior da CAE para serem caladas e não ouvidas as entidades legitimamente requeridas: CIP, ACPI, Ordem dos Advogados, especialistas tradutores doutorados, Prof. Rui Medeiros, Deloitte, embaixada de Espanha, embaixada da Polónia, delegação da Comissão Europeia.
Porquê? Para servir o quê?
Se isto não é um processo parlamentar ilegítimo, não sei o que será um processo parlamentar ilegítimo.
Perante uma decisão parlamentar ferida de ilegitimidade, tomada com aparência legal, creio que a resposta em tempo útil só poderá vir já do Presidente da República.
Cabe ao Presidente da República garantir o regular funcionamento das instituições democráticas e, nesse quadro, creio que o Presidente dispõe dos meios para levar a reconduzir o processo ao tratamento parlamentar completo, exaustivo e idóneo, não procedendo à ratificação ou à assinatura presidencial conforme ao caso couber, enquanto aquele pressuposto formal e orgânico não for devidamente cumprido. Conhecemos já o passado deste caso; conheceremos o futuro.
No mais, ficará o que a política e o Direito vierem a ditar por outras vias.
Uma nota final, em rodapé: a forma como o grupo parlamentar do CDS-PP votou representa obviamente a minha exoneração pública das funções, que exercia, de vice-presidente da Comissão de Assuntos Europeus e de coordenador no seu seio, clareza objectiva que só me cabe agradecer. Muito obrigado.
José Ribeiro e Castro
Deputado
ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA, 10.Abril.2015
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