O CDS-PP diante da reforma política


Pedem-me que escreva algo que exprima a posição do CDS a respeito das questões que hoje se debatem intensamente sobre «participação e representação política na Europa em crise». E a empresa não é fácil. Sobretudo não é linear. Com desgosto meu… mas é assim.

Aquilo que é perceptível do exterior é que, ao longo deste debate, que é antigo e persistente, o CDS-PP parece um partido passivo e renitente, isto é, um partido que não tem iniciativa na matéria e que, as mais das vezes, resiste quando outros tomam iniciativas. Aparenta não ter posição; e ser contra a reforma.

Todavia, é fácil conhecer a posição oficial do partido a este respeito. Ela foi definida em Janeiro de 1993 e está inscrita no Programa do Partido Popular, adoptado pelo XI Congresso. 

Está estabelecida em termos bastante detalhados e fundamentados e ocupa três parágrafos do Capítulo principal do Programa [1]:


«VALORES POLÍTICOS (…)

10. Há uma crise de representação nas democracias.

O facto de sermos uma direita popular tem ainda outro significado, indissoluvelmente ligado à crise de representação que atinge, nos tempos modernos, muitas democracias ocidentais. Essa crise de representação, cujos sintomas mais evidentes são o alheamento e a indiferença das opiniões públicas perante o fenómeno democrático, a contestação aberta das organizações partidárias vigentes e o crescimento preocupante das forças extremistas que reúnem votos de simples protesto, só pode ser ultrapassada pela reafirmação da regra de ouro da democracia: A soberania reside no povo.

Esta regra é substantiva e não formal. A crise de várias democracias europeias, em nosso entender, tem muito a ver com uma confidencialização do processo político, com o esgotamento da democracia no mandato parlamentar, com o absolutismo dos critérios partidários no acesso à vida política e ao controlo das decisões e também, porque não dizê-lo, com a plastificação da mensagem política, onde faz cada vez mais falta o sentido dos valores e a confissão da verdade.

Ao assumirmos a condição de movimento popular, afirmamos que não há questões nacionais que o povo não deva conhecer. Daí tiramos a lição de que os sistemas democráticos e as respectivas classes dirigentes não podem arrogar-se um poder de conhecimento e decisão que exceda ou ignore a sua legitimidade original. De igual forma, se entendemos que a base da democracia são os partidos políticos e o centro da vida democrática está nos Parlamentos, não admitimos que os partidos fechem a circulação de elites políticas nem aceitamos que Parlamentos totalizem as formas de expressão da soberania popular. Conscientes de que a regra de maioria é o modo democrático de organizar a expressão de vontade, não cometemos o erro, tão frequente nos nossos dias, de identificar permanentemente a maioria com idoneidade ou legalidade. É por isso que defendemos o reforço dos corpos independentes do Estado no controlo da decisão pública.


11. A favor do referendo.

O Partido Popular defende o referendo como um dos procedimentos democráticos por excelência. A defesa do referendo é uma vigorosa opção de fundo e não apenas um expediente conjuntural. É que a prática referendária constitui uma das melhores vacinas políticas, na medida em que apela directamente à nação em matérias essenciais para o seu destino e actualiza a dialéctica democrática para além da cristalização dos partidos.

O referendo fará parte da doutrina constitucional do Partido Popular e a sua utilização criteriosa poderá abranger grandes questões de soberania, questões estruturantes do regime e da organização política do Estado e legislação relativa a superiores questões de consciência.


12. Um novo sistema eleitoral.

A doutrina constitucional do Partido Popular tem por base a ideia de que a Constituição da República não deve ser ideológica nem programática, devendo, pelo contrário, perdurar no tempo e servir a alternância democrática dos governos. Nesse pressuposto, a nossa ambição é que devem ser eliminadas todas as marcas do processo revolucionário ou da política socializante que ainda subsistem na lei fundamental.

Por outro lado, defendemos que os limites materiais de revisão constitucional não devem aplicar-se a questões de orientação programática que são do livre arbítrio das escolhas do governo, nem tão pouco a questões instrumentais de organização do sistema político. Limites materiais da revisão devem ser, apenas, os limites essenciais que definem um regime democrático.

Para o Partido Popular, a actual Constituição da República necessita de revisão, sobretudo nos pontos em que se manifesta a citada crise de representação das democracias políticas. É por isso que, além da prioridade ao referendo há mais prioridades para um novo ordenamento constitucional. É importante a consagração de um novo sistema eleitoral, de modo a individualizar cada vez mais a responsabilidade política, reforçar o controlo democrático dos eleitores sobre os eleitos e impedir a tendência da democracia de partidos para se tornar numa democracia de directórios. É importante a abertura de todos os actos de candidatura política aos independentes, porque os partidos políticos devem obrigar-se a ser os melhores mas não os únicos instrumentos da realização da democracia. É importante a consagração do voto dos emigrantes para a Presidência da República porque assim se faz justiça e se reforçam os conceitos de nacionalidade e cidadania. É importante constitucionalizar os deveres políticos e executivos perante o legislativo, criando um verdadeiro código de conduta que permita o debate democrático das decisões dos governos e o reforço dos poderes de fiscalização da Assembleia da República. É importante clarificar a posição constitucional de órgãos como o Tribunal de Contas e a Procuradoria-Geral da República, cujas missões de verificação da legalidade das contas públicas e de magistratura independente do Estado merecem um apoio explícito e reclamam maior independência, mais meios e novos poderes.

Com estas reformas, o regime democrático será mais participado, mais aberto, mais autêntico, mais transparente e mais sério.»

A primeira nota a reter, quando se relê este texto, é a de que, quando falamos de “questões que actualmente se debatem”, essas questões já são, afinal, velhas: velhas, pelo menos, de 25 anos, pois um novo programa partidário, adoptado no início dos anos 1990, já as reflectia nos termos enfáticos que foram transcritos. A segunda nota, porém, é de absoluta frustração: ao fim de 25 anos, pouco ou nada se fez para traduzir estas orientações.

Não tenho, sinceramente, recordação de qual tenha sido a acção da direcção presidida pelo Dr. Manuel Monteiro neste domínio; e, portanto, nada posso comentar a esse respeito.

De um modo geral, creio que o partido tem traduzido quase sempre a inclinação programática favorável ao instituto do referendo. Isso tem sido uma quase constante no discurso do partido e também nas suas votações: foi a favor dos três referendos que a Assembleia da República aprovou em 1998 (regionalização, aborto e tratado de Amesterdão[2]) e participou activamente na revisão extraordinária da Constituição de 2005, que aditou o artigo 295º, para permitir referendos sobre tratados europeus [3]. Na prática, porém, o partido alinhou com aqueles que não quiseram referendar o Tratado de Lisboa e impediram o referendo, quando a questão se pôs em 2007/08. Ou seja, em concreto, contrariou a orientação programática do partido[4] e também contribuiu para tornar completamente inútil a revisão constitucional de 2005: na primeira oportunidade para a aplicar, foi ignorada e desprezada [5].

Já quanto às reformas do sistema eleitoral, a posição da direcção do partido, liderada pelo Dr. Paulo Portas, tem sido normalmente de desconfiança: por um lado, não propõe nada; por outro lado, habitualmente resiste a mudanças propostas por outros. Neste contexto, só aparentemente se pode considerar uma surpresa a única novidade avançada pelo Dr. Paulo Portas, no Frente a frente na SIC com o Dr. Passos Coelho, a 13 de Maio de 2011, na campanha para as legislativas de Junho desse ano: confrontado com a tradicional obsessão do PSD de reduzir o número de deputados a 180, o líder do CDS-PP adiantou que até defendia mais, «que fossem reduzidos a metade, 115 deputados, com um círculo nacional ou com agregação de círculos e representação proporcional, pura e dura» [6]. Esta posição foi, de facto, uma novidade, não debatida em qualquer órgão do partido, tanto quanto sei, mas não era realmente uma proposta, antes um entrave [7] – e, na verdade, entretanto, nada se fez nesse ou noutro sentido.

Estas reservas do CDS-PP são compreensíveis e algo semelhantes às do PCP e do BE. Os partidos mais pequenos receiam que os partidos dominantes pretendam aproveitar uma reforma eleitoral para “ganharem na secretaria”, isto é, para imporem regras e mecanismos que distorçam, ainda mais, a representação proporcional e favoreçam a concentração de mandatos nos dois partidos maiores. Este receio é perfeitamente razoável e, infelizmente, muito justificado face àquele que tem sido o comportamento prevalecente do PSD após a revisão constitucional de 1997. É frequente correr o sentimento de que os partidos centrais (PS e PSD), cuja votação agregada tem vindo a cair nas eleições legislativas desde 2002, buscariam uma reforma engenhosa que repusesse e consolidasse a sua dominação. Em minha opinião, este sentimento é correcto quanto a várias propostas do PSD [8], mas já não quanto ao PS, que, de um modo geral [9], sempre tem mantido uma avaliação séria e isenta desta problemática.

Porém, penso que o CDS não deve obstar à reforma eleitoral e colocar-se sistematicamente fora do assunto, contribuindo na prática para a retardar e sabotar a reforma. A atitude do CDS deve ser propositiva, construtiva, atenta e muito exigente por uma reforma eleitoral honesta, sem truques, nem engenharias. Espírito em que, estou certo, o CDS poderia emparceirar facilmente com o PS e, assim, mobilizar também o apoio do PCP e do BE ou, pelo menos, a sua não obstrução. E o PSD acabaria sempre por ser parte e parceiro de reformas construídas com esse espírito.

Confirmei o acerto deste meu sentimento, que sempre defendi no CDS[10], quando presidi ao partido de 2005 a 2007 e defini essas orientações para apoiarmos e acompanharmos as revisões das leis eleitorais para as eleições regionais nos Açores e na Madeira. Foram revisões eleitorais diferentes, mas ambas positivas e com inovações interessantes, melhorando claramente a representatividade das Assembleias Legislativas Regionais e a proporcionalidade dos mandatos. Foram boas reformas; e foram as únicas que se fizeram nos últimos anos em Portugal. Dizendo de outro modo: o CDS não deve ter medo das reformas eleitorais; o que tem é de propor, participar com as suas ideias e exigir que qualquer reforma seja impecável em matéria de seriedade, de honestidade e de representatividade democrática.

O Programa do partido reflecte, afinal, preocupações certas: crise de representação; alheamento e indiferença da cidadania; desdém generalizado relativamente aos partidos políticos; crescimento de forças extremistas – como se sente em Portugal e noutros países europeus. E aponta remédios certos para reconstruir a representação e a confiança na representação: personalizar a responsabilidade dos deputados, abrir a concorrência e competitividade política no sistema (por que não os independentes?) e fortalecer o controlo de eleitores sobre eleitos, isto é, a efectiva prestação de contas.

O Programa do CDS-PP tem também a noção clara de que estas reformas operam benefícios não só por si mesmas, mas têm igualmente reflexos positivos na melhoria do funcionamento dos partidos e no seu processo interno de debate e selecção: impedir a tendência para o sistema evoluir para uma “democracia de directórios”, como hoje temos – em rigor, já uma ditadura de directórios.

O CDS, a meu ver, tem as ideias certas no seu Programa; mas tem a prática distante e errada. E é isso que me tem levado a trabalhar noutras frentes alargadas, com cidadãos de outros partidos e independentes, no sentido de fazer avançar a reforma política tão necessária e urgente em Portugal. A minha intervenção no quadro do Manifesto “Por Uma Democracia de Qualidade”[11], recentemente lançado e que tem vindo a animar alguns debates, tem essa justificação e enquadramento.

É chocante que, dezoito anos depois da revisão constitucional de 1997, nada tenha sido feito para resolver os problemas há muito detectados e para melhorar eficazmente a participação e representação política no nosso país, recuperando a relação de confiança entre Estado e cidadãos. Fez-se o mais difícil: abrir o quadro constitucional. E tem-se falhado por sistema, legislatura após legislatura, no mais fácil: rever as leis.

O sistema eleitoral misto, à alemã, articulando votações uninominais e plurinominais num quadro sério de representação proporcional seria um caminho óbvio para responder às questões mais críticas – em minha opinião, com uma reformulação séria e equilibrada dos círculos regionais e completado ainda com um círculo nacional apto a assegurar proporcionalidade efectiva. A revisão constitucional parece ter sido feita para isso. Só merece repúdio – e indignação – que o caminho não esteja a ser seguido.

Explicação para o bloqueio? A tal “democracia dos directórios”, que o Programa de 1993 do CDS-PP tão acertadamente receava. É, de facto, com isso que temos de romper, a fim de a democracia poder respirar e ganhar outra vez saúde e autenticidade.



José Ribeiro e Castro
Deputado

ISCTE, 23.Abril.2015
Artigo escrito para o livro "Representação e participação política na Europa em crise", págs. 339-344, 
organização de André Freire, Marco Lisi e José Manuel Leite Viegas (Coleção Parlamento)

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[1] Os destaques em negrito no texto foram introduzidos por mim.

[2] Este último referendo, sobre questões do Tratado de Amesterdão, tinha problemas técnicos sérios, pela necessidade de a pergunta não poder, então, ser directa; e acabaria por ser reprovado pelo Tribunal Constitucional). A posição do CDS veio a ser também favorável à realização do segundo referendo sobre o aborto, em 2007.

[3] Esta votação da revisão constitucional ocorreu já no tempo da minha presidência do partido em 2005/07.

[4] Na altura, estava-se de novo na presidência do Dr. Paulo Portas.

[5] A Irlanda, que também assinou o Tratado de Lisboa em 13 de dezembro de 2007, fez dois referendos sobre este Tratado: no primeiro, a 12 de Junho de 2008, ganhou o “Não”; no segundo, a 2 de Outubro de 2009, ganhou o “Sim”.

[6] Cfr. gravação do debate em https://youtu.be/pa6XVrKjo1U , a partir do minuto 44´ 00”.

[7] Passos Coelho observou logo, no mesmo debate, que essa posição exigiria uma revisão constitucional prévia.

[8] O PSD apresenta normalmente propostas centradas unicamente na redução de deputados para 180, o que iria reduzir ainda mais a proporcionalidade do sistema e favoreceria ipso facto os partidos maiores. A redução do número de deputados está longe de ser o problema principal do nosso sistema eleitoral, sobretudo numa análise comparada com países homólogos no quadro europeu.

[9] A excepção aconteceu, aquando dos últimos debates para revisão da lei eleitoral autárquica, já no decurso da XI Legislatura (2009/11), em que o PS pareceu alinhar com o PSD na ideia de uma reforma que imporia executivos municipais monocolores, distorcendo a representação local e a boa participação na gestão autárquica.

[10] Incluindo quando integrei direcções da presidência do Dr. Paulo Portas de 1998 a 2005. 

[11] Consultar em http://tinyurl.com/ohmfded | Facebook em: https://www.facebook.com/DemocraciadeQualidade

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