A Décima Garantia
Nas apresentações do Manifesto “Por Uma Democracia de Qualidade”, várias vezes aludimos a que não teríamos chegado ao imperativo de reformar o sistema eleitoral se não fosse a progressiva decadência dos partidos e a redução, praticamente ao grau zero, da representação parlamentar.
O sistema parlamentar visa, entre outras funções, assegurar a fiscalização da acção governamental pelos deputados – no desenho do sistema, são os deputados que mandam nos governos, não os governos que mandam nos deputados. Tudo ao contrário do que progressivamente se foi instalando.
Isto nada tem a ver com liderança: o líder da maioria é simultaneamente líder do governo e líder dos deputados. Mas o caldo entorna-se e o sistema desfigura-se, quando o líder se esquece por inteiro de liderar os deputados, se fecha em chefe do governo e o mobiliza com o aparelho para subjugar os deputados, reduzidos a claques e tropa servil. O sistema político foi decaindo por aí; e corrompeu o funcionamento dos partidos.
Esta função fiscalizadora permanente, essencial à saúde da democracia, reside idealmente nos próprios partidos; e é daí, a partir da base, que irradia. A democracia é um sistema “bottom up” (de baixo para cima) e não “top down” (de cima para baixo). Em listas partidárias, ou noutros modos de eleição, os candidatos são escolhidos a partir da base, directa ou indirectamente; e é à base, por conseguinte, que devem a prestação de contas. Um deputado, ciente do mandato e suas responsabilidades, deve contas a dois níveis: aos eleitores em geral, que representa; e às bases, aos eleitores do próprio partido, que tutelam o desenvolvimento das mais características propostas partidárias.
Os mecanismos de participação e de democracia interna são, por isso, essenciais. A verdade do sistema é esta: os governos prestam contas aos deputados; e os deputados prestam contas aos eleitores e às bases – permanentemente; não apenas de quatro em quatro anos, quando há eleições.
A fiscalização de baixo para cima, a prestação de contas em contínuo, são condições sine qua non de verdadeira influência democrática. Sem isso, torna-se fácil o desvio da linha política; e faz-se regra a ausência de tutela representativa. A democracia transforma-se numa burla – andamos todos ao engano.
Os partidos inverteram de tal forma o paradigma democrático (como a formação das listas na coligação maioritária bem ilustrou), que só uma reforma eleitoral profunda restituirá ao deputado o senhorio do seu mandato e, através deste, garantia de efectiva democraticidade ao funcionamento dos partidos. Como temos dito, é prioritário restituir palavra aos eleitores (e às bases), retirando-a ao império dos directórios.
Quando, em Junho, a coligação PSD/CDS apresentou as linhas gerais do programa eleitoral, chamou-me a atenção que declarasse nove garantias. Porquê nove? Por que não dez, um número redondo? E fiquei a pensar no que poderia ser a décima garantia.
A resposta veio-me da sétima garantia: «Garantimos que pugnaremos pela inscrição na Constituição de um limite à dívida pública.» Este ponto, o sétimo da Carta de Garantias da coligação, já constava do discurso frequente de PSD e CDS-PP. E fez mesmo parte do anterior Manifesto Eleitoral do CDS; não num lugar qualquer, mas exactamente como primeiro ponto: «Limite ao endividamento do Estado na Constituição» era a primeira promessa do CDS-PP nas eleições de 2011. Os dois textos de desenvolvimento desta chamada “regra de ouro” confirmam a identidade.
O que fez, então, que a primeira promessa de 2011 se repita, agora, como a sétima garantia de 2015? E que garantia podemos ter de que será cumprida, quando a primeira não foi?
Não é que o propósito de 2011 não fosse concretizado – uma revisão constitucional carece de maioria 2/3 e nem o CDS, nem a coligação a têm. Mas é que nada tivesse sido feito para fazer avançar no plano político esse desígnio emblemático, nem o menor combate político sério fosse travado. A coisa ora caiu no esquecimento, ora foi objecto de vagas cócegas ocasionais, longe do estatuto de “primeira promessa”, hoje “sétima garantia”. Nem o facto de aquela “regra de outro” ter constado no famoso “guião da reforma do Estado” serviu de estímulo e acicate. Mergulhou em banho-maria e aí ficou.
Como foi isto possível? Falta de participação, falta de democracia interna, falta de prestação de contas, falta de voz das bases, falta de poder dos deputados. O sistema é autoritário: os chefes mudam de ideias e o sistema agacha-se. Não há tutela colegial das propostas eleitorais.
Pode tratar-se mal os idosos, pode aumentar-se impostos mais do que o devido, pode carregar-se brutalmente no IMI, pode acabar-se a bel-prazer com feriados patrióticos, pode paralisar-se a reforma do Estado, pode parar-se o combate às rendas excessivas, pode prosseguir o pântano das ex-SCUT, pode liberalizar-se o jogo on-line, pode atacar-se a língua portuguesa e seu estatuto internacional, pode fazer-se ou não se fazer tudo e mais alguma coisa, dar toda e qualquer cambalhota – que não há tutela colectiva e democrática do passo governativo e da acção política.
Por isso, a Décima Garantia: democraticidade e “accountability”. Sem estas, nenhuma outra “garantia” tem valor. Pode acontecer ou não acontecer; mas nada é garantido.
A verdadeira Garantia teria sido a reforma eleitoral preconizada, em tempo, pelo Manifesto. Mas, enquanto não é feita, ao menos um funcionamento sério, um funcionamento maduro, um funcionamento adulto, um funcionamento orgânico, um funcionamento institucional dos partidos políticos. Sem isto, não há garantias – a não ser a vontade ocasional dos chefes. O que, como temos visto em décadas de decadência, tem normalmente dado asneira – e não nos leva a lugar que valha a pena.
José Ribeiro e Castro
Advogado, ex-líder do CDS
JORNAL "I", 19.Agosto.2015
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