Democracia faz-de-conta



Faz de conta que não vamos eleger um parlamento, mas o governo. Faz de conta que vamos escolher directamente o primeiro-ministro. Faz de conta que não elegemos deputados, mas votamos nos líderes, candidatos a primeiro-ministro. Faz de conta que será primeiro-ministro aquele que for o mais votado. Faz de conta que os deputados não interessam para nada – só lá estão para aplaudir ou patear. The show must go on. O espectáculo tem de continuar. 

A crescente teatralização da vida pública é um dos temas que temos tratado desde o lançamento do Manifesto Por uma Democracia de Qualidade há um ano. Como de novo ficou à vista nas eleições de 4 de Outubro, a ficção imposta pela propaganda degrada a representação política em sentido próprio e mina a credibilidade e o prestígio dos partidos, dos políticos, das próprias eleições. É um terrível factor de erosão da democracia. 

O que está na génese da crise política que estamos a viver logo no arranque desta legislatura e da incredulidade na maioria dos comentários é essa mesma teatralização, a democracia faz-de-conta. 

As eleições foram travestidas de eleição do primeiro-ministro – que não são e nunca foram. Isso seria, aliás, uma fraude contra a democracia parlamentar. As eleições legislativas são para eleger um Parlamento, 230 deputados, e gerar, portanto, maiorias legislativas, de fiscalização e de governo. Foi sempre assim. Claro que os líderes partidários têm peso, por isso mesmo que são líderes. E é evidente que o líder do partido mais votado tem a forte probabilidade de vir a tornar-se o primeiro-ministro, o que, porém, depende do conjunto dos resultados eleitorais e da concreta composição do Parlamento. Só a propaganda, enganando a “multidão ignara”, pode ficcionar a eleição directa do chefe do Governo. As eleições legislativas não têm nada a ver com eleições municipais ou de freguesia. Um primeiro-ministro não é um Presidente de Câmara, nem o Presidente da Junta. 

Convém recordar a história desta progressiva burla eleitoral. A falsa teatralização da “eleição do primeiro-ministro” foi uma ficção urdida por núcleos dirigentes de PSD e PS a partir de meados dos anos 80, a fim de centralizarem todo o jogo político apenas nos dois maiores partidos. O propósito era o de circunscrever o jogo a uma bipolarização exclusiva, diminuindo e arredando todos os outros. Era a “alternância”, que se articulou também com a reserva para os dois partidos de todos os cargos da República. E, como não há almoços grátis, gerou, de caminho, um ambiente cúmplice de cartel oligárquico por onde se instalaram, confortáveis, todos os interesses: por exemplo, o BPN, o BPP, as PPP, outros arranjos diversos e, ao retardador, ainda o caso GES/BES são filhos bastardos, não perfilhados, desse longo conluio estratégico, que abafou a respiração crítica própria de uma democracia aberta. 

Agora, a ficção desaguou na contradição que domina estes dias: de um lado, foi a coligação PàF a mais votada; do outro, desenvolve-se pela primeira vez a possibilidade de um governo PS apoiado na maioria parlamentar das esquerdas. São inúmeros os cidadãos que se sentem burlados e expressam perplexidade e indignação. O sentimento de burla não surpreende, pois foi burla efectivamente. É que nem foi só a PàF; mas também o Partido Socialista participou activamente nesse ludíbrio. António Costa era o outro primeiro-ministro a eleger, para que pediu a maioria, que não teve: nem absoluta, nem relativa. Ou seja, ambos aceitaram o duelo e o travaram. E, de repente, eis que o vencedor pode perder e o derrotado pode ganhar. 

Os culpados são aqueles que congeminaram e animaram este marketing burlão, em contraste (consciente) com a efectividade constitucional das eleições. Muitos eleitores não sabem; e porventura ficam convencidos de que é o mais votado que governa, independentemente das maiorias parlamentares. Ou seja, foram enganados. E é do engano, repetido, sucessivo e crescente, que a democracia se ressente cada vez mais. 

Apesar das críticas frequentes quanto à crise do sistema político, o exercício de ficção e de sub-representação política foi levado nestas eleições a um nível de requinte nunca antes atingido. 

A coligação PàF, por exemplo, que era o actor dominante, conseguiu passar toda a campanha sem apresentar um só dos seus candidatos nos cartazes. Surpreendeu-me que não apresentasse o rosto dos dois líderes, Passos Coelho e Paulo Portas. Creio ter sido a única das forças principais que assim fez – e nunca no passado acontecera, nem no PSD, nem no CDS. Ouvi que seria uma estratégia de marketing no sentido de “não desencadear rejeição”, explicação absolutamente estapafúrdia: não só seria reveladora de absoluta falta de confiança, mas não faria o menor sentido, com os líderes em campanha diariamente nas televisões. Porém, o revelador é que, tendo optado por não personalizar os cartazes nos dois líderes, a campanha da PàF não tenha, então, recorrido aos rostos das centenas de candidatos da coligação nos diversos círculos. Nem um! Em vez disso, preferiu usar sempre figurantes, recrutados em bancos de imagens ou noutras bases de dados. É uma boa metáfora daquilo a que temos vindo a ser reduzidos: uma democracia de figurantes. 

Agora, o poder de decisão vai ser dos 230 deputados – como sempre aconteceu, mas os factos destes últimos dias põem extraordinariamente em evidência. Porém, na campanha da PàF, agiu-se graficamente de modo a acentuar a ilegitimidade e absoluta irrelevância dos eleitos: nem tiveram direito a rosto. Para despersonalizar a eleição e irresponsabilizar os eleitos, pior era impossível. 

Não surpreende, por isso, o afastamento crescente dos cidadãos. A abstenção voltou a aumentar: subiu mais de dois pontos percentuais, galgando para cima de 44%. Abstiveram-se 4 milhões e 270 mil eleitores! Os abstencionistas são mais do que os votos da PàF e do PS somados. E bem mais do dobro da votação em cada um deles... 

A 4 de Outubro, em virtude do dramatismo da eleição e com novos partidos a concorrer, dir-se-ia que a abstenção iria baixar. Todos queriam acreditar nisso. Insistindo na ficção, as sondagens e as televisões montaram o mito de que a abstenção tinha caído – e mantiveram esse mito durante toda a noite, apesar de ser visível desde as primeiras contagens de votos que, afinal, a abstenção não ia baixar, mas subira. A ficção estava, porém, montada… E, um após outro, todos os líderes caíram nela, exaltando um fantasiado aumento do número de votantes… Até nisto a noite eleitoral foi faz-de-conta. Houve mais 238 mil abstencionistas que em 2011. 

Precisamos, na verdade, da reforma eleitoral. É urgente reconstruir o crédito na política e restituir confiança aos eleitores. Um dia, a casa vem abaixo.

José Ribeiro e Castro
Advogado, ex-líder do CDS

JORNAL "I", 21.Outubro.2015

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