A perversa fantasia da eleição do primeiro-ministro
À medida que se esfumam os vapores da fantasia em que o debate político se arrastou ao longo de dois meses, vai-se tornando possível reflectir mais objectivamente sobre o tema da alegada eleição do primeiro-ministro. Já sabemos – creio que ninguém o negará – que não é isso que está na Constituição e na lei. O sistema constitucional é de eleição parlamentar, isto é, elegemos 230 deputados; e é da relação de forças parlamentar decorrente que resultará a formação do Governo – é precisamente estes “resultados eleitorais” que a Constituição manda o Presidente da República “ter em conta” para indigitar o Primeiro-Ministro.
O sistema é semi-presidencialista, mas de vertente parlamentar mais acentuada. Por um lado, a revisão constitucional de 1982, conduzida por PSD, CDS e PS, eliminou a responsabilidade política dos governos perante o Presidente da República e concentrou-a unicamente na frente parlamentar de onde, por norma, emanam. Por outro lado, na mesma revisão, inibiu o Presidente de poder dissolver a Assembleia nos primeiros seis meses de cada legislatura, o que o constrange, nesse semestre, a ter de aceitar as indicações maioritárias do Parlamento.
Com base nas eleições legislativas, o governo será maioritário ou minoritário, conforme assente, ou não, num partido ou coligação de partidos com maioria parlamentar, isto é, maioria absoluta, capaz de resistir por si só a qualquer ataque da oposição. Mas só pode constituir-se e manter-se como minoritário, se o partido que o constitui gozar da convergência, da cumplicidade ou da tolerância de outras forças partidárias que representem em conjunto uma maioria parlamentar, sem a qual não se sustentaria.
Foi sempre assim, desde 1976.
Não deixa de ser curioso como as direcções da PàF, que ferozmente se opuseram a esta lógica elementar e procuraram cunhar a ideia de já ter governo eleito a 4 de Outubro, acabaram por ajudar a comprovar que o sistema é exactamente como foi descrito, sem tirar nem pôr. A 10 de Novembro, a aprovação da moção de rejeição contra o XX Governo Constitucional (Passos Coelho/Portas) comprovou que a “maioria relativa” de nada serve: é indispensável uma maioria parlamentar efectiva. E, a 3 de Dezembro, o chumbo da moção de rejeição contra o XXI Governo Constitucional (António Costa) confirmou o carácter determinante de uma maioria parlamentar de apoio ou, ao menos, de tolerância. O sistema democrático é assim. Foi sempre assim. A final de contas, a fantasia é como a mentira: tem perna curta.
Claro que os líderes partidários – presumidos candidatos a primeiro-ministro – têm influência capital nos resultados eleitorais, quer pela sua própria posição de liderança, quer pela presunção de que um ou outro virá efectivamente a chefiar o governo, como habitualmente acontece, em Portugal ou noutras democracias. É esta circunstância que foi influenciando estratégias de comunicação e de marketing eleitoral, pisando a linha da fraude política, que sublinhavam a tónica da “eleição do primeiro-ministro”, procurando ao mesmo tempo afunilar o sistema partidário e maximizar o “voto útil” nos maiores partidos. Mas, de facto, a Constituição e a lei não se revêem pelo ilusionismo do marketing. O primeiro-ministro só é “eleito” se obtém uma maioria absoluta, como aconteceu, em coligação eleitoral, com Sá Carneiro (1979 e 1980) e, num partido só, com Cavaco Silva (1987 e 1991) e José Sócrates (2005). Se ninguém alcançou maioria absoluta, nenhum primeiro-ministro foi “eleito” e a sua indigitação e manutenção vai depender do jogo de apoios parlamentares, ou porque consiga formar uma coligação maioritária, ou porque alcance um espaço maioritário de tolerância, como aconteceu em outros catorze casos de Governos Constitucionais. O III Governo Constitucional (Nobre da Costa, de iniciativa presidencial) e, agora, o XX Governo Constitucional foram os únicos dois casos de governos que, formados sem condições políticas de sustentação, caíram logo, na Assembleia da República, antes de começarem a governar.
A bondade da “eleição do primeiro-ministro” é, aliás, ideia que não resiste a reflexão desapaixonada e mais pausada. Como seria possível consagrar e impor a eleição de um governo por maioria relativa? Como funcionaria um tal governo com uma maioria legislativa adversa e uma maioria de fiscalização hostil? E como se fariam as contas face às variações históricas do sistema partidário? Se passasse a haver três partidos à direita do PS, significa isso que a “direita” nunca mais governaria, ainda que somasse maioria absoluta, pois dificilmente teria um partido como o mais votado? E, na inversa, se a “direita” tivesse um só partido ou se apresentasse sempre em coligação, passaria a governar sempre, pois provavelmente teria as listas mais votadas, ainda que a “esquerda” reunisse maioria absoluta? Não vale a pena continuar: as variações do disparate são intermináveis.
De facto, a coisa não tem pés, nem cabeça.
O vendaval da “eleição do primeiro-ministro” foi, porém, tão forte que fez surgir porta-vozes defendendo ser necessário alterar o sistema eleitoral para introduzir regras de “facilitação da maioria”, delicioso eufemismo. Trata-se de sistemas de batota, à grega ou à italiana, que, por tipos diversos de bónus, convertem minoria em “maioria”. Estes mecanismos eleitorais são muito controversos e de democraticidade altamente contestável, pondo bem em evidência a perversidade daqueles raciocínios interesseiros. Não entrando em grandes discussões, basta lembrar que, na Grécia, esses truques não evitaram a crise profundíssima do país (antes pelo contrário) e que, na Itália, apesar de alvo de várias revisões, foram responsáveis pelo pântano em que o sistema político italiano vem patinhando desde há largos anos.
Em matéria de democracia, não há como aplicar o factor KISS: “keep it simple, stupid” – quanto mais simples, melhor. Por isso, a reforma eleitoral de que precisamos não tem nada a ver com malabarismos e engenharias eleitorais, favorecendo uns contra outros; mas uma afinação do sistema que aproxime eleitos e eleitores, que proteja a proporcionalidade e justa representação das pessoas, do território e das correntes políticas e que dê poder e autoridade aos deputados, em lugar de os diminuir a caudatários e claques do “primeiro-ministro eleito”.
A qualidade da nossa democracia tem vindo a degradar-se. Urgente é requalificá-la de novo.
José Ribeiro e Castro
Advogado, ex-líder do CDS
JORNAL "I", 16.Dezembro.2015
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