O novelo da novela dos feriados


1. A Assembleia da República debaterá e votará, nesta sexta-feira, 8 de Janeiro, um conjunto de projectos de lei tendentes à reposição dos feriados eliminados na legislatura anterior. Seria bom que o folhetim dos feriados acabasse aí de vez. Todavia, não há garantias de que assim seja. Pelo contrário, a introdução de um tratamento discriminatório entre feriados civis e religiosos significa que a novela se prolongará ainda, a menos que a questão seja corrigida, no entretanto.

A fonte da discriminação é o projecto inicial do Partido Socialista, que retoma um texto já debatido e reprovado na legislatura anterior. O pensamento do PS é repor já os feriados civis (5 de Outubro e 1 de Dezembro), deixando para mais tarde, “através do recurso à necessária via de diálogo e negociação no plano jurídico-concordatário”, a reposição das festas católicas do Corpo de Deus e de Todos-os-Santos.

Este escrúpulo de negociação com a Santa Sé é, a meu ver, um erro – um cuidado desnecessário. Mas essa linha do PS acabou por influenciar os outros partidos de esquerda, que tinham também iniciativas de restabelecimento dos feriados suprimidos: BE, PCP e PEV, cujos projectos iniciais previam, correctamente, a reposição, sem excepção, dos quatro feriados eliminados, acabaram por substituir os textos iniciais por outros em que passam também a determinar apenas a restauração dos dois feriados civis e a recomendar ao governo a abertura de negociações com a Igreja Católica quanto aos religiosos.

Ainda admiti que a ideia do PS fosse a de levar PSD e CDS a proporem, estes, o regresso imediato dos feriados religiosos, assim os forçando a comprometerem-se activamente com a reposição. É possível. Porém, hoje, creio que haverá aqui, provavelmente, uma tese mais profunda – tese que creio errada.



2. Tudo resulta, como logo na altura chamei a atenção, de erro infeliz do governo anterior – um erro particularmente embaraçoso, quando foi cometido para com a Santa Sé pelo líder de um partido democrata-cristão, à data ministro dos Negócios Estrangeiros.

Qual é a situação jurídica? Os feriados católicos estão directamente regulados e previstos na Concordata, celebrada em 2004 entre a Santa Sé e a República Portuguesa. No art. 30.º, fixa directamente seis festividades católicas, entre as quais Corpo de Deus (festa móvel) e Todos-os-Santos (1 de Novembro). Por isso, para as suprimir, o governo teve que negociar com a Igreja e chegar a um acordo com a Santa Sé. Foi o que aconteceu em 2012.

Todavia, o governo da altura fez mal – e fez mal em dois planos. Primeiro, assinou um acordo… e violou-o logo a seguir. Não me recordo de alguma vez isto ter acontecido na nossa história diplomática, muito menos com a Santa Sé: o acordo de Direito Internacional foi assinado (creio) a 7 de Maio de 2012 e, logo no dia 8, deu entrada na Assembleia uma emenda normativa a violá-lo – o acordo (ao que consta) contemplava uma suspensão daqueles dois feriados católicos por 5 anos; e a lei, alterada a 8 de Maio e votada a 11 em plenário, estipulou a eliminação pura e simples dos feriados, sem qualquer excepção ou ressalva.

Tudo isto está envolvido em nebulosidade, porque o governo nunca quis dar a conhecer o texto do acordo e, muito menos, o publicou – como, a meu ver, era devido. A única coisa que conhecemos são dois comunicados, dados a público a 8 de Maio de 2012 pelo governo e pela Nunciatura. A Assembleia da República foi forçada a legislar às escuras, não podendo verificar se a sua lei violava, ou não, a Concordata e o acordo celebrado – e efectivamente violou.

Um ano depois, este erro foi parcialmente mitigado por nova alteração, introduzida à socapa em lei do Verão de 2013, por que passou a prever-se que tudo isto seria “obrigatoriamente objecto de reavaliação num período não superior a cinco anos” - o que, melhorando a gaffe inicial, é bem diferente, todavia, de uma “suspensão” propriamente dita.

Sobram duas conclusões. Primeira, se o governo tinha que negociar com a Santa Sé para suspender ou eliminar feriados religiosos previstos na Concordata, não tem obviamente nada que negociar quando é para os repor, restituindo à plenitude o regime concordatário. Tenho que acordar com alguém para o desapossar do que é seu; já não tenho que negociar nada para tão-só concretizar a devolução.

E, segunda, a lei em vigor é, na parte dos dois feriados religiosos, ilegal e inconstitucional, por violar uma norma de direito internacional hierarquicamente superior. O art. 8.º, n.º 2 da Constituição dispõe: “As normas constantes de convenções internacionais regularmente ratificadas ou aprovadas vigoram na ordem interna após a sua publicação oficial enquanto vincularem internacionalmente o Estado português.” Ora, este é exactamente o caso da Concordata, cujo catálogo de feriados prevalece e aplica-se directamente. O famoso acordo, não estando publicado, é ineficaz; e se, na verdade, o acordo foi violado, a lei é inválida nessa parte.

Por tudo isto, o avisado é repor os feriados de Corpo de Deus e de Todos-os-Santos, sem mais delongas ou manobras. Já agora, o governo actual bem poderia dar a conhecer ao Parlamento o famoso acordo, para todos ficarmos realmente a saber do que é que estamos a falar.



3. Lutei especialmente pela “restauração da Restauração”, o 1.º de Dezembro, o feriado dos feriados, o mais nacional de todos os feriados nacionais. Sinto especial regozijo com a sua reposição. Gostaria mesmo que fosse uma decisão unânime; e que todos estivessem unidos no acto de o repor. Não há razão para não votar a favor. Se a eliminação foi por causa da troika, a troika já cá não está… já lá vai um tempinho. Se foi para “agradar à Senhora Merkel” (como foi revelado por uma confederação patronal), agora são outros os que têm de agradar, ou não. Se foi pela concertação social, são outros também agora os que têm de a articular.

Devemos lembrar que “não há uma segunda oportunidade para causar uma boa última impressão” – repostos os feriados, a memória e o registo que ficarão para todo o sempre serão os desta votação. Seria importante que toda a Assembleia da República, num raro momento de reconciliação que Portugal bem merece, votasse por unanimidade o restabelecimento do 1.º de Dezembro – e dos outros feriados também.


José Ribeiro e Castro
Advogado e antigo líder do CDS

PÚBLICO, 6.Janeiro.2016

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