O assalto ao quociente


1. Quando, no final dos governos Sócrates, em 2010, já com a crise escancarada, a voracidade fiscal começou a comer as deduções no IRS por despesas de saúde, pensei oportuno suscitar a apreciação da constitucionalidade desse ataque.

O art. 64.º da Constituição estipula que “todos têm direito à protecção da saúde” e o “dever de a defender e promover”. E, para realização desse direito, estabelece “um serviço nacional de saúde universal e geral e, tendo em conta as condições económicas e sociais dos cidadãos, tendencialmente gratuito”, cominando também: “incumbe prioritariamente ao Estado (…) orientar a sua acção para a socialização dos custos dos cuidados médicos e medicamentosos”.

Que doutrina de governo e jurisprudência constitucional se fixaria, naquele ângulo, quanto ao direito à saúde? Em que medida as deduções com gastos de saúde constituíam realização da gratuitidade tendencial do sistema de saúde ou, quando menos, da socialização dos respectivos custos? Isto é, onde o Estado não suportava integralmente esses custos por forma directa, permitia aos contribuintes deduzir um montante que chegou a ser de 30% das despesas com saúde.

Não tive companhia nesse propósito. O ataque fiscal contra gastos familiares em saúde veio, aliás, a prosseguir no governo PSD/CDS, continuando o ataque contra a generalidade das deduções em IRS ao abrigo do ternurento eufemismo de “simplificação”. A sofreguidão fiscal do Estado não pára.




2. Chega, agora, novo episódio com o fim do quociente familiar. Também aqui seria interessente suscitar a questão da apreciação da constitucionalidade.

Estabelece a Constituição, no art. 104.º, n.º 1: “O imposto sobre o rendimento pessoal visa a diminuição das desigualdades e será único e progressivo, tendo em conta as necessidades e os rendimentos do agregado familiar.” Ora, em novo ataque contra o Estado Social, pode o Orçamento acabar com o mecanismo que, logo na determinação do rendimento colectável, tinha “em conta as necessidades e os rendimentos do agregado familiar”, nomeadamente quanto ao número de filhos?

O quociente familiar era uma velha ideia do CDS, expressa no programa original, aprovado no início de 1975 no célebre Congresso do Palácio de Cristal. Levou quarenta anos a conseguir introduzi-lo em lei. E resulta de considerações sociais elementares – até de imperativas obrigações legais dos pais.

O Código Civil, no art. 1878.º, nº 1, determina que “compete aos pais (…) velar pela segurança e saúde [dos filhos], prover ao seu sustento [e] dirigir a sua educação”. Esclarece, ainda, o art. 1880º, que a obrigação dos pais quanto ao “sustento, segurança, saúde e educação dos filhos” mantém-se na maioridade destes, até terem “completado a sua formação profissional”.

O Código Penal reforça o quadro legal, ao criminalizar a “violação da obrigação de alimentos”. Fica claro que “quem, estando legalmente obrigado a prestar alimentos e em condições de o fazer, não cumprir a obrigação” pode ser condenado a multa até 240 dias ou cadeia até 2 anos.

Está tudo certo. Corresponde à moralidade elementar e à mais básica ética social: os pais têm o dever de cuidar dos filhos. Está certa a lei civil e também a lei penal. O que está errado é sobrecarregar os pais com impostos cada vez mais pesados, porque o fazem. É errado e estúpido dizer isto aos pais: se não cumpres, pagas multa (e podes ir preso); se cumpres, quanto mais cumprires, mais imposto pagas.

A Constituição diz que “a família, como elemento fundamental da sociedade, tem direito à protecção da sociedade e do Estado e à efectivação de todas as condições que permitam a realização pessoal dos seus membros” (art. 67.º); e repete-se, para assegurar que “os pais e as mães têm direito à protecção da sociedade e do Estado na realização da sua insubstituível acção em relação aos filhos” (art. 68.º). Ora, quando confrontados com este Orçamento de Estado, só podemos pensar uma de duas: ou é a Constituição que está a gozar connosco, ou é o Orçamento que goza com a Constituição.




3. Dirá o Governo que substitui o quociente familiar por outro mecanismo “mais justo”: a dedução fixa por cada filho, igual para todos, que sobe de 325 para 550 euros. Não é de todo a mesma coisa. E já foram publicados cálculos, pondo em evidência famílias com filhos prejudicadas a partir de níveis moderados de rendimento.

A questão é de filosofia política. O PS montou uma encarniçada bravata ideológica desde o primeiro dia da apresentação parlamentar do quociente familiar em 2014, com o argumento de que “o filho do rico valeria mais do que o do pobre”. E o resto da esquerda afinou pelo mesmo diapasão.

O argumento é vesgo e pretende fazer das pessoas estúpidas. Num sistema de imposto progressivo, os mais ricos pagam sempre muito mais imposto do que os mais pobres. É assim. De tal forma que só por tolice se pode insinuar o contrário, em tudo o que releve na formação do rendimento colectável. Acaso, no quociente conjugal, o cônjuge do rico vale mais do que o do pobre? Disparate.

O que o quociente familiar faz é atribuir a um filho um determinado coeficiente (aliás, baixo: apenas 0,3) na determinação do rendimento colectável da família. Porquê? Porque está ordenado à finalidade de sustento que é da moralidade comum e imperativo da lei, civil e penal – e, por conseguinte, não deve ser penalizado nessa medida. A via da esquerda que governa é diferente: carrega às cegas; e, depois, devolve um pequeno subsídio fiscal igualitário como dedução à colecta. Num caso, o rendimento é considerado de toda a família e protegido na sua formação; no outro, é como se os filhos fossem encargo do Estado, recebendo umas deduções à mercê do arbítrio de cada Orçamento.

O quociente familiar é uma importante inovação estrutural que começava a acertar o passo do IRS com a normal dinâmica de qualquer família com filhos, que luta para melhorar o bem-estar destes. Não é isso que a Constituição preconiza? A família que se esforça por melhorar o rendimento para prover aos filhos deixaria de ser tão penalizada por isso: não pagava mais imposto por ter mais rendimento e mais filhos; pagava por ter mais rendimento, mas não por ter mais filhos.

Agora, com a fórmula esquerdista, voltaremos ao antigamente: famílias que se esforçam por ter mais rendimento para prover aos filhos segundo a sua autonomia e o seu critério, pagarão mais imposto ao Estado – é o novo princípio socialista do “progenitor-pagador”. Depois, contas feitas, o Papá Estado devolverá um pequeno subsídio igualitário, como desconto na colecta. Não será uma visão assistencialista de caridadezinha?




4. O quociente familiar do Governo anterior era, aliás, muito limitado – e merecia crítica por isso. Por um lado, o coeficiente por filho era apenas de 0,3 – embora estando previsto subi-lo para 0,5 na primeira oportunidade. Por outro lado, tinha apertados limites quer nos efeitos na colecta, quer no número de filhos a considerar: apenas até três, ou menos ainda, se houvesse também ascendentes a considerar. Para estes limites, pesaram sem dúvida a conjuntura financeira muito adversa e o coro de críticas que logo subiu a partir da oposição de esquerda.

Mas, agora, ficamos muito pior com este regresso ao passado.

Dada a base política do Governo, não seria de surpreender que o Orçamento pudesse revelar alguma inspiração marxista. Nomeadamente, tratando-se de tirar e repartir, poderia ir beber à Crítica ao programa de Gotha a célebre fórmula de Karl Marx: “De cada um segundo as suas capacidades, a cada um segundo as suas necessidades.”

Porém, no modo como destroem o quociente familiar, o Governo e a maioria de esquerda põem antes o Estado a bradar isto às famílias: “De cada uma segundo as minhas necessidades, a cada uma segundo as possibilidades.” Socialismo. E um enorme passo atrás.



José Ribeiro e Castro
Advogado e antigo líder do CDS

PÚBLICO, 24.Fevereiro.2016

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