Mais uma legislatura perdida


A necessidade da reforma do sistema eleitoral, que aproxime eleitos e eleitores e devolva a democracia à cidadania, é uma das necessidades mais prementes do nosso sistema político. Não deve haver matéria tão badalada quanto essa. De tal forma que há vinte anos uma revisão constitucional veio permiti-la com grande amplitude. A Constituição não é aqui justificação para o imobilismo. A culpa da inércia mora unicamente nos directórios partidários, por uma razão fácil de entender: o que os eleitores ganharão em liberdade e poder de escolha, perderão os directórios em arbítrio e poder de condicionamento.

A nossa democracia transmite, na verdade, sinais consecutivos de alarme.

Um deles é a multiplicação de novos partidos. A seguir ao 25 de Abril, surgiram inúmeros partidos políticos. O tempo sedimentou o regime à volta de alguns, criando um quadro tetrapartidário, hoje pentapartidário, com uma fase de dois partidos dominantes. Mas, na última década, voltámos à onda de formação de novos partidos. É facto que nenhum deles tem obtido resultados relevantes no plano nacional, mas a pulverização do tecido partidário é sempre sintoma de crise de representação. E os comentários sociais que ecoam são igualmente sintomáticos.

O outro sinal é a abstenção: as pessoas votam com os pés, não votando sequer. Nas últimas legislativas (2015), apesar do dramatismo da eleição e da aguda bipolarização do debate, a abstenção atingiu uma percentagem record: 44,1%! E este fenómeno de alheamento da política e das eleições contamina outras eleições também. Nas últimas regionais da Madeira (2015), apesar da mudança de ciclo com a retirada de Alberto João Jardim, a abstenção superou a metade: 50,3%. As autárquicas, diversamente do que se pensa, não são excepção, apesar de serem eleições de grande proximidade: nas últimas, multiplicaram-se as candidaturas independentes e, ainda assim, a abstenção foi de 47,4%. Nas europeias, a catástrofe é, de há muito, conhecida: nas últimas (2014), a abstenção subiu a 66,2%! E a doença atingiu as próprias eleições presidenciais, eleições personalizadas e tidas por “simpáticas” – nestas últimas (2016), a abstenção passou também a metade: 51,3%.

A participação eleitoral e a representação democrática estão profundamente doentes. E um dos remédios certeiros é a reforma da eleição legislativa, o paradigma do sistema, devolvendo-lhe prestígio e autenticidade. Toda a gente diz mal dos deputados, o que ultrapassa a habitual maledicência dos políticos. Há a convicção (correcta) de que os deputados que lá estão não representam ninguém, senão aos líderes ou oligarquias que servem. Generalizou-se o descrédito da representação parlamentar, de modo injusto para muitos dos que estão em São Bento. E vulgarizou-se a ideia de reduzir drasticamente o número de deputados: para muitos cidadãos, se calhar, o melhor seria haver só cinco, os chefes – “Chegava perfeitamente! E era mais barato...”

O Presidente da República introduziu o tema, no seu muito saudado discurso do último 25 de Abril. Marcelo Rebelo de Sousa apelou a alguns consensos de regime entre as forças políticas de campos diversos, entre os quais quanto à reforma política. Fez bem – e deve continuar a fazê-lo. Mas os sinais colhidos não são bons. 

O “Diário de Notícias” fez este balanço, no dia 27: «No caso do sistema político, qualquer acordo seria sempre mais exequível entre o bloco central, devido ao sistema eleitoral. Aí, o PS não conseguirá trazer a esquerda a jogo nem o CDS alinhará com o PSD. Bloco e PCP afastam liminarmente ideias como a redução do número de deputados, a introdução de círculos uninominais ou do voto preferencial. Isto porque os partidos com menor expressão temem que a proporcionalidade da representação parlamentar saísse beliscada. Basta ver que no processo de formação de governo o PS limpou do seu programa a ideia dos círculos uninominais e o CDS matou à nascença qualquer intenção do PSD em inscrever no programa da PAF a redução do número de assentos na AR.»

Ou seja, tudo na mesma. Nada vai acontecer. Para mais, o PSD anunciou, entretanto, uma proposta que mais não será do que a continuação do estilo de fazer política como “tiros de barraquinha de feira”: nada resulta, senão o estampido. Por um lado, põe à cabeça a estafada redução acentuada do número de deputados, o que é a melhor maneira de gerar desconfiança em todos os outros. Por outro lado, avança com um muito tímido voto preferencial, que já deu para entender que é a melhor forma de fingir que se muda, deixando tudo na mesma.

Na revisão constitucional de 1997, abriram-se portas de reforma muito importantes, que constam, hoje, do artigo 149º da Constituição. Passou a ser possível evoluir para um sistema misto, à alemã, isto é, um sistema rigorosamente proporcional, com justa representação do território, dos cidadãos e das correntes políticas, com uma componente de candidaturas uninominais, além das listas plurinominais. Só esta evolução resolve o nosso problema e será capaz de restituir saúde à vida democrática e à participação da cidadania. Aliás, para os que receiem uma distorção da representação proporcional – que a experiência alemã mostra não existir – poderia ainda acrescentar-se, como última garantia, um círculo nacional de compensação, semelhante ao círculo regional introduzido na última reforma eleitoral açoriana. A possibilidade desse círculo nacional existe desde a revisão constitucional de 1989 e está igualmente a ser desperdiçada pelos nossos DDT da política, os “donos disto tudo”.

É um desconsolo ver o nosso sistema democrático a desfalecer e desacreditar-se, enquanto os dirigentes políticos empurram o tempo com a barriga, sem nada fazerem. É triste ver passarem 30 anos sobre uma revisão constitucional e 20 anos sobre outra, sem aproveitar nenhuma das portas e das alamedas abertas para reformar as nossas decrépitas eleições. Porquê? Porque o que está mal para os eleitores está bem para os DDT.

Na linha do Manifesto Por Uma Democracia de Qualidade, é preciso conseguir que os cidadãos desenvolvam o propósito de “passar a formas superiores de luta”. Se os partidos não fazem e não querem fazer, é preciso correr por fora. Estão a perder o nosso tempo.

Queremos participar. Queremos escolher.

 

José Ribeiro e Castro
Advogado, ex-líder do CDS

JORNAL "I", 11.Maio.2016 

 

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