"A call to Britain"
Há anos que me surpreendo com o debate sobre a pertença do Reino Unido ao projecto europeu. Não entendo a dúvida. Compreendo as resistências de sectores britânicos e acompanho as críticas feitas à forma como a União Europeia se tem desenvolvido, sob a pressão lunática e manhosa dos federalistas do super-Estado. Mas não compreendo de todo as dúvidas sobre a natureza europeia do Reino Unido e a sua inquestionável circunstância europeia, nem posso acompanhar aqueles britânicos que não querem contribuir e lutar para melhorar a União Europeia e desejam romper.
O discurso anti-europeu ou eurocéptico de alguns britânicos chega-nos envolvido em anedota e algum snobismo. Não tem correspondência com a realidade. Para o bem e para o mal, o Reino Unido é um dos grandes Estados europeus, um dos maiores Reinos históricos europeus. O Reino Unido fez, faz e fará sempre parte da História da Europa.
O facto de ser uma ilha não o aparta, como não afasta Chipre, Malta, nem outras ilhas dos mares do Norte ou do Mediterrâneo ou as nossas ilhas portuguesas dos Açores e Madeira. A grande ilha que é faz justamente o Reino Unido ocupar um lugar ímpar na História da Europa: nas suas grandes proezas, como nas suas grandes tragédias. Foi dessa grande ilha europeia que partiu boa parte da expansão marítima universal europeia, do mesmo modo que, séculos antes, tudo havia começado nesta península ocidental europeia onde está Portugal. Desde o Império Romano ou da Guerra dos Cem Anos até à terrível II Grande Guerra Mundial, o Reino Unido está presente – é aqui que pertence.
Se no próximo dia 23 o Brexit triunfasse no referendo, seria um grande golpe na Europa – e também no Reino Unido. Seria enorme passo atrás – e um salto no vazio e no abismo, com consequências imprevisíveis. Eu receio tudo, incluindo a guerra. Não amanhã, é certo. Mas, a prazo, mais ou menos curto, agravando as várias crises que se acastelam. Nós, europeus, que passámos boa parte dos nossos séculos a combatermo-nos de morte uns aos outros, poderemos voltar a afundar-nos nesse trágico destino de guerras recorrentes, se abandonarmos as plataformas de convergência e de cooperação e retomarmos dinâmicas de divergência e de conflito.
Em cima da decisão do Brexit é isso que está. Vamos unir? Ou vamos quebrar?
Portugal e o Reino Unido têm muito em comum. Somos ocidentais e atlânticos. Gostamos de ser livres. Prezamos a nossa relação com o mundo inteiro. Navegámos por todo o mundo. Falamos línguas europeias globais, partilhadas por muitos outros. Desconfiamos dos poderes continentais. Temos a mais antiga aliança política, celebrada pelo Tratado de Windsor, em Maio de 1386, há 630 anos. Somos os mais antigos aliados: na Europa e no mundo. É uma aliança que foi atravessada por momentos de conflito, mas que assenta em forte interesse comum, numa visão muito próxima, senão idêntica, e, por isso, longa solidariedade. Houve britânicos na conquista de Lisboa, no século XII, ao tempo da nossa fundação nacional. Houve britânicos no apoio à defesa da nossa independência na crise do século XIV, coincidente com a Guerra dos 100 Anos. Houve britânicos na resistência às invasões napoleónicas e no triunfo sobre estas. Portugal pagou com a perda de Olivença o facto de, por fidelidade à Aliança, ter repudiado o ultimato napoleónico de fechar os portos aos ingleses; e arriscou de novo a guerra com Hitler em situação paralela, mantendo uma “neutralidade” amistosa por entre prodígios diplomáticos.
Quando Portugal se tornou membro das Comunidades Europeias, em 1986, exactamente 600 anos depois do Tratado de Windsor, o Reino Unido já lá estava. E essa presença britânica no mais importante dos projectos europeus contemporâneos era para nós, portugueses, uma garantia. O Reino Unido é o único dos grandes Estados europeus que pode salvaguardar e desenvolver aquele modelo descentralizado, aberto e policêntrico da Europa que nos convém – e à Europa também. Pela sua História e geografia, bem como pela idiossincrasia que ambas geraram, pelo profundo apego à liberdade e à democracia, caldeado desde a Magna Carta, com a sua realidade e seus mitos fecundos, o Reino Unido é um raro pilar e farol de segurança para todos os que crêem numa Europa democrática e multipolar. Todos os outros grandes Estados europeus são atreitos a visões continentalistas e centralizadoras, a começar pelo badalado “eixo franco-alemão” – e têm evidentes tentações e “facilidades” não-democráticas no modo de abordar as instituições europeias, o seu funcionamento e os seus poderes.
Há longos e profundos alicerces idiossincráticos para isso. O Reino Unido nunca teve regimes ditatoriais; todos os outros grandes Estados europeus os tiveram - alguns mais do que uma vez e até há poucas décadas. E, sim, o Reino Unido também teve um Império, como Portugal; mas não foi um Império europeu, ao contrário de todos os outros grandes Estados europeus. Dizendo de outro modo: todos os grandes Estados europeus alimentaram, no passado, sonhos e projectos de domínio na Europa e sobre outros povos europeus, com excepção do Reino Unido. O Reino Unido nunca alimentou qualquer ambição imperial europeia; e, se excluirmos o caso especial da Irlanda, nunca dominou outros povos europeus – foi sempre e só um aliado. Por isso, o Reino Unido é, na União Europeia, o aliado natural de todos os pequenos e médios países, de todos os países periféricos, dos países do Sul mediterrânico, do Ocidente atlântico e do Báltico.
O Reino Unido é, ele próprio, em certo sentido, um país periférico, capaz de compreender espontaneamente todos os outros e apto a irmanar-se realmente com todos os Estados, pequenos e médios, que, ao longo da História, temeram ou sofreram as ambições territoriais dos vizinhos continentais. Esse lastro histórico de amizade e de solidariedade não pode, agora, ser rompido e deixado ao abandono.
Sempre me pareceu, nestes últimos trinta anos, que a atitude britânica relativamente ao projecto europeu sofre de contradição insanável. A contradição só pode explicar-se por uma parte das elites britânicas se terem deixado armadilhar por tiques de imprensa tabloide e mergulhado em confrangedora falta de estratégia. É comum ouvirmos a políticos britânicos críticas vigorosas ao défice democrático europeu, a uma contínua deriva centralizadora e ao modo autocrático ou oligárquico que prevalece nas instituições europeias. Estas críticas são justas – e muito necessárias. Deveriam até ser mais insistentes e vigorosas. Mas, depois, paradoxalmente, vemos o Reino Unido a acompanhar passos para maior défice democrático, maior centralização e mais autocracia ou oligarquia. Porquê? Pela armadilha do “eurocepticismo” em que a acção política britânica se deixou aprisionar.
Num primeiro momento, os britânicos criticam tudo; e fazem gala em declarar, alto e bom som, que não acreditam em nada da UE. Assim, desacreditam-se junto dos pares; e desacreditam também todas as suas propostas, imediatamente olhadas com desconfiança. Tornam-se um companheiro ou um aliado impossível, já que nenhum “eurocéptico” pode ser companheiro de um “eurocrente”. Isolam-se e contribuem para o insucesso das suas ideias – por mais sérias que sejam, as propostas de um orgulhoso eurocéptico são sempre olhadas como filhas de reserva mental. E, no final, não tendo conseguido fazer avançar qualquer das suas ideias de democratização, abertura e descentralização, os britânicos terminam a agir como um grande Estado que são, mas ao lado dos outros grandes Estados europeus que têm tipicamente interesses e visão contrários aos seus. O Reino Unido apoiou a Presidência fixa do Conselho; apoiou que os Estados-membros deixem de ter um Comissário cada; apoiou o fim das Cimeiras rotativas pelos diferentes Estados-membros; nunca apoiou um Parlamento Europeu bicameral. Isto é, o eurocepticismo tem prejudicado o prestígio e o avanço europeu dos pontos de vista britânicos, em concertação com todos os outros Estados-membros que partilham a defesa de uma Europa equilibrada, aberta e descentralizada; e, no final, tem acabado por arrastar o Reino Unido para o contrário do que quer e lhe convém.
O referendo do dia 23 deveria ser um novo ponto de partida. Deveria ser o novo Dia D, o dia em que os britânicos dizem isto: “Sim, somos europeus. Mas queremos uma União Europeia diferente; e vamos trabalhar para isso.” Na Europa, há centenas de milhões de cidadãos comuns à espera disto.
Please, don’t leave! Please, stay with us.
God save Britain! God save Europe!
O discurso anti-europeu ou eurocéptico de alguns britânicos chega-nos envolvido em anedota e algum snobismo. Não tem correspondência com a realidade. Para o bem e para o mal, o Reino Unido é um dos grandes Estados europeus, um dos maiores Reinos históricos europeus. O Reino Unido fez, faz e fará sempre parte da História da Europa.
O facto de ser uma ilha não o aparta, como não afasta Chipre, Malta, nem outras ilhas dos mares do Norte ou do Mediterrâneo ou as nossas ilhas portuguesas dos Açores e Madeira. A grande ilha que é faz justamente o Reino Unido ocupar um lugar ímpar na História da Europa: nas suas grandes proezas, como nas suas grandes tragédias. Foi dessa grande ilha europeia que partiu boa parte da expansão marítima universal europeia, do mesmo modo que, séculos antes, tudo havia começado nesta península ocidental europeia onde está Portugal. Desde o Império Romano ou da Guerra dos Cem Anos até à terrível II Grande Guerra Mundial, o Reino Unido está presente – é aqui que pertence.
Se no próximo dia 23 o Brexit triunfasse no referendo, seria um grande golpe na Europa – e também no Reino Unido. Seria enorme passo atrás – e um salto no vazio e no abismo, com consequências imprevisíveis. Eu receio tudo, incluindo a guerra. Não amanhã, é certo. Mas, a prazo, mais ou menos curto, agravando as várias crises que se acastelam. Nós, europeus, que passámos boa parte dos nossos séculos a combatermo-nos de morte uns aos outros, poderemos voltar a afundar-nos nesse trágico destino de guerras recorrentes, se abandonarmos as plataformas de convergência e de cooperação e retomarmos dinâmicas de divergência e de conflito.
Em cima da decisão do Brexit é isso que está. Vamos unir? Ou vamos quebrar?
Portugal e o Reino Unido têm muito em comum. Somos ocidentais e atlânticos. Gostamos de ser livres. Prezamos a nossa relação com o mundo inteiro. Navegámos por todo o mundo. Falamos línguas europeias globais, partilhadas por muitos outros. Desconfiamos dos poderes continentais. Temos a mais antiga aliança política, celebrada pelo Tratado de Windsor, em Maio de 1386, há 630 anos. Somos os mais antigos aliados: na Europa e no mundo. É uma aliança que foi atravessada por momentos de conflito, mas que assenta em forte interesse comum, numa visão muito próxima, senão idêntica, e, por isso, longa solidariedade. Houve britânicos na conquista de Lisboa, no século XII, ao tempo da nossa fundação nacional. Houve britânicos no apoio à defesa da nossa independência na crise do século XIV, coincidente com a Guerra dos 100 Anos. Houve britânicos na resistência às invasões napoleónicas e no triunfo sobre estas. Portugal pagou com a perda de Olivença o facto de, por fidelidade à Aliança, ter repudiado o ultimato napoleónico de fechar os portos aos ingleses; e arriscou de novo a guerra com Hitler em situação paralela, mantendo uma “neutralidade” amistosa por entre prodígios diplomáticos.
Quando Portugal se tornou membro das Comunidades Europeias, em 1986, exactamente 600 anos depois do Tratado de Windsor, o Reino Unido já lá estava. E essa presença britânica no mais importante dos projectos europeus contemporâneos era para nós, portugueses, uma garantia. O Reino Unido é o único dos grandes Estados europeus que pode salvaguardar e desenvolver aquele modelo descentralizado, aberto e policêntrico da Europa que nos convém – e à Europa também. Pela sua História e geografia, bem como pela idiossincrasia que ambas geraram, pelo profundo apego à liberdade e à democracia, caldeado desde a Magna Carta, com a sua realidade e seus mitos fecundos, o Reino Unido é um raro pilar e farol de segurança para todos os que crêem numa Europa democrática e multipolar. Todos os outros grandes Estados europeus são atreitos a visões continentalistas e centralizadoras, a começar pelo badalado “eixo franco-alemão” – e têm evidentes tentações e “facilidades” não-democráticas no modo de abordar as instituições europeias, o seu funcionamento e os seus poderes.
Há longos e profundos alicerces idiossincráticos para isso. O Reino Unido nunca teve regimes ditatoriais; todos os outros grandes Estados europeus os tiveram - alguns mais do que uma vez e até há poucas décadas. E, sim, o Reino Unido também teve um Império, como Portugal; mas não foi um Império europeu, ao contrário de todos os outros grandes Estados europeus. Dizendo de outro modo: todos os grandes Estados europeus alimentaram, no passado, sonhos e projectos de domínio na Europa e sobre outros povos europeus, com excepção do Reino Unido. O Reino Unido nunca alimentou qualquer ambição imperial europeia; e, se excluirmos o caso especial da Irlanda, nunca dominou outros povos europeus – foi sempre e só um aliado. Por isso, o Reino Unido é, na União Europeia, o aliado natural de todos os pequenos e médios países, de todos os países periféricos, dos países do Sul mediterrânico, do Ocidente atlântico e do Báltico.
O Reino Unido é, ele próprio, em certo sentido, um país periférico, capaz de compreender espontaneamente todos os outros e apto a irmanar-se realmente com todos os Estados, pequenos e médios, que, ao longo da História, temeram ou sofreram as ambições territoriais dos vizinhos continentais. Esse lastro histórico de amizade e de solidariedade não pode, agora, ser rompido e deixado ao abandono.
Sempre me pareceu, nestes últimos trinta anos, que a atitude britânica relativamente ao projecto europeu sofre de contradição insanável. A contradição só pode explicar-se por uma parte das elites britânicas se terem deixado armadilhar por tiques de imprensa tabloide e mergulhado em confrangedora falta de estratégia. É comum ouvirmos a políticos britânicos críticas vigorosas ao défice democrático europeu, a uma contínua deriva centralizadora e ao modo autocrático ou oligárquico que prevalece nas instituições europeias. Estas críticas são justas – e muito necessárias. Deveriam até ser mais insistentes e vigorosas. Mas, depois, paradoxalmente, vemos o Reino Unido a acompanhar passos para maior défice democrático, maior centralização e mais autocracia ou oligarquia. Porquê? Pela armadilha do “eurocepticismo” em que a acção política britânica se deixou aprisionar.
Num primeiro momento, os britânicos criticam tudo; e fazem gala em declarar, alto e bom som, que não acreditam em nada da UE. Assim, desacreditam-se junto dos pares; e desacreditam também todas as suas propostas, imediatamente olhadas com desconfiança. Tornam-se um companheiro ou um aliado impossível, já que nenhum “eurocéptico” pode ser companheiro de um “eurocrente”. Isolam-se e contribuem para o insucesso das suas ideias – por mais sérias que sejam, as propostas de um orgulhoso eurocéptico são sempre olhadas como filhas de reserva mental. E, no final, não tendo conseguido fazer avançar qualquer das suas ideias de democratização, abertura e descentralização, os britânicos terminam a agir como um grande Estado que são, mas ao lado dos outros grandes Estados europeus que têm tipicamente interesses e visão contrários aos seus. O Reino Unido apoiou a Presidência fixa do Conselho; apoiou que os Estados-membros deixem de ter um Comissário cada; apoiou o fim das Cimeiras rotativas pelos diferentes Estados-membros; nunca apoiou um Parlamento Europeu bicameral. Isto é, o eurocepticismo tem prejudicado o prestígio e o avanço europeu dos pontos de vista britânicos, em concertação com todos os outros Estados-membros que partilham a defesa de uma Europa equilibrada, aberta e descentralizada; e, no final, tem acabado por arrastar o Reino Unido para o contrário do que quer e lhe convém.
O referendo do dia 23 deveria ser um novo ponto de partida. Deveria ser o novo Dia D, o dia em que os britânicos dizem isto: “Sim, somos europeus. Mas queremos uma União Europeia diferente; e vamos trabalhar para isso.” Na Europa, há centenas de milhões de cidadãos comuns à espera disto.
Please, don’t leave! Please, stay with us.
God save Britain! God save Europe!
José Ribeiro e Castro
Advogado e antigo líder do CDS
PÚBLICO, 18.Junho.2016
PÚBLICO, 18.Junho.2016
Comentários
Enviar um comentário