Quem tem medo dos círculos uninominais?


A maior inovação da revisão constitucional de 1997 foi a abertura à introdução de círculos uninominais na eleição da Assembleia da República. A janela está aberta no quadro de um sistema rigorosamente proporcional e, portanto, em articulação com círculos plurinominais como os que existem hoje. As resistências, porém, têm sido fortíssimas; e, 20 anos passados, nada aconteceu. Somos um país adiado.

Para o leitor menos batido nestas coisas, uma explicação breve. Nos círculos uninominais, escolhemos apenas um nome, um deputado. Nos círculos plurinominais, elegemos vários deputados de entre listas com vários nomes. No primeiro caso, escolhemos para nosso representante quem preferimos. No segundo, escolhemos uma lista de partido, sendo os candidatos eleitos conforme a proporção obtida por cada lista: escolhemos partido, não escolhemos deputados.

Um sistema só de círculos uninominais pode ser muito injusto, na representação das correntes políticas. As eleições inglesas são disso exemplo; e as francesas, em menor grau, também. Já um sistema só de círculos plurinominais pode tornar-se distante, na relação eleito/eleitor. Foi o que nos aconteceu. Se for possível um sistema misto, isto é, um sistema que articule os dois tipos de círculos, seria o ideal: esse sistema daria, ao mesmo tempo, representação justa e representação próxima.

Ora, é possível. O sistema existe e bem experimentado. Dá muito boas provas. É o sistema eleitoral da Alemanha. Impecável! O único defeito, na perspectiva da proporcionalidade (não já na da governabilidade), está na regra da percentagem mínima de 5%, o que, em Portugal, está proibido – e muito bem. Conquanto aberta a diferentes possibilidades, é para o sistema misto que aponta a Constituição, desde 1997 – art.º 149º: «lei pode determinar a existência de círculos plurinominais e uninominais, bem como a respectiva natureza e complementaridade, por forma a assegurar o sistema de representação proporcional».
Houve algumas tentativas, sérias e consistentes, de lhe dar sequência, ainda no final da década de 90. Foram promovidas pelo PS, que governava na altura; e contaram com a colaboração de instituições universitárias, o que dava garantias de prestígio, qualidade, seriedade e independência ao processo – garantias sobretudo no desenho geográfico dos círculos, onde, a não haver seriedade e isenção, podem fazer-se muitos truques. Mas esses esforços foram bloqueados e frustrados; e, desde então, qualquer reforma eleitoral é sabotada. Têm sido 20 anos de degradação, 20 anos de crescente descontentamento do eleitorado, 20 anos de inércia e paralisia, 20 anos de ilusão, de engano e de bocejo.

Portugal necessita de um novo sistema eleitoral que reduza o poder dos directórios partidários, reforce o poder de escolha dos eleitores, isto é, do povo (como é próprio de uma democracia), recupere o interesse e a mobilização da cidadania e restitua saúde ao sistema partidário. O sistema misto seria o ideal, para alcançar todos esses efeitos. Mas nem essa, nem outras hipóteses têm avançado. Quem está sentado em cima do sistema – e ganha com ele – resiste. Para manter-se aí sentado.

Na trincheira dos directórios, os uninominais têm sido o maior alvo; e são frequentemente difamados. O Bloco, desde Francisco Louçã, acusa-os de tentativa de concentração nos dois maiores partidos e chega a apelar à convergência com o CDS, que, com Paulo Portas, fugiu sempre de qualquer reforma como o diabo da cruz. O PCP alinha pelo mesmo diapasão, atacando-os porque só favoreceriam os “grandes”. O PSD não chega a tomar posição; não sai daquele fetiche obsessivo de reduzir a 180 os deputados, gerando desconfianças gerais e pondo toda os outros contra – o que acaba por ser um imobilismo sofisticado: fingindo que se quer reformar, realmente bloquear. E o CDS, na linha Paulo Portas, corresponde em substância aos acenos do BE, acenando também para o lado de lá: não apresenta qualquer ideia e frustra todas as propostas. Para os que mandam… como está, está bem.

Esta rejeição dos uninominais, como previstos na Constituição, é eco de preconceito e de falta de estudo. Os críticos habituaram-se a criticar os uninominais à inglesa ou como existiram na Monarquia Constitucional e na 1ª República; e nem se dão conta de a previsão constitucional apontar a um sistema totalmente diferente. As críticas seriam justas; mas a realidade é outra.

Num sistema à alemã, não há qualquer distorção representativa: dada a articulação entre círculos uninominais e plurinominais, os ajustamentos são automáticos ao escrutinar os resultados, garantindo-se a rigorosa proporcionalidade da representação parlamentar. Não é verdade que os partidos mais pequenos sejam prejudicados: primeiro, nos círculos uninominais, os pequenos também podem furar o sistema, se apresentarem candidatos muito bons; e, segundo, nunca há qualquer prejuízo (nem benefício) no conjunto do sistema, pois prevalece sempre a proporcionalidade da repartição partidária dos votos.

Em Portugal, o sistema pode ser ainda melhor, já que, desde 1989, a Constituição permite aditar, no topo, um círculo nacional (plurinominal), apto a funcionar como última válvula de segurança da representação proporcional, à semelhança da reforma eleitoral açoriana de 2006. Mas também essa possibilidade, aberta há quase 30 anos, é deixada na gaveta. Na verdade, um país adiado – enquanto a imagem e o prestígio da política se degradam.

O grande efeito de introduzir candidatos uninominais reside na forte alteração que provocará na cultura política de todo o sistema. Sendo eleita uninominalmente a metade dos deputados, a escolha dos candidatos libertar-se-á da decadência servil em que se atolou. E contagiará positivamente toda a representação, incluindo na formação das listas plurinominais. Directório que impusesse escolhas erradas, seria penalizado e… perderia – como deve ser.

Na cavada crise a que o país chegou, é imperativo mudar a maneira de fazer política. Isso só se consegue com novos deputados. Ora, isso faz-se nem tanto mudando necessariamente as pessoas dos deputados; mas mudando, acima de tudo, a forma como são escolhidos, primeiro, e eleitos, depois. Só com círculos uninominais iremos lá.

O sistema reganha autenticidade e as listas deixam de ser biombos de amiguismo, clientelismo e combinatas. Teremos uma outra cultura de representação: de baixo para cima e não de paus-mandados. As bases recuperam influência e a cidadania ganha poder. Em vez de uma democracia decadente e desfalecida, voltamos a tê-la viva e vibrante, com capacidade convocatória e prestígio popular. Por que têm medo disto?



José Ribeiro e Castro
JORNAL "I", 29.Junho.2016

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