São Tomé e Príncipe: mudança e estabilidade


Amanhã, 7 de Agosto, Evaristo Carvalho deverá ser eleito Presidente da República de São Tomé e Príncipe. É a consolidação de uma mudança de ciclo, facto da maior relevância a que as autoridades portuguesas deverão dar o melhor acolhimento e destaque. Evaristo Carvalho não é novato nestas andanças, mas um dos mais experientes políticos são-tomenses. Começou com Miguel Trovoada, um dos dois grandes nomes históricos da política do país. E seguiu longa e dedicada carreira: deputado, ministro, duas vezes primeiro-ministro, Presidente da Assembleia Nacional.

Há cinco anos, fora já candidato pela ADI às presidenciais. Na altura, foi apurado para a segunda volta com Manuel Pinto da Costa: este venceu com 52,9%. Desta feita, a mesma dupla deveria estar na segunda volta, mas as posições inverteram-se; e, como os números sorriem a Evaristo Carvalho, com amplo apoio popular na primeira votação, Pinto da Costa não quer sujeitar-se de novo a votos.

Este sufrágio tem sido acidentado, o que alguns tentam aproveitar para denegrir as instituições e o processo. Não têm ponta de razão. Qualquer olhar sobre os factos só põe em evidência a consolidação democrática em São Tomé e Príncipe.

Na primeira volta, a 17 de Julho, Evaristo Carvalho começou por ser declarado vencedor e possivelmente já eleito, por margem tangencial. Mas, escassos dias depois, ainda em escrutínio provisório, a Comissão Eleitoral Nacional, recebidos e contados os votos do estrangeiro e de uma votação local diferida, assim como corrigidos erros detectados, declarou a necessidade de segunda volta. Isso mesmo seria confirmado no apuramento geral pelo Tribunal Constitucional: Evaristo Carvalho que, na primeira contagem pública, surgira com 94 votos acima da metade necessária, acabou por ficar 83 votos abaixo da metade.

Os dois principais derrotados logo se precipitaram a condenar alegados vícios e a mover impugnações, que o Tribunal Constitucional julgou e rejeitou – e bem. Com os seus apoiantes mais sonoros, visam o primeiro-ministro Patrice Trovoada e o seu partido ADI e querem alvejar particularmente a CEN. Porém, se há evidência intuitiva para qualquer observador de boa-fé é a de Comissão Eleitoral ter agido com absoluta independência em relação ao Governo e à ADI – e muito bem. Se estivesse às ordens do primeiro-ministro, iria a CEN “baixar” os votos do candidato ADI entre a contagem provisória e o escrutínio final? Iria “forçar” uma segunda volta, em vez de a “dispensar”?

Acusações de fraude também caem pela base. As eleições em São Tomé poderão ter falhas e insuficiências, mas não mancham minimamente a larguíssima vantagem que Evaristo Carvalho alcançou na primeira votação sobre os mais directos competidores: ele com 49,9%, Pinto da Costa e Maria das Neves um pouco abaixo dos 25% cada. Por outro lado, essas falhas não foram maiores do que em eleições anteriores, nomeadamente nas que elegeram Manuel Pinto da Costa ou levaram Maria das Neves à posição de primeira-ministra. Pelo contrário, observadores independentes coincidem em notar que as eleições são-tomenses têm melhorado de acto para acto, nomeadamente no enfraquecimento da deplorável – e estúpida, digo eu – prática do “banho”: já assim fora em 2014; novamente agora em 2016.

Não há país democrático do mundo em que apuramento final e escrutínio provisório coincidam. Reclamações, recontagens, correcção de erros de actas ou de comunicação, reavaliação de votos nulos, votações repetidas ou diferidas, inclusão dos votos no estrangeiro, tudo isso são factores que determinam diferenças entre o provisório e o definitivo. Ao contrário do clamor dos derrotados, sinal de ditadura ou manipulação seria se os números coincidissem e nenhuma diferença ocorresse. O apuramento final poderia ter ampliado a estreitíssima margem que daria a eleição de Evaristo Carvalho logo a 17 de Julho. Assim como poderia tê-la apagado. Foi esta última hipótese que aconteceu e, para honra da democracia em São Tomé, quer a CEN, quer o Tribunal agiram de acordo com a objectividade dos factos e a letra da lei, com exemplar independência face ao poder executivo.

Pinto da Costa e Maria das Neves só devem queixar-se de si próprios por não terem concertado posições antes de 17 de Julho, permitindo que um deles disputasse realmente a eleição ou, havendo segunda volta, a ela acedesse em melhor posição. Nem podem queixar-se da lei eleitoral: é a mesma que Pinto da Costa adoptou, aquando da transição para o multipartidarismo em 1990; e a mesma com que ambos já disputaram várias eleições. Resta-lhes rever as suas posições para entenderem por que ficaram tão atrás de Evaristo Carvalho.

Agora, fugir… é feio – e uma saída pela esquerda baixa. Ao forçar a sua desistência no passado 1 de Agosto, Pinto da Costa, nos termos da lei eleitoral, transformará automaticamente em votos nulos os boletins de seus eventuais eleitores persistentes. Com isso, a acrescer a um possível aumento da abstenção, tentará enfraquecer a inevitável vitória democrática de Evaristo Carvalho: mas, de facto, só irá ampliá-la ainda mais. A História guarda apenas os dados objectivos, não os maus humores e estados de alma.

Manuel Pinto da Costa, figura histórica incontornável, e Maria das Neves, antiga primeira-ministra, são políticos com responsabilidade. O primeiro merecia saber terminar o mandato de forma mais brilhante; a segunda nada ganha para o futuro em enveredar por bravatas sem visão, nem grandeza. O povo são-tomense escolheu a mudança em 12 de Outubro de 2014, ao dar maioria absoluta a Patrice Trovoada e à ADI – que ganhou também largamente as eleições autárquicas no mesmo dia. Agora, dois anos depois de uma governação muito difícil, escolhe a estabilidade com Evaristo Carvalho, para manter o rumo e abrir melhores perspectivas.

São Tomé e Príncipe é um pequeno país com elevado potencial. O maior adversário tem estado dentro de si, traduzindo-se em rivalidades extremas e crónica instabilidade política: desde a transição democrática em 1990, já vai em dezanove governos. Foi esse longo ciclo de constante inconsequência e de arrastado atraso que Patrice Trovoada, junto com uma visão moderna e ambiciosa para o país, quis quebrar. Está a conseguir. Olhando à história democrática recente, vemos como o futuro poderia ter começado logo em 2010, se Pinto da Costa tivesse compreendido a mudança e não escolhesse o conflito institucional, desgastando e derrubando o governo legítimo de Trovoada. Em 2016, finalmente, a História acerta o passo – e, agora, com as duas pernas.

Os detractores da mudança democrática deveriam olhar para Cabo Verde. Em 2001, numa história célebre, um Presidente foi eleito apenas por 17 votos. Os cabo-verdianos souberam transformar esse abismo de fractura em vantagem, afirmando internacionalmente a maturidade democrática das suas instituições, dos partidos e das elites dirigentes, o que se tem consolidado como um mais poderosos activos da Nação e seu prestígio externo. São Tomé e Príncipe também precisa disso, não de intriga corrosiva.

Toda a CPLP abraçará certamente o novo rumo escolhido democraticamente pelo povo são-tomense. Comecemos por nós, em Portugal, recuperando o tempo perdido. No governo anterior, o ministro dos Estrangeiros, Paulo Portas, não arranjou tempo para visitar São Tomé e Príncipe, em mais um sinal do declínio português quanto à CPLP; e Rui Machete, a seguir, chegou a ter a visita marcada, mas o fim da legislatura levou a um adiamento que não se cumpriu. É desejável que o governo saiba reparar este passivo político e aproveitar as novas oportunidades, dentro de um trabalho geral de reabilitação abrangente da nossa política externa com a CPLP. São Tomé espera por nós e bem merece a nossa ajuda, compreensão e apoio, no quadro importantíssimo da região do Golfo, seja no que directamente nos toca, seja em articulação engenhosa com as políticas da União Europeia para a área, numa frente que se abre desde a Parceria Especial com Cabo Verde até às privilegiadas relações com Angola.

Além de mudança, tudo indica que haverá estabilidade. É o tempo certo para relançar.



José Ribeiro e Castro
Advogado e antigo líder do CDS

PÚBLICO, 6.Agosto.2016

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