Prefácio | “Cabinda – Órfã da descolonização do Ultramar português”
1. Sensibilizou-se muito o convite do autor, Raul Tati, para prefaciar este seu novo livro. Sinto-me honrado. É com um caldo de memórias largas e de sentimentos vivos que escrevo estas palavras, depois de ter lido a sua obra, carregada de conhecimento, de experiência, de História e de vida.
Conheço mal Cabinda; não me considero um seu especialista. Tenho lido sobre Cabinda. Tenho alguns amigos cabindas, que fui conhecendo e muito estimo. Sigo as notícias de Cabinda. Só fui uma vez a Cabinda. E, em resumo, é isto. O único título que tenho quanto a Cabinda é o de gostar de Cabinda.
Gosto em geral de África. Gosto muito de África, da África negra, a África ao sul do Sahara. Gosto em especial da África que fala português, que partilha História, cultura e gentes connosco. Gosto de uma forma especial de tudo o que a Angola diz respeito. Pode ser que tenha para aqui algum sangue africano, o que num português é sempre possível – como de outras partes do mundo. Gosto muito dos africanos. Adivinho-lhes um grande futuro. Quero-lhes um grande futuro. Com os melhores deles sou capaz de sonhar – e efectivamente sonho – esse grande futuro.
Explico: “os melhores deles” são, para mim, em perspectiva cristã, os mais simples deles, os mais genuínos e autênticos, os que nunca se desligaram da terra, nem dos seus pares e dos seus iguais, ou dos mais pequenos dos seus. São os que guardam a capacidade de rir e de chorar, os únicos que sabem sonhar – aqueles que são capazes de continuar a sorrir debaixo das injustiças e para além das agruras, aqueles que vivem o presente sempre com alegria e com esperança. São esses o sinal – e a mola. É deles que é “o reino dos Céus”, como prometem as bem-aventuranças.
Acredito genuinamente que esse futuro radioso, de liberdade, de identidade, de prosperidade, de justiça, de paz, está reservado para os africanos; e que lhes está reservado mais cedo do que pode imaginar-se.
É com este óculo que olho, por sistema, para os problemas e dramas de África. Para o futuro: um futuro não só melhor, mas um futuro realmente bom. E, portanto, olho logo para a sua construção. É nesta construção do futuro que estou sempre a pensar.
O passado explica-nos de onde vimos e onde pertencemos – é preciso tê-lo sempre em conta. Já o futuro não tem explicação, só tem feitura – somos nós que o fazemos. Só se explica naquele outro dia mais tarde em que até o futuro se torna também passado.
2. A única vez que fui a Cabinda foi em 1973. Eu tinha 19 anos de idade, o meu pai era o Governador-Geral de Angola – Fernando Santos e Castro, para quem não saiba. Não me recordo exactamente do mês. Mas foi já nas férias do Verão de 1973, tempo do cacimbo em Angola. Tinha acabado o 3º ano de Direito, na FDL, Universidade de Lisboa, de que uma das cadeiras era “Administração e Direito Ultramarino”. Nesta cadeira, abordara-se alguma coisa de Cabinda e a sua especialidade – não muito. Tendo a oportunidade, tive curiosidade de lá ir.
Lembro-me de ter feito umas perguntas ao meu pai, que me respondeu algo como Cabinda estar integrada sob o Governo-Geral de Angola, embora o respectivo governador de distrito tivesse “umas instruções especiais”. Os distritos eram o que são, hoje, as províncias de Angola – província era, então, Angola toda, uma “província ultramarina”; também Estado, desde a revisão constitucional portuguesa de 1971. Na altura, o Estado de Angola dividia-se administrativamente em 16 distritos: não havia o Bengo, sendo tudo Luanda; e não havia duas Lundas, mas uma só. No mais, era como as províncias de hoje.
Meti-me no avião e fui. Fui sozinho. Tive uma pequena conversa com o governador de distrito, uma excelente pessoa, Manuel Themudo Barata, na altura Brigadeiro. Falámos do Tratado de Simulambuco, sobre que eu já tinha lido e por que ele tinha particular devoção – recomendou-me que visitasse o seu monumento. Confirmou-me que cuidava com particular cuidado do relacionamento com as autoridades tradicionais. Eram estas, pareceu-me, as “instruções especiais” da administração de Cabinda, de que falara o meu pai e que a distinguiam dos outros quinze distritos de Angola.
Visitei Cabinda do fim da manhã até ao anoitecer, só na cidade e seus arredores. Andei por lá e conversei aqui e ali. Do que vi, ficou-me como uma das duas memórias mais fortes o Monumento ao Tratado de Simulambuco.
Era muito simples, lembrando um antigo padrão dos Descobrimentos. Tinha o escudo português, com as cinco quinas, e a esfera armilar no topo, uma legenda breve na base. Limitava-se a assinalar a assinatura desse tratado matricial e o seu lugar. Ainda bem que o Brigadeiro Themudo Barata insistiu para que eu fosse lá. Na sua extrema simplicidade, tem-se bem a noção de se estar perante um marco histórico. Era um padrão erecto num largo espaço vazio, apenas com uma árvore frondosa por perto. Embora não fosse muito alto, talvez uns 5 a 6 metros de altura, não passava despercebido. Era local de veneração local. Não há dúvida: os monumentos valem nem tanto pela majestade arquitectónica, mas pelo simbolismo que guardam e pela memória que celebram. Assim é o padrão de Simulambuco. E dizem-me que há (ou houve) também um outro em Chinfuma; não vi.
A outra memória mais forte que me ficou dessa visita de um só dia a Cabinda foi um disco da Deutsche Grammophon que comprei: um LP em vinil, com a interpretação pela Filarmónica de Berlim do Concerto n.º 5 de Beethoven para piano e orquestra, com destaque a Wilhelm Kempff ao piano e sob direcção do maestro Ferdinand Leitner. Cabinda era, então, uma zona franca, onde estas coisas, portanto, se adquiriam livres de impostos aduaneiros e muito mais baratas. Comprei o disco como recordação, aproveitando o ensejo.
A coisa cumpriu absolutamente a função: ainda hoje tenho esse disco, que ouvi dezenas de vezes. Sempre que o punha, era de Cabinda que me lembrava; e, se estava na companhia de alguém, nunca deixava de dizer: «olha, comprei este disco em Cabinda». Na verdade, “as malhas que o Império tece…” – um concerto alemão a fazer lembrar Cabinda a um português.
O concerto chama-se “Imperador” e, de facto, é majestoso e brilhante. Quem não o conhece, que o oiça – terá 40 minutos de delícia. Quem o conhece, que volte a ouvi-lo. Uma ajuda: vi, agora, que alguém colocou no YouTube a mesma interpretação do meu disco. [1]
Há alguns anos que já não ouvia esse específico LP em vinil; existem, hoje, suportes mais práticos e múltiplas interpretações. Todavia, Cabinda e o “Imperador” de Beethoven ficaram-me para sempre associados na memória e, a pouco e pouco, também gravados juntos no coração. É de Cabinda 1973 que me lembro sempre, quando oiço o allegro, o addagio e os rondo e allegro final desse concerto.
Pu-lo, agora, outra vez a tocar como música de fundo para escrever este prefácio, a fim de sintonizar-me melhor com as minhas memórias e emoções.
3. Gostava muito de uma citação que ouvi várias vezes a meu pai: «cultura geral é o que sabemos depois de termos esquecido tudo o que lemos e aprendemos.» A frase original efectivamente refere-se à cultura e não só à cultura geral – «Cultura é o que fica depois de se esquecer tudo o que foi aprendido.» – e já a vi atribuída a André Malraux, a André Maurois e a outros autores franceses de menor nomeada. Não sei de quem é a frase original, mas a ideia que exprime é correcta. O que aqui vou reflectir sobre Cabinda é uma ilustração disso: o que sei, depois de ter esquecido.
Na visão romântica que tenho da relação de Portugal com África, Cabinda ocupa um lugar especial; e integra, de algum modo, a visão parceira e contratual que tenho dos laços históricos luso-africanos.
Portugal não quis ter um império africano. Portugal começou a navegar e a descobrir para lá do mar e, a certa altura, quis chegar à Índia. Foi ainda mais longe, até ao Oriente mais distante. Mas a África ao sul de Marrocos era tão-só caminho de passagem. A geral descoberta das costas africanas foi feita no caminho para a Índia: primeiro, para Sul até ao cabo da Boa Esperança e, depois, outra vez para Norte, Índico acima. Não houve nenhum projecto de ocupação ou de domínio africano. E as primeiras relações que estabelecemos são relações contratuais e de respeito mútuo. Muito antes dos tratados cabindas e do seu contexto específico, já a Coroa portuguesa nos finais do século XV e princípio do século XVI estabelecia relações formais com os reis do Congo e até laços familiares e de amizade entre as duas casas reais. Isto é único. E é muito bonito.
Houve certamente episódios de conflito. Mas, de um modo geral, as relações entre os portugueses e os povos da costa africana foram pacíficas e amistosas – de passagem, de evangelização e de comércio –, desde o início, no segundo quartel do século XV, até aos finais do século XIX. Mesmo o tráfico negreiro, que integra a partir de certa altura esse relacionamento comercial – dói só escrever estas palavras –, era feito em contrato e cooperação com os reinos africanos do litoral.
Não é edificante, nem radioso, mas era assim: os negros do litoral capturavam negros do interior, que, depois, os brancos transportavam abundantemente para as Américas, muito pouco para a Europa e outras partes. Havia como que uma subcontratação do esclavagismo; e isso integrou, vergonha da Humanidade, as relações comerciais intercontinentais. Já era, aliás, assim no tempo do Império Romano, fazendo-se as rotas, então, pelo Sahara ou pelo Nilo e servindo de intermediários os povos do deserto.
Creio ter sido assim com os povos cabindas, do mesmo modo como, mais a Norte, com os diversos povos africanos com que tratávamos tradicionalmente desde a foz do Níger até à do Ogooué, numa extensa faixa litoral. Hoje, este outro espaço estende-se desde a costa norte dos Camarões até ao litoral médio do Gabão, tendo tudo passado para domínio espanhol no final do século XVIII, pelo Tratado de El Pardo, junto com as ilhas portuguesas de Fernando Pó (hoje, Bioko) e Ano Bom – reinava, então, em Portugal, D. Maria I. É esta ancestralidade connosco que se guarda na Guiné Equatorial.
A recíproca habitualidade convivial e comercial, apenas interrompida ocasionalmente por conflitos de posse com outros europeus (holandeses, franceses, ingleses), durou tranquilamente ao longo de quase quatro séculos, desde a chegada de Diogo Cão à foz do Zaire (ou Congo), em 1482, que data a nossa descoberta de Angola, e a chegada dos primeiros portugueses a Cabinda, em 1491, a bordo da “Nossa Senhora da Atalaia”.
4. Se exceptuarmos o sonho marroquino de D. Afonso V, definitivamente morto na fogosa insensatez de D. Sebastião, a completa ausência de aspiração imperial africana dos portugueses prolongou-se até aos finais do século XIX. O que inicialmente nos movia era a Índia. E, depois da Índia, foi tempo de nos concentrarmos no Brasil.
É no final do século XIX que o quadro muda dramaticamente, com o aumento da pressão europeia sobre África e o advento do colonialismo, que tornou inviável o modelo mais ou menos convivial que havia sido o modo português desde o século XV. A posse efectiva do território e a subordinação administrativa e militar tornaram-se condição indispensável, como a Conferência de Berlim consagrou em 1885.
Daí resultou o retalho do mapa africano a régua e esquadro, obedecendo às ambições de várias potências europeias. E daí resultaram episódios como o mapa cor-de-rosa, algumas refregas no interior de Angola, a guerra com Gungunhana em Moçambique. Portugal, para fazer valer os seus direitos históricos frente a outras ambições europeias, teve que proceder à ocupação militar daquilo que reclamava como seu e onde se relacionara sempre de forma aberta e geralmente não-militar.
Os tratados de Cabinda surgem neste contexto. Nesses finais do século XIX, a pressão dos belgas e dos franceses para a ocupação de territórios sobre a foz do Congo leva, de um lado, os portugueses e, do outro, três reinos dessa costa a Norte do grande rio (os reinos de Ngoio, Loango e Cacongo) a entenderem-se reciprocamente para protegerem a posse antiga da terra, na perspectiva europeia, e o relacionamento ancestral, quanto aos africanos. Num processo iniciado e encerrado pelo Capitão-Tenente Guilherme Brito Capelo, ido de Luanda como representante do Rei de Portugal, são assinados três tratados consecutivos: Chinfuma (1883), Chicamba (1884) e Simulambuco (1885). Guilherme Capelo era, na altura, o comandante da corveta “Rainha de Portugal”, que patrulhava regularmente aquelas costas; e seria, mais tarde, por duas vezes, governador de Angola nos finais desse século.
O mais importante dos três documentos foi o Tratado de Simulambuco, que ficou para a História como o definidor do Protectorado de Cabinda e que valeu a Portugal o reconhecimento internacional da legitimidade da soberania portuguesa por parte das potências europeias reunidas nessa mesma altura na Conferência de Berlim.
É em Berlim que são estabelecidos e reconhecidos o Congo belga, o Congo-Léopoldville, e o Congo francês, o Congo-Brazzaville. E Portugal consegue salvaguardar os seus direitos no que também se designou, nessa época, o Congo português, isto é, o território de Cabinda.
Tratados como os de Chinfuma, Chicamba e Simulambuco houve-os às centenas, quer feitos por franceses e por belgas com autoridades tradicionais locais na bacia Norte do Zaire, cobrindo os territórios dos respectivos Congos coloniais, quer feitos pelos ingleses na bacia do Níger, no território da actual Nigéria. Este tipo de tratados entre a potência colonial europeia e príncipes africanos locais foi um modelo muito comum na época, a fim de exibir, em Berlim, às outras potências europeias a posse legítima e efectiva das terras sobre que se afirmava soberania.
Todavia, fosse pela larga ancestralidade da relação entre portugueses e cabindas, fosse por qualquer outra razão, algo de especial tiveram os três tratados luso-cabindas. Em todas as centenas daqueles tratados euro-africanos nas bacias do Níger e do Zaire, no contexto da Conferência de Berlim e dos seus antecedentes, não conheço outro que fosse tão intenso objecto de referência e de veneração quanto o Tratado de Simulambuco. Não conheço outro que tivesse monumentos erectos como em Chinfuma e Simulambuco. Não conheço outro que, ainda hoje, passados já 130 anos, seja tão celebrado e comentado como os três tratados cabindas, em especial o de Simulambuco.
Dá ideia de que, enquanto as outras centenas de tratados esgotaram a sua utilidade e função na partilha europeia de África em Berlim, os três tratados cabindas eram bastante mais qualquer coisa e, por isso, permaneceram localmente na memória social, na referência política e no culto popular.
Eram eles a fonte das tais “instruções especiais” de que me falou o meu pai e que percebi igualmente na conversa com o governador Themudo Barata: um modo particularmente cuidado de relacionamento com os povos cabindas e suas autoridades tradicionais. Devo dizer que, na Angola que conheci e percorri, a espaços, entre o Natal de 1972 e a Páscoa de 1974, era um pouco assim por todo o lado: a administração portuguesa procurava cuidar com muito zelo do relacionamento com os chefes tradicionais – sobas, régulos, etc. – e os seus usos. Mas, em Cabinda, havia, além dessa tonalidade geral, umas “instruções especiais”.
5. Os meus amigos cabindas sabem que não defendo a independência de Cabinda, isto é, a separação de Cabinda relativamente a Angola. Podia ter acontecido assim. Mas não aconteceu. E não creio que devamos alterar por meios violentos a forma como as coisas aconteceram. Como português, sinto-me inibido de o encorajar.
Não creio que devamos lançar uns contra os outros – e menos ainda acirrar – os africanos com que historicamente nos relacionámos e com que construímos relações e laços que nos são muito queridos e integram a nossa própria identidade, a nossa cultura larga e o nosso ser.
Creio que estamos apetrechados a fazer a paz, a mediar, a aproximar, a superar conflitos, a ultrapassar divergências, a inspirar concórdia, a desenhar concertações imaginosas, estáveis e duradouras, mas não a semear, nem a alimentar a cizânia e, menos ainda, a guerra. A nossa herança colonial, afinal, acaba por ser essa e nunca se apaga, nem extingue: paz na “nossa” terra.
Cabindas podem naturalmente pensar diferente; e podem agir servindo essa convicção e esse desígnio. Têm esse direito. A legitimidade é sua; a liberdade e o perigo também.
Cabe reconhecer, aliás, que têm base jurídica e histórica para sustentar o seu caso. Este livro fala disto abundantemente e de modo desenvolvido e documentado. E as coisas podiam, na verdade, ter acontecido de forma diferente.
Se, a seguir ao 25 de Abril, as autoridades revolucionárias portuguesas tivessem ouvido um pouco as chamadas do governador de distrito, o Brigadeiro Themudo Barata, talvez Cabinda, aquando da preparação do Acordo de Alvor, pudesse ter sido tratada em separado de Angola, designando como interlocutor próprio a FLEC, que, embora sem guerrilha armada, mas com acção política, já existia desde os anos 1960.
Há relatos imprecisos dessas diligências do governador, que continuou no seu posto a seguir ao 25 de Abril. Seriam provavelmente ainda um eco esmerado das tais “instruções especiais” de que falei acima; e estas “instruções” mais não eram do que eco das obrigações dos tratados de 1883/85: reconhecimento dos chefes cabindas, actuais e futuros, eleitos pelos povos segundo as suas leis e usos; promessa de auxílio e protecção a estes chefes cabindas; obrigação de manter a integridade dos territórios colocados sob o Protectorado português; respeitar e fazer respeitar «os usos e costumes do País» (sic). Qualquer português de boa-fé, que leia, até rapidamente, os tratados assinados com os príncipes cabindas, não pode, na verdade, deixar de sentir algum embaraço, senão vergonha. É ler os textos, que são breves, e rever os factos, que falam por si.
Tenho dúvidas, porém, de que as coisas pudessem ter ocorrido de outro modo, mesmo que as autoridades revolucionárias tivessem tido uma vontade aberta – que manifestamente não tiveram, nem quiseram ter. Cabinda estava enquadrada na administração de Angola, assim consolidada desde os anos 1930; e a dinâmica continuada das coisas, bem como a pressão internacional que logo se abateria, dificilmente consentiriam um tratamento separado de Cabinda. Em segundo lugar, um processo com esse rigor, cuidado e pormenor só seria possível com uma autoridade descolonizadora forte. Ora, em Portugal, sabemo-lo bem, não havia autoridade. Ninguém mandava nessa altura. E, com o chamado PREC (o “processo revolucionário em curso”) em marcha cada vez mais febril, o poder foi-se diluindo e enfraquecendo, dia após dia, ao passo e ao compasso do simultâneo processo de descolonização, até Novembro de 1975, o mês da última independência, exactamente a de Angola. Além disso, precipitou-se tudo muito depressa – e a pressa, é sabido, nunca facilita nem a imaginação, nem a mera ponderação.
Outra hipótese seria o Acordo de Alvor, que regulou, em Janeiro de 1975, a independência de Angola, ter sido cumprido. Nesse contexto, embora as previstas eleições constituintes angolanas se limitassem aos três partidos subscritores em Alvor (FNLA, MPLA e UNITA), o debate democrático e aberto poderia, teoricamente, ter conduzido a outra forma de ver a questão e a uma Constituição angolana que logo consagrasse, quanto a Cabinda, soluções diversas da férrea integração unitária. Mas o Acordo de Alvor, bem o sabemos, não só não foi cumprido, como foi violentamente desrespeitado e rasgado de modo sangrento. Não houve eleições de qualquer espécie, não houve Assembleia Constituinte original, não houve qualquer debate democrático, aberto e livre. Não se abriu espaço para reflectir ou ponderar. A política escreveu-se unicamente na ponta da espingarda.
A 11 de Novembro, Angola viu proclamadas duas independências separadas; e, com dois curtos intervalos, após Bicesse e após Lusaca, teve de sofrer ainda uma longa e dolorosa guerra civil desde 1975 até 2002. Uma guerra que também atingiu a terra e as gentes de Cabinda, quer no quadro geral do conflito angolano, quer no contexto específico da luta das FLEC.
6. Quando digo não ser a favor da independência de Cabinda, digo também que sou um entusiasta de um estatuto específico para o território e, sobretudo, tratamento respeitoso para o seu povo.
A democracia poderia tudo conseguir de uma penada. Mas a construção da democracia em Angola, sabemo-lo, tem sido o diabo.
A minha resistência mental à causa da independência cabinda decorre provavelmente de uma simples habitualidade espiritual: eu, que cresci a ouvir «Portugal unido do Minho a Timor», considero bastante natural a fórmula «Angola, de Cabinda ao Cunene». E Cabinda, sem prejuízo do bom suporte jurídico-constitucional para afirmar a sua individualidade, estava integrada na administração geral angolana, de que constituía um distrito, num quadro consolidado desde há décadas.
Mas nem é tanto isto ou apenas isto. Se tenho direito a ter uma opinião, a minha reserva tem a ver sobretudo com duas razões: primeiro, como português, não devo advogar, nem envolver-me naquilo que seria um separatismo dentro de um país amigo e irmão; segundo, creio sinceramente que Cabinda fica melhor com um estatuto especial, sério e democrático, no quadro angolano, do que separada e errante num contexto de cobiça externa. A independência, feita pela guerra, seria muito dolorosa para qualquer dos lados – e deixaria feridas prolongadas e profundas. E uma separação de Cabinda suscitaria novas questões e outras dinâmicas sobre que não cabe especular aqui, mas poderiam ser problemáticas no plano geopolítico.
Cabinda, porém, tem uma história própria, extraordinária – e bonita –, e uma dignidade e singularidade que merecem ser exibidas, exaltadas e respeitadas. Sem isso, aliás, nunca haverá paz profunda, genuína e duradoura. E a questão será sempre uma ferida em risco de reabrir.
Foi pena o absoluto fracasso do Acordo do Alvor. Foram trágicos os 28 anos de guerra civil angolana. Foi entorpecedor o quadro político violento e sectário que sempre rodeia estes contextos, sobretudo em épocas de formação nacional ou sob quadros revolucionários agudos.
Em Portugal, no PREC de 1974/75, o receio da tomada do poder em Lisboa pelos comunistas pró-soviéticos e amigos de Cuba fomentou a criação e a actividade de movimentos separatistas como a FLAMA e a FLA, preparando uma independência pelas armas quer da Madeira, quer dos Açores – ainda hoje, por graça, os portugueses madeirenses tratam os portugueses continentais como “cubanos”. Não surpreende, por isso, que, no conturbado contexto angolano, a pressão brutal do MPLA sobre Cabinda a partir do domínio de Luanda, gerasse oportunidade propícia à reactivação e ao armamento da FLEC, para mais com os antecedentes históricos que são pergaminhos do território e suas gentes.
Em Portugal, a FLAMA e a FLA esfumaram-se num instante, porque todo o contexto que lhes seria favorável acabou logo de seguida, em 1976 – e uma Constituição portuguesa democrática, com prática democrática adequada também, extinguiu o fogo de qualquer separatismo madeirense ou açoriano. Em Angola, ao contrário, a dura e longa guerra civil foi arrastando tudo – e, portanto, cavando as trincheiras – e uma democracia muito fraca (e claramente insuficiente desde a paz definitiva de 4 de Abril de 2002) não tem permitido, nem proporcionado melhoras no quadro institucional geral e no clima político cabinda.
Cabinda permanece, por isso, uma questão adiada. E é pena.
7. Conheci o, então, Monsenhor Raul Tati nestas andanças. Primeiro, de nome, como vigário-geral da diocese de Cabinda, no bispado de Dom Paulino Madeca, uma inquieta e respeitada figura da Igreja Católica. Mais tarde, pessoalmente, em palestra e debate que veio conduzir a Lisboa, numa sessão organizada pelo IDL – Instituto Amaro da Costa, ainda na sede do palacete na Rua de São Marçal. Aqui, eu já estava de volta à actividade política no CDS. Creio que estávamos nos primeiros anos a seguir a 2000.
Mas tinha seguido sempre as notícias de Cabinda que iam chegando – como as de Angola. E, volta e meia, desde o meu regresso à política no fim dos anos 1990, acompanhava diligências que eram pedidas ao CDS para conseguir a libertação de portugueses que, uma ou outra vez, eram raptados por alguma das várias FLEC em que a FLEC histórica de Nzita Tiago se fragmentara. Foi assim que me fui familiarizando com os factos e seus actores.
Gostava particularmente daqueles que animavam a afirmação civil, como Raul Tati – por cuja seriedade, tenacidade e envergadura intelectual cedo construí admiração –, os padres cabindas, como o Padre Jorge Casimiro Congo – notável no seu carisma e assertividade – e o Eng.º Agostinho Chicaia – grande dinamizador da extraordinária e muito importante Associação Mpalabanda. Para mim, a luta armada devia acabar e o debate e afirmação política deviam ser exclusivamente civis. Por isso me aproximei destes eixos e cheguei a envolver-me, convidando para algumas audições no Parlamento Europeu – para onde, entretanto, fora eleito – algumas destas figuras. Aproximei-me também de figuras angolanas de visão larga e democrática, como Justino Pinto de Andrade, uma grande personalidade histórica angolana, de espírito independente e livre, e um homem singular de inteligência, abertura e fidelidade; assim como me alegrei ao saber também nestas andanças o Reverendo Ntoni Nzinga, pastor protestante que conheci bem em 2001, aquando dos meus trabalhos no Parlamento Europeu para atribuir o Prémio Sakharov a Dom Zacarias Kamwenho, então arcebispo do Lubango e presidente do COIEPA [2], de que Ntoni Nzinga era o vice-presidente.
8. Em 2006, pareceu surgir uma oportunidade de ouro para a solução da questão de Cabinda. É uma história rocambolesca, em que, pelo meio, me cheguei a convencer tratar-se da manifestação do nosso ditado «escreve Deus direito por linhas tortas». Os factos concretos mostraram-me, depois, que Deus não foi certamente – já o diabo… não sei.
António Bento Bembe, líder da FLEC-R, fora preso na Holanda, em Junho de 2005. Eu tinha acabado de ser eleito presidente do CDS e fui logo avisado da detenção, com o pedido de interceder pela sua libertação e reagir contra a violação dos direitos humanos que ocorrera. Se a memória me não trai, ele estava na Holanda, em missão política de espectro largo, no meio de um conjunto de diligências que incluíam também Bélgica, França e Portugal. Na Bélgica e em França, tudo correra bem. Na Holanda, onde tinha em agenda reunir com o governo, foi preso ao entrar no edifício onde ia reunir com a organização dos Países e Territórios Não-Inscritos nas Nações Unidas. A prisão pelas autoridades holandesas ocorrera a pedido das autoridades dos Estados Unidos da América, que haviam emitido um mandado de detenção contra Bento Bembe. A coisa tresandava a operação de segurança, com serviços secretos à mistura e muito oportunas informações quanto aos movimentos de Bembe.
Bento Bembe, quando ao serviço de outra FLEC – creio que, na altura, a FLEC-PM –, teria estado envolvido num remoto episódio da guerrilha cabindense: o rapto, em 1990, de um mecânico norte-americano, Brent Swan, que estava ao serviço de uma subcontratada da Chevron, a poderosa e influente petrolífera. Nos EUA, os cabindenses acusados por este episódio são quatro. E, apesar de o mecânico americano ter sido libertado ao fim de dois meses, os Estados Unidos não brincam, sobretudo quando podem e onde podem. Em Julho de 2002, Artur Chibassa, outro dos dirigentes da FLEC acusados, foi capturado em Kinshasa, numa operação conjunta do FBI e da polícia congolesa. Transferido, a seguir, da RDC para uma cadeia norte-americana, seria julgado em Washington e condenado, em Setembro de 2003, a uma pesada pena de 24 anos de prisão, que ainda hoje cumpre num estabelecimento prisional de alta segurança no Texas.
Apesar de os próximos de António Bento Bembe assegurarem que este só tivera intervenção marginal no caso de Brent Swan, como intérprete nalgumas negociações para a sua libertação, a verdade é que ele corria objectivamente risco de vir a ter a mesma sorte de Chibassa. O torniquete começara a apertar e o relógio a contar. Além disso, não é muito imaginável que os tribunais americanos, a milhares de quilómetros de distância, viessem a comover-se com argumentos e desculpas da guerrilha. A invulgar severidade da condenação de Chibassa destinara-se a marcar um aviso e um exemplo; Bento Bembe poderia ser o próximo.
Cheguei a interceder junto das embaixadas norte-americanas, quer em Bruxelas, quer em Lisboa. E fiz outras diligências junto de colegas meus do Parlamento Europeu e para as autoridades dos Países Baixos. Bento Bembe desenvolvia politicamente uma estratégia dialogante com Luanda e procurava uma saída pacífica e concertada para o conflito. Afastando-se das correntes mais renitentes, a FLEC-R (R de “Renovada”) assinara, em Helvoirt, na Holanda, em Agosto de 2004, a fusão com a FLEC-FAC (FAC de “Forças Armadas de Cabinda”), perante o testemunho presencial de representantes das igrejas (católica e protestantes) e da sociedade civil cabindenses (onde se destacava a Mpalabanda). Daqui resultara a constituição do FCD – Fórum Cabindês para o Diálogo, de que António Bento Bembe era o líder e que procurava consolidar e melhorar as condições de diálogo político com as autoridades de Luanda. O processo era de fresca data, mas parecia ter bom potencial – e os contactos que tive com diferentes integrantes do FCD mostravam-me a sua boa-fé.
A prisão de Bembe não podia, por isso, ser mais inoportuna; e uma sua extradição para os Estados Unidos e eventual condenação estragariam, por certo, o processo de diálogo por largos anos, arruinando qualquer espécie de confiança e reacendendo os ódios mais ácidos. É que era evidente que alguma mãozinha teria havido para a prisão acontecer.
Os meus interlocutores na diplomacia americana foram muito atenciosos, mas nada adiantaram. Referiram-me, tanto em Lisboa, como em Bruxelas, que era uma questão exclusiva da Justiça, acompanhada na Administração Federal, não pelo Departamento de Estado, mas unicamente pelo Departamento de Justiça, e cujo andamento – a machinery – era absolutamente independente e absolutamente inexorável. A repetição do caso Chibassa estava em cima da mesa.
Contudo, havia mãozinha a mexer; e voltou a mexer-se. Alguns meses depois de detido em Roterdão, António Bento Bembe desaparece da Holanda. Não estava na prisão e não se sabia para onde fora. Entre familiares e amigos gerou-se alarme, pois receavam que pudesse ter sido levado para os Estados Unidos, onde corria o risco de uma muito pesada pena. Afinal, não. Ao fim de cerca de uma semana, soube-se que estava em Brazzaville: não detido, mas “retido”. Num hotel. Aí ficou alguns meses, enquanto decorreram as últimas conversações que conduziriam ao Memorando de Entendimento para a Paz e Reconciliação, que seria assinado no Namibe (antiga Moçâmedes) em 1 de Agosto de 2006.
9. Cheguei a ter esperança de que este Memorando de Entendimento pudesse chegar a bom porto e ser, finalmente, o ponto de encontro entre todos. As partes cabindas tinham trabalhado muito bem nos anos anteriores, a situação militar acalmara e o nível político melhorara significativamente. Se as autoridades angolanas correspondessem pela sua parte, com visão, abertura e compreensão, haveria condições para um grande acordo. E pareceu-me que sim: estava em cima da mesa a instituição de um Estatuto Especial para Cabinda, no quadro de Angola, avançado pelos governantes angolanos.
Porém, o processo foi muito desastrado – nunca percebi se propositadamente desastrado, se apenas por acaso e falta de jeito.
Havia todo o interesse em facilitar as condições de diálogo entre as partes cabindas, sob pena de a desconfiança se instalar e poder minar tudo. Infelizmente, foi isto mesmo que aconteceu: António Bento Bembe era mantido em situação muito precária e a parte oficial angolana não facilitou a comunicação entre todos, nomeadamente dos outros cabindas com Bento Bembe em Brazzaville. A pouco e pouco, o Fórum Cabindês para o Diálogo foi-se fragmentando. Primeiro, foi a FLEC de Nzita Tiago que rompeu, em discordância. E, depois, também as partes civis, crescentemente desconfiadas e acreditando, não sem razão objectiva, que Bento Bembe tinha sido colocado na dependência plena do poder angolano.
Por mim, procurei tranquilizar, chamar a atenção para a dificílima e muito delicada situação humana de Bembe, apelando à compreensão por parte dos grupos cabindas e argumentando que o acordo final, mesmo se fraco, seria sempre melhor do que nenhum acordo, mas apenas se envolvesse e incluísse todos: a verdade é que abriria sempre um novo quadro político; e o futuro faria o resto.
Nada disso. Nesses curtos e decisivos meses de 2006, os mal-entendidos e as desconfianças foram-se sucedendo na difícil articulação com Bento Bembe, “retido” em Brazzaville. E as autoridades angolanas pioraram ainda as coisas. A Associação Mpalabanda foi ilegalizada e extinta em tribunal, por acção do Ministério Público, no meio deste processo, causando severo rombo no FCD e na sua representatividade. Pareceu uma provocação deliberada. E a pressão política e eclesiástica sobre os padres cabindas, em vez de ser aliviada, aumentou de novo, dando cabo do resto.
Quando se chegou ao dia de assinatura do Memorando no Namibe, praticamente não restava mais nada no Fórum Cabindês para o Diálogo, senão a FLEC-R de Bento Bembe. Mesmo assim, ainda enviei uma mensagem à cerimónia, embora desapontado e descrente. Fi-lo por achar que não devia estigmatizar-se e ostracizar-se Bento Bembe, mas importava guardar portas e pontes para o futuro – e criei também laços com um filho seu, então um promissor estudante em Portugal.
Nunca percebi por que o governo de Angola, puxando do rolo compressor, desbaratou uma tão bela oportunidade e destruiu o que podia ser tão útil ao país e a todos. Ironicamente, eu comentava que a operação política se limitara a passar ilegais para a legalidade (os da FLEC-R), enquanto se passava para a ilegalidade os legais (a Mpalabanda e os padres cabindas) – um paradoxo estúpido e absoluto contrassenso.
O Memorando de Entendimento para a Paz e Reconciliação foi um êxito formal, mas um fracasso material. Assinou-se realmente um papel, mas a questão cabinda permaneceu – talvez até pior, em virtude da hostilização e marginalização das partes da sociedade civil.
O Estatuto Especial para a Província de Cabinda foi efectivamente publicado como lei angolana, pelo Decreto-Lei n.º 1/07, de 2 de Janeiro – menos mal, apesar de ter um conteúdo bastante limitado. Ainda aí está, mas não lhe foi dado qualquer desenvolvimento com significado. Aquando da última revisão constitucional angolana, que se concluiu em 2010, chegaram a ser-me pedidos contributos a este respeito. Preparei e enviei a amigos cabindas e a deputados conhecidos uma proposta de um artigo muito simples: limitava-se a alçar à dignidade constitucional a previsão daquele Estatuto já com força de lei – a ideia não teve sequência e a Constituição angolana mantém-se omissa.
Pior foi que a pressão no terreno não cessou. Além da inaceitável ilegalização da Mpalabanda, a política agiu para a aplicação de sanções eclesiásticas severas aos padres cabindas, como o autor deste livro, o Padre Congo e outros, e a Igreja fez a vontade ao poder angolano.
Como católico, este é um facto que me provoca muita vergonha, até por constar que ocorreu por determinação directa de Roma e a instâncias de um Núncio Apostólico a partir de Luanda. No caso do sofrimento dos cabindas, larguissimamente católicos, não se compreende que a Igreja lhes provocasse adicionalmente a sensação de abandono, punindo os pastores que respeitavam, seguiam e estimavam.
Também a CEAST, a Conferência Episcopal, não ganhou nada, se é que estas questões de humanidade essencial e de espiritualidade genuína podem avaliar-se e decidir-se no plano dos “ganhos e perdas”. A CEAST, por exemplo, continua à espera desde há vinte anos de que o governo angolano licencie os emissores da Rádio Ecclesia para a cobertura integral do território de Angola, andando de Herodes para Pilatos, com sucessivos adiamentos injustificáveis e enigmáticos e sob contínuo desrespeito dos direitos históricos da emissora, da lei da comunicação social e da liberdade constitucional.
No plano dos direitos humanos, o quadro deixa igualmente muito a desejar, como este livro narra e regista. Raul Tati, autor deste livro, também passou, ele próprio, entretanto, pelas prisões. E outras perseguições, selectivas e direccionadas, têm continuado a acontecer em Cabinda contra civis pacíficos, ao longo destes anos, como sucedeu recentemente com o caso José Marcos Mavungo (entretanto, já libertado), contemporâneo do mais badalado caso dos “15+2” em Luanda. São sinais de que, infelizmente, não se ganhou tempo com o Memorando de Entendimento do Namibe.
Continua a faltar fazer aquilo que, então, podia ter sido feito, mas, por precipitação, sofreguidão e soberba, se deitou fora: concórdia. Falta concórdia.
Ora, só com concórdia é possível uma solução duradoura – quiçá, definitiva. Só se chega a essa concórdia com boa-fé. E a concórdia só funciona e cresce, no tempo subsequente, com democracia.
10. Angola só resolverá duradouramente – e de vez a questão cabinda – se compreender e assimilar a sua História. Não é submeter, mas exactamente o contrário. É fundamental entender e integrar a História específica de Cabinda dentro do processo geral da formação nacional angolana. Não se pode diminui-la, nem desprezá-la, sob pena de lhe pagarem na mesma moeda – com o que a questão não só não se resolverá, como, pior do que isso, poderá agravar-se e cristalizar-se, ainda que de forma latente, sobretudo na mente e no coração dos jovens e dos emigrados.
Ao contrário, quanto mais se a valorizar e exaltar, mais Cabinda e os cabindas se sentirão parte, se sentirão pertencer. E o sentimento de separação acabará por diluir-se no quadro da vibração de todos em torno de uma História comum.
Nas conversas que tive com alguns cabindas, sobretudo ao longo de 2006, acompanhando os debates de preparação do Memorando de Entendimento, cheguei a alvitrar a ideia de que Angola como que sucedesse, intelectual e espiritualmente, à posição de Portugal no Tratado de Simulambuco e, portanto, abraçasse Cabinda, a sua História e os seus povos, respeitando-os e protegendo-os. Podia mesmo dizer como nos tratados luso-cabindas: (1) reconhecer os chefes cabindas, actuais e futuros, eleitos pelos povos segundo as suas leis e usos; (2) garantir auxílio e protecção a estes chefes; (3) manter a integridade dos territórios; e (4) respeitar e fazer respeitar os usos e costumes cabindas.
É evidente que esta ideia tem de ser entendida “cum grano salis”. O contexto não tem nada a ver com o da Conferência de Berlim, sendo, porém, um seu legado tardio. E, juridicamente, além de um anacronismo, é uma ideia destituída de sentido e de possibilidade. Mas traduz o sublinhado de que Angola só guardará pacificamente Cabinda no seu seio, se a abraçar afectivamente em toda a sua historicidade e a fizer sentir-se sua parte – e gostar de o ser.
Estes são alguns dos ingredientes que conduzem à concórdia – e, portanto, à união e à paz. Outros ingredientes essenciais são a autonomia e a democracia.
O Estatuto Especial para Cabinda foi uma bela oportunidade perdida; mas ainda aí está para ser aprofundado e desenvolvido, se houver vontade política. E o Memorando de Entendimento que o precedeu, sobretudo no desastrado e turbulento processo dos últimos meses que antecederam a sua assinatura, foi um belíssimo exemplo de como estragar uma oportunidade magnífica; mas o quadro existe – e oportunidade há sempre – para repetir e fazer bem aquilo que foi mal feito, reunindo de novo o que se dividiu, em lugar de fracturar o que se tinha congregado.
O modelo da região autónoma, por exemplo, tem provado, de um modo geral, muito bem em Portugal, nos casos dos Açores e da Madeira. Sobretudo, além da libertação do desenvolvimento regional, que tem sido muito dinâmico nos últimos 40 anos, tem cumprido muitíssimo bem a função política de tranquila integração democrática dessas regiões no todo nacional, superando as tensões, especificidades e dificuldades resultantes da descontinuidade geográfica. O mesmo pode dizer-se, ao lado de Angola, de igual modelo aplicado à ilha do Príncipe, na República de São Tomé e Príncipe – outro caso de sucesso político-administrativo. O modelo chegou a ser falado nos bastidores e admitido como possível por fontes cabindenses em momentos mais optimistas. Mas o poder angolano, até agora, não quis pegar no figurino da região autónoma, que podia convir ao caso e à circunstância de Cabinda.
11. A política angolana continua demasiado centralizada, o que é uma dificuldade. Se Angola já tivesse realizado eleições autárquicas, como a sua Constituição prevê, seria tudo mais fácil. Se a duração dos mandatos autárquicos fosse como em Portugal, poderíamos estar, hoje, a caminho já do quarto ciclo de democracia local angolana, depois da paz estabelecida em 2002; e a maturidade e consistência democráticas do país seriam uma realidade.
O “Poder Local”, assim denominado, já estava previsto na Constituição angolana de 1992, embora de forma muito limitada e remetendo quase que integralmente para legislação ordinária posterior. É inteiramente compreensível que a guerra civil em que o país viveu até 2002 impedisse não só a adopção de legislação autárquica relevante, mas sobretudo a sua aplicação, através da realização de eleições locais. A nova Constituição de 2010 veio dedicar-lhe já um quadro bem mais sólido e desenvolvido, com a mesma denominação de “Poder Local”; e, aqui, para qualquer observador externo, é que se tornou muito incompreensível por que motivo ainda não se fizeram quaisquer eleições locais.
Além do resto de Angola, a cidade de Cabinda e outros municípios do território teriam dirigentes próprios, eleitos pelos seus cidadãos – o que não dividiria; pelo contrário, integraria. E, ainda que o Estatuto de Cabinda, em Angola, seja idealmente mais do que a simples e comum administração autárquica, creio que só será possível construí-lo e realizá-lo num quadro aberto de democracia local, que enraíze e consolide a habitualidade e a confiança indispensáveis, dentro do quadro político e institucional angolano.
A democracia municipal é peça indispensável das sociedades e dos Estados democráticos. Digo-o pela nossa própria experiência portuguesa e por aquilo que podemos observar na Lusofonia.
Em Portugal, a democracia não se teria consolidado e enraizado tão depressa, se não fossem as eleições locais, realizadas pontualmente desde Dezembro de 1976 – no próximo ano, 2017, daremos início já ao décimo segundo ciclo de democracia local. As eleições locais fomentam a cooperação e o diálogo interpartidários e ajudam a descrispar a vida política geral, abrindo avenidas de desanuviamento e espaços de colaboração. Ao contrário, o monopólio do combate político nacional entrincheira os partidos, acirra as claques e torna mais difícil quaisquer avanços democráticos. A exclusividade da luta nacional separa mais as partes e, apesar da ilusão do poder único, torna realmente mais difícil a suave e genuína plasticidade da contínua construção do todo.
O atraso da democracia autárquica é uma armadilha em que continua aprisionada e emperrada a construção da democracia em Angola. Cabo Verde e São Tomé e Príncipe realizam calmamente eleições locais há vários anos, com normal mudança dos partidos no poder; e isto tornou-se peça essencial da solidez e normalidade das suas democracias, além de instrumento privilegiado de exercício e maturidade da cidadania. Moçambique também realiza, há alguns ciclos, eleições municipais, tendo vencido, já mais do que uma vez, partidos da oposição em cidades importantes, como Beira e Quelimane; e, ainda que o Estado moçambicano enfrente, hoje, infelizmente, arrastadas dificuldades na tensão FRELIMO/RENAMO, que se reacendeu nos últimos anos, a verdade é que seria muito pior se não houvesse já aquelas bolsas de democracia local – estas não só continuam a funcionar bem, mas também servem de espaços de diferença e exemplo de esperança. Quem siga com independência o desenrolar dos acontecimentos em Moçambique não pode deixar de concluir rapidamente que não é por causa da democracia local que o conflito se reabriu e se arrasta; pelo contrário, é pela falta de ainda mais democracia local, descentralizada, que o conflito não se supera mais depressa – e de vez – para paz e alegria dos moçambicanos e progresso do país.
Angola pode seguir por aí. Oxalá! Se o fizer, se tiver essa visão, essa coragem, esse atrevimento, essa ousadia, esse arrojo, essa generosidade, essa abertura, estou convicto de que, com descentralização e democracia local, resolverá, num instante, quase todos os seus problemas de desenvolvimento político e de construção de um sólido Estado democrático de Direito. Pelo caminho, resolverá também a questão de Cabinda, num quadro de comum construção nacional. A democracia aberta ajuda e aprofunda a confiança entre todos.
São vários os cabindas de grande inteligência e valor presentes em sectores relevantes e influentes, não só no seu território natal, mas em diferentes planos e instâncias da política angolana e em instituições angolanas de peso, da Igreja à diplomacia, passando pela Universidade e pela comunicação e cultura. Cada um tem o seu papel, para o bem de Cabinda e de Angola também.
Diversamente da ideia racista de que «a democracia não é para os africanos», penso exactamente o inverso. A democracia é aspiração e necessidade africana e condição “sine qua non” para África cumprir o seu destino.
Olhando com humildade para o nosso próprio passado, podemos ver também como a democracia “não era” para os europeus – foi coisa rara na História europeia e, em geral, de bem fresca data. Ora, no contexto africano que encerrou o colonialismo da Conferência de Berlim, a democracia é o oceano indispensável à formação e consolidação das novas comunidades políticas nacionais africanas e à osmose, integração e coesão dos seus povos.
Em ditadura ou com autoritarismo, será tudo mais difícil. Houve fases de poder musculado como, historicamente, é inevitável nas épocas de ruptura. Mas, nos tempos de hoje, com a comunicação aberta que existe, não haverá construção nacional sem prática democrática enraizada e permanente. Com a democracia local, então… é num instante – e fica solidamente implantada.
12. Admiro muito Raul Tati, pelo seu elevado gabarito intelectual, pela sua seriedade escrupulosa e pela sua pujança cultural, bem como pelas coragem e verticalidade de que tem dado provas exemplares em diferentes circunstâncias. O autor deste livro atravessou duras provações pessoais, na história de seu pai e de sua irmã, bem como de si mesmo.
É uma personalidade cabinda de referência – e, para mim, na visão que tenho das coisas, também uma grande figura angolana. Que ele assim se sinta igualmente depende apenas da construção do futuro em Angola, o que é sempre uma estrada aberta.
Esse futuro depende obviamente de todos, mas sobretudo daqueles que detêm o poder.
Nos meus sonhos, veio-me ao espírito a cena final de um dos grandes filmes da minha vida: “Les Uns et Les Autres”, de Claude Lelouch. Este filme francês de 1981 é um filme extraordinário – teria vários Óscares se fosse da indústria norte-americana. A última cena é belíssima e absolutamente espectacular, uma rara cena de quase 9 minutos de duração: a interpretação por orquestra do “Bolero”, de Ravel, em bailado – raro, senão único –, no sublime cenário parisiense do Palais de Chaillot, do Trocadéro e da Torre Eiffel.
Vale a pena ver (ou rever) essa cena longa, disponível na internet [3]. Porém, quem não tiver visto o filme percebe certamente a beleza, mas não apreende a profundidade e a intensidade plena daquela cena. O filme de Lelouch, ao modo de clássicos da literatura russa, é o cruzamento das histórias de vida de três gerações de indivíduos e famílias, ligados à música e à dança, nos Estados Unidos, em França, na Alemanha e na União Soviética, desde os anos 1930 aos anos 1980 do século XX. Esses pais, filhos e netos, russos, alemães, franceses e americanos, atravessam os acontecimentos intensos dessa época, com destaque para a 2ª Grande Guerra e o Holocausto; e, naquela memorável cena final, nos rostos que vamos vendo, nos que dançam, nos que tocam e regem, ou entre os que apenas assistem, vamos vendo na paz extraordinária daquele momento, onde, sempre por acaso, todas aquelas famílias se cruzam outra vez, o eco de tempos de muita dificuldade e de extrema dor que ficaram para trás.
Seria fantástico ver acontecer, um dia, o mesmo momento espectacular quanto a Cabinda, para celebrar em festa de todos, na paz e na democracia angolana, a singularidade, liberdade e autonomia cabindenses. O que vejo, no meu espírito, a reproduzir aquela cena final do “Uns e Os Outros” é a orquestra a tocar, no cenário único do monumento de Simulambuco, além de temas tradicionais de Angola e Cabinda, o Concerto n.º 5 para piano e orquestra de Beethoven – as duas mais fortes memórias que trouxe de 1973. Assim se fecharia esta parte da história. E bem. Porque em paz.
Repito: o futuro, bom ou mau, de sonho ou de pesadelo, depende de todos; mas depende sobretudo daqueles que detêm o poder. É sempre dos poderosos que depende a possibilidade maior de conformarem a evolução das instituições e das realidades políticas.
“Poder” significa isso, na própria essência da palavra e do conceito: poder fazer ou de uma maneira, ou de outra maneira. Oxalá escolham fazer da maneira certa. E acertem.
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[1] Se buscar no YouTube por “concerto 5 piano Beethoven”, encontrará várias interpretações deste magnífico concerto. Se aditar kempff, buscando “concerto 5 piano beethoven kempff”, encontrará, entre outras, a interpretação que comprei em Cabinda. É a gravação no YouTube com a duração de 38:27, aparecendo ilustrada com a capa do LP que guardei e nunca mais esqueci.
[2] COIEPA significava “Comité Inter-Eclesial para a Paz em Angola”, que trabalhava, a partir da sociedade civil, para pôr termo à guerra civil angolana, então ainda bem acesa.
[3] Pode buscar-se no YouTube, procurando “les uns et les autres bolero”.
José Ribeiro e Castro
Advogado e político
PREFÁCIO, 1.Setembro.2016
"Cabinda - Órfã da descolonização do Ultramar português"
Raul Tati, ed. Principia 2017
Raul Tati, ed. Principia 2017
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