Os 40 anos que não celebramos
1. Uma data impossível de esquecer: 12 de Dezembro de 1976. Era, então, um jovem deputado à Assembleia da República e o responsável pelo sector de opinião pública do CDS. Recordo bem o nosso cartaz nacional dessas primeiras eleições para as autarquias: O VOTO DA VITÓRIA. Estávamos num bom momento: o CDS venceu em 36 municípios, elegendo 36 Presidentes de Câmara. O PSD elegeu 115 Presidentes, empatando com o Partido Socialista – com o que ficou dado o sinal dos dois grandes, até hoje. A FEPU elegeu os restantes 37.
Não é, porém, por estes factos que a data é memorável em todo o país. A data ficou gravada em pedra, porque aí arrancou o pilar mais forte do sistema democrático e se enraizou o tronco mais frondoso e mais fecundo da vida colectiva de Portugal, em participação e em liberdade. Nada do que somos hoje teria sido possível sem os municípios e freguesias plenamente democratizados.
Não falo apenas do rol interminável de melhoramentos que devemos ao Poder Local: infraestruturas; saneamento básico; abastecimento de água; equipamentos colectivos; animação cultural; acção social de proximidade; dinamização da identidade; desenvolvimento local; valorização turística; sensibilidade económica; qualidade de vida; defesa ambiental; e sei lá que mais. Nem falo apenas da proximidade da representação e da estreita relação entre os que elegemos e os que somos eleitos – que é o verdadeiro sal e o elixir mais poderoso da democracia: sentirmos o poder ao nosso lado, em vez de distante num pedestal.
Falo sobretudo da própria qualidade da democracia. O regime democrático deve imenso às onze rondas de eleições locais que já fizemos e aos onze ciclos que balizam. Tenho para mim que são as eleições locais o maior cimento e o melhor fermento da democracia em qualquer sociedade, porque são elas que permitem que a democracia não se reduza a uma arena de confronto político partidário, mas alimente e desenvolva também uma certa camaradagem política diferenciada, que constitui o tecido confortável das sociedades plurais e livres. São, por isso, nessa dimensão política superior, alicerce indispensável e rede de segurança preciosa.
Tenho feito essa observação ao longo dos anos, cruzada com a experiência. E confirmo-o observando os nossos irmãos países africanos de língua portuguesa. Onde as eleições locais se desenvolveram e realizam com normalidade, as democracias crescem em saúde e tornam-se sólidas: é o caso de Cabo Verde, o exemplo mais notável, e de São Tomé e Príncipe. Onde as eleições autárquicas tardam e nunca se realizaram, as democracias são frágeis e a crise sempre latente: é o caso de Angola e da Guiné-Bissau.
Devemos imenso à nossa democracia local, à nossa democracia autárquica.
2. Por isso, este dia para lembrar o que correu bem é também dia para lembrar o que correu mal. É o dia para lembrar a autarquia local esquecida, para tomar consciência do que de mal devemos a esse fracasso nacional. Refiro-me às Regiões Administrativas, que nunca saíram do tinteiro – no caso, a Constituição.
É um dos maiores fiascos políticos dos últimos 40 anos: desde 1976 que temos, na Constituição, Regiões Administrativas criadas e distritos extintos; mas, 40 anos volvidos, continuamos com distritos – embora fragilizados e despidos – e nada de regiões. Nunca se viu coisa assim: nem na História constitucional portuguesa, nem na História constitucional de qualquer país que conheça.
Este fracasso causou danos enormes a Portugal e aos portugueses – ainda não contabilizados, porque ainda ninguém se deu ao trabalho de fazer a avaliação. A esse vazio prolongado do patamar intermédio da nossa Administração Pública devemos a desordem do território, boa parte da desertificação, desperdício de recursos que ficaram por aproveitar, solidão e abandono de muitas populações, falta de políticas de fomento, irracionalidade de alguns investimentos públicos – e irracionalidade também de outros que ficaram por fazer –, crescente fragilidade técnica e administrativa do interior, um país mais desequilibrado e com menor coesão. Quão melhores seríamos, se o edifício autárquico tivesse ficado completo!
Recordo, aquando do referendo de 8 de Novembro de 1998, que um dos argumentos principais dos defensores do “Não” era o do endividamento: que seria um perigo, que as regiões iam endividar enormemente do país e que o poder central é que era o bom garante. Pesada ironia os 20 anos que se seguiram!... Hoje, a dívida pública já pesa o equivalente a mais de 130% do Produto Interno Bruto, mas as regiões não custaram nem um cêntimo. Mesmo olhando aos Municípios, em que alguns entraram por maus caminhos e derrapagem financeira, a verdade é que aqueles que tiveram de ser sujeitos a resgate, o PAEL (Programa de Apoio à Economia Local), são uma minoria e a dívida acumulada pelos 308 municípios não chega a 5% do PIB. Não foi isso que nos fez mais pobres. O problema não veio da administração autárquica, mas do exemplar e radioso Poder Central.
Ainda hoje me espanta como é que, nesse referendo, 52% dos portugueses se abstiveram – não quiseram saber. E mais me surpreende como, dos que votaram, 61% votaram “Não”. O Norte e o Interior, que tanto ouvimos queixarem-se, votaram contra – votaram contra si próprios. Desgraçadamente, o referendo foi altamente partidarizado, com o “Sim” a vencer somente no Alentejo, em razão do especial peso local do PCP. Em todas as outras regiões do país, ganhou o “Não”, fazendo-me sentir, minoritário apoiante da regionalização na minha área política, como o escuteiro da anedota: o escuteiro, na boa acção do dia, queria ajudar a velhinha a atravessar a rua, mas a velhinha… não queria atravessar.
Temos este desígnio para cumprir. É o desenvolvimento do país que o exige.
3. Saudámos 40 anos da Assembleia da República. Assinalámos 40 anos das Regiões Autónomas. Comemoramos, hoje, 40 anos da democracia local. Quanto ao fundamental patamar intermédio da Administração, nada podemos festejar. A democracia não se cumpriu; em seu lugar, tem sido o caos, a desordem, o experimentalismo, o faz-e-desfaz, a inconsequência, o centralismo, o esvaziamento das periferias.
Não ignoro o referendo, nem o desrespeito. Apesar de ter votado “Sim” convictamente, admito que “Regionalização” possa ter-se tornado numa espécie de “gato morto”, uma palavra queimada, uma coisa que foi tão politizada no pior sentido que tende a dar confrontação irracional e asneira. Mas temos de quebrar o galho – e andar para diante. Não podemos continuar neste vazio e impasse, a fazer experiências ou a inventar sucedâneos. A verdade é que a regionalização não se fez, nem deixa fazer. Tomemos o exemplo das Áreas Metropolitanas – também estão à espera. E é assim que estamos há 40 anos: à espera… à espera… Um país adiado.
Pode não se chamar Regionalização. Tem é que ser descentralização, democrática e autárquica. Tem que ter racionalidade territorial e lastro histórico e societal. Tem que ter capacidade para desencravar o desenvolvimento equilibrado do país e definir uma malha que, a par do quadro autárquico próprio, possa convir também à rede desconcentrada dos serviços da Administração Central. Pode chamar-se “Distritalização”. Sempre achei, aliás, que a proposta mais inteligente para arranque do processo esteve nos projectos de lei do PCP, duas vezes apresentados nos anos ’80, que propunham que as regiões administrativas arrancassem com base no território estabilizado dos distritos – e, se algum município quisesse transferir-se ou dois ou mais distritos quisessem agregar-se, que o decidissem por si.
Se se tivesse ido por aí, talvez o fracasso não tivesse acontecido: não há matéria política mais envenenável do que mexer em territórios e em capitais de territórios. As rivalidades são conhecida fonte de veneno. Partir dos distritos – que, aliás, já no Código Administrativo de Marcelo Caetano, não eram apenas circunscrição administrativa, extensão do Poder Central, com o Governador Civil, mas constituíam também autarquias (embora dormentes, no Estado Novo), com as suas Junta e Assembleia Distrital –, teria sido uma boa ideia, uma óptima ideia.
Temos que concluir este patamar que falta. À direita, sinto-me bastante à vontade. Quer Sá Carneiro, quer Freitas do Amaral bateram-se por essa descentralização autárquica completa, lutaram por ela e quiseram concretizá-la. Sá Carneiro, como Primeiro-Ministro, lançou o Livro Branco da Regionalização de 1980 – um fortíssimo pontapé de saída. Só não o concluiu porque morreu tragicamente no fim desse ano. E Freitas do Amaral foi o autor de uma notável Resolução do Conselho de Ministros, aprovada em 1981, contendo um programa cuidado e completo de definição normativa e concretização da Regionalização. Foi meticulosamente cumprido e gerou um vasto debate público em todo o país. Só a queda desse Governo impediria que se cumprisse, quando toda a legislação já estava pronta.
Tem de ser possível superar preconceitos partidários e trabalhar objectivamente, focados apenas no Bem Comum, no desenvolvimento de Portugal, no serviço das populações. Tem de ser possível reencontrar um consenso, útil e fecundo, rigoroso quanto aos dinheiros públicos, moderado quanto aos cargos e lugares, prudente no desenho administrativo, mas claramente ousado na descentralização e ambicioso quanto às metas e propósitos. Pode ser, além do mais, uma óptima oportunidade de redistribuição e de economia.
É isso que temos de querer: uma das chamadas soluções win/win, isto é, ficarmos todos a ganhar. Afinal, é essa vitória de todos que festejamos, hoje, nos 40 anos do Poder Local. Saibamos preparar outra vitória colectiva com a outra autarquia que tanta falta nos faz.
Texto adaptado a partir da intervenção feita em Odemira, na Cerimónia de Comemoração dos 40 anos de Poder Local Democrático, pela bancada da coligação “Odemira com Futuro” (PSD/CDS)
José Ribeiro e Castro
membro da Assembleia Municipal de Odemira
OBSERVADOR, 12.Dezembro.2016
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