A fronteira da vida


1. Em criança, fui vendo que se abatiam animais quando não tinham préstimo. Era assim. Se um cavalo partia uma perna, era abatido. Se um cão era gravemente atropelado, era abatido. Se outro estava velho e doente, abatido era. Suponho que com gatos fosse igual. E outros animais de companhia ou de trabalho também. Fui menino de cidade — o que fui sabendo foi de ler, de ouvir contar, de ver filmes. Nos western, às vezes, acontecia: o cowboy matava o cavalo ferido com um tiro de misericórdia. Era o que chegava à escola da cidade. Se eu fosse do campo, teria crescido com esse dia-a-dia.

A realidade não mudou no essencial. Continua a ser assim. Mudou, porém, o nome. Hoje, quase nunca se diz — ou já não se diz mesmo — abater o animal. Diz-se eutanasiar. Há uma diferença — que não é pequena: a morte do animal é provocada sem dor e procurando evitar sofrimento. O cowboy, suponho, já não matará a frio o seu cavalo, a tiro de revólver ou carabina, mas com uma injecção ou outro procedimento veterinário. Porém, a realidade substancial é a mesma: sem dor, o animal sem préstimo é abatido, executado.

As clínicas veterinárias de hoje oferecem este tipo de serviços, como sabemos. E a Internet proporciona vasta oferta de informação, às vezes particularmente criativa, como a página que anuncia: “Eutanásia: saiba qual é a hora certa de optar pela eutanásia, como ela é feita e a opinião dos espíritas.”

Para os animais domésticos, isto pode ter representado um progresso na forma da eliminação. Mas o progresso estimulou o alargamento do mercado. Contava-o a TSF, a 4 de Dezembro de 2013: “Existem cada vez mais donos que não têm dinheiro para fazer tratamentos aos seus cães ou gatos e que acabam por pedir ao veterinário para eutanasiar o animal.”

Isto é, passaram a abater-se, melhor dizendo, a eutanasiar-se, não só os animais sem préstimo, mas também os animais que se tornam dispendiosos. Cultura urbana, cultura de cidade, sem dúvida. No campo, duvido que se faça isso.



2. A eutanásia em nós, pessoas, suscita múltiplos e variados problemas. O problema não é a compaixão e a solidariedade — estão certas e são devidas enquanto compreendidas no dever de socorro e de assistência, incluindo o alívio e supressão da dor e o acompanhamento clínico na morte assistida. O problema está no poder legalmente atribuído a alguém para matar outrem — quebra terrível de uma fronteira moral, social, cultural e jurídica. É isto que não pode ser, porque, além da violência em si, far-nos-ia atravessar a fronteira fundamental, conduzindo a uma progressiva degradação da cultura social, à decadência médica e a um ambiente de ameaça pendente.

Recuemos à TSF, em 2013. A pouco e pouco, o que se relatou dos animais expandir-se-ia para as pessoas: seriam eutanasiados os doentes, os velhos e os dispendiosos. Outros ainda.



3. Ao contrário da opinião corrente, o direito à vida, princípio fundamental de qualquer ordem jurídica moderna e civilizada, é uma formulação relativamente recente e rara. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, não lhe dedica uma palavra — o que ajuda a compreender como a Revolução Francesa abusou do Terror e da guilhotina. Para esse texto fundamental, os “direitos naturais e imprescritíveis” eram apenas estes quatro: “a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão”. A vida não era importante.

A Constituição norte-americana, só quase um século depois de adoptada, tratou do direito à vida, na 14.ª emenda, entre os direitos de cidadania e de modo limitado: “nenhum Estado privará qualquer pessoa da vida, liberdade ou propriedade, sem o devido processo legal”.

Dos textos fundamentais que conheço, a Constituição Portuguesa é aquela que, de longe, contém a melhor e mais nítida, a mais vigorosa e mais clara das formulações do direito à vida. A mais bonita também.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, adoptada pelas Nações Unidas em 1947, proclama: “Todo o indivíduo tem direito à vida.” A Convenção Europeia, de 1950, é mais fraquinha: “O direito de qualquer pessoa à vida é protegido pela lei.” As Constituições francesa e italiana nada dizem. A Constituição alemã declara que “toda a pessoa tem direito à vida”, mas inclui esse direito no conjunto daqueles que “só podem ser afectados nos termos de uma lei”. A Constituição espanhola afirma que “todos têm direito à vida”, fórmula próxima da que viria a ser adoptada pela Carta Europeia dos Direitos Fundamentais: “Todas as pessoas têm direito à vida.”

Em Portugal, a Constituição não se pôs com rodeios, nem curvas e contracurvas jurídicas. Foi directa ao assunto: “A vida humana é inviolável.” Esteve à altura do mais fundamental direito para as pessoas comuns. Escreveu terra-a-terra, para toda a gente, não apenas para juízes e advogados, juristas e mestres, deputados e ministros.

Aqui, somos os mais avançados do mundo. Foi um dia inspirado da Assembleia Constituinte. Vou repetir a proclamação: “A vida humana é inviolável.” Fantástico! Absolutamente formidável.



4. Como é possível querer que a Assembleia da República vote leis que tornem a vida humana violável? Para não transformar a Constituição num trapo, não fazer do Direito uma anedota, não reduzir o processo legislativo a uma palhaçada e a política a uma farsa, isso não será possível. Quem queira permitir a eutanásia por lei deve promover a revisão da Constituição e, mudando por inteiro o paradigma, dizer: “A vida humana é violável.” Se é nisso que acreditam e é isso que querem. Advogado, ex-deputado do CDS-PP 



José Ribeiro e Castro
Advogado e antigo líder do CDS

PÚBLICO, 1.Fevereiro.2017

Comentários

Mensagens populares