A zanga do Peixoto
A morte de Mário Soares reacendeu o debate sobre “o responsável da descolonização”: leve na comunicação social, intenso nas redes sociais e caixas de comentários.
É natural, pela dor e paixão da questão. Só surpreendeu o extremismo de uns, o erro de outros, o martelar de falsidades, o desvio enviesado do foco dos maiores responsáveis pelas decisões e pela execução. Tendo muitos vivido os factos, com o PREC incendiado nas ruas e, quer cá, quer sobretudo nos territórios ultramarinos, todo o poder nas mãos dos militares, espanta o enviesamento que alguns tentaram contra Soares. Toda a gente sabe isto: os do poder militar foram mais responsáveis que os civis, os comunistas e a extrema-esquerda mais que os socialistas, os radicais mais que os moderados. Havia a factura do passado e da ruptura. Houve que defender, na rua e nas Forças Armadas, a democracia e a liberdade. Além da vida vivida, já se publicou tanta coisa que não é possível ter dúvidas sobre os factos.
Tudo me lembrou a história do Peixoto, um segredo da corte de D. Manuel, em que tropecei por acaso.
O Peixoto era D. Álvaro Peixoto, fidalgo de confiança do rei D. Manuel, dos afamados Peixotos de Celorico. Guerreiro valoroso, fora treinado nas artes da navegação. E foi a ele que D. Manuel confiou a chefia da expedição que iria navegar para a Índia por novo caminho.
À partida das naus, alguma coisa o inquietou; e D. Álvaro chamou o seu segundo e disse-lhe: "Ó Vasco, sai tu a comandar, que eu tenho de ir ali a terra resolver um problema e, depois, noutra nau, já vos apanho." Vasco da Gama obedeceu; e assim se construiu a sua fama, que nunca mais se apagou.
A expedição chegou à Índia, como sabemos, e nada do Peixoto. Nem quando passaram Sagres, nem ao deixarem Marrocos para trás, nem no Bojador ou no cabo da Boa Esperança, nem na costa de Moçambique, nada até Calecute. Quando dois anos depois, Vasco da Gama regressa ao Tejo, depara que, naquela mesma praia do Velho do Restelo, estava o Peixoto em acesa discussão com mais cinco ou seis pessoas, entre as quais duas mulheres.
Perguntou o que era. Contaram-lhe que D. Álvaro Peixoto, no dia da partida, se travara de razões, ali na praia, com parentes e vizinhos seus, discutindo uma questão que os consumia: quem é que, 40 anos antes, reinava D. Afonso V, roubara o cavalo ruço do cunhado da prima do tio-avô do Peixoto, numa partilha da família em Celorico? As desconfianças iam para um parente bastardo, embora houvesse indícios que apontavam para outro tio-avô, velho e alcaide da terra. Nisto se afadigaram naquela praia, dois anos a fio, sem chegarem a conclusões.
O Peixoto pouco ligou ao Gama, a quem disse "Olá!" e mais nada, não querendo sequer saber da Índia. Voltou ao caso do cavalo ruço. Pedro Álvares Cabral foi ao Brasil e à Índia e voltou. E o Peixoto sempre a discutir. Vasco da Gama tornou à Índia e voltou. E a discussão sempre acesa, naquela praia do Restelo, apesar de o cavalo ruço já ter certamente morrido (um cavalo vive 25 a 30 anos). Até que morreu o próprio Peixoto, não havendo registos de quando, nem como.
No lugar, o povo construiu um mito semelhante ao que viria a ser o de D. Sebastião. Não é que o Peixoto regresse em manhã de nevoeiro, não. O mito é que o Peixoto volta nas noites de Lua Nova, retomando a discussão naquela mesma praia, ouvindo-se perfeitamente a voz dele a ralhar e, depois, duas mulheres a gritar, assustadas e aflitas. Na Lua Nova seguinte, diz a lenda, volta a cena e a assombração.
Mas a verdade é que, entre os Peixotos de Celorico, nunca conseguiu apurar-se a magna questão: quem é que roubou o cavalo ruço do cunhado da prima do tio-avô de D. Álvaro Peixoto? Essa é que é essa.
Além do inútil e da distorção da História para atingir um bode expiatório, estes debates e recorrências têm outro problema. Importante.
Passaram 42 anos. Os novos países, independentes, percorreram a sua própria História, uns melhor, outros pior. O maior interesse dos portugueses é estreitar relações de amizade, cooperação e intercâmbio com todos, na base da língua comum e da História comum.
Ora, as obsessões do Peixoto, na praia do Velho do Restelo, nada interessam a esse processo e podem ser contraproducentes. Em muitos casos, os nossos heróis são, para eles, vilões e os nossos vilões são seus heróis – ou seja, se nos entusiasmamos numa qualquer Lua Nova do Peixoto, nada curamos do passado, zangamo-nos no presente e podemos estragar outra vez o futuro.
José Ribeiro e Castro
Advogado
MAIS ALENTEJO, 1.Fevereiro.2017
Crónicas "AQUÉM-GUADIANA"
Comentários
Enviar um comentário