Devolver a selecção a todos os portugueses


No sábado, o jogo Portugal-Hungria ia ter uma novidade: uma claque organizada da selecção nacional. Li que não seria a primeira vez, mas a repetição de uma iniciativa do marketing da Federação Portuguesa de Futebol. Nunca dera por tal coisa. Sinceramente, esperava nunca ter de dar.

A novel claque deu nas vistas e fez-se anunciar, alto e bom som, à chegada ao Estádio da Luz. Vinha escoltada pela polícia. E entoou estes cânticos, como circula nos jornais online e redes sociais: “Filhos da puta! SLB! Filhos da puta! SLB! … SLB! SLB! SLB! SLB! SLB! ... Filhos da puta! SLB! Filhos da puta! SLB!” – com os inspirados cantores sempre guiados pela PSP. Ouvem-se ainda outros versos, mais sotto voce. Parece-me o tema “Em cada lampião, um cabrão!” – mas não tenho a certeza, pois a voz entrecortada dos solistas não foi acompanhada e o resto da coisa mal se percebe. Fiquemo-nos pelos “Filhos da puta! SLB!”

É bem sabido que sou um destes. Sou adepto do Benfica, benfiquista, sócio n° 4051 do Sport Lisboa e Benfica. Mas nem é por isso que escrevo, embora sentisse a ofensa em minha casa.

Quando, trabalhando com o ministro Roberto Carneiro, fui o relator da primeira Lei de Bases do Sistema Desportivo, concebi, para solucionar problemas jurídicos novos e complexos que se nos foram colocando, duas figuras que passaram a integrar o nosso ordenamento legal: o que chamei de “caso julgado desportivo”, uma criação original que ainda aí está na legislação; e o estatuto de utilidade pública desportiva, uma adaptação a partir do modelo francês e que constitui, desde então, a pedra angular do relacionamento entre o Estado e a orgânica desportiva, articulando o máximo de autonomia e independência com a garantia do exercício capaz de responsabilidades públicas.

Os cânticos da claque, a exibir as suas credenciais à entrada do Portugal-Hungria, prendem-se com dois núcleos essenciais do estatuto da utilidade pública desportiva.

Por um lado, a selecção nacional em si mesma e tudo o que a rodeia. A selecção nacional não é matéria de interesse particular ou clubista, mas justamente “de todos os nós”: transporta a nossa bandeira, canta o nosso hino, abraça-nos a todos sem fronteiras, nem divisões. Trair esse espírito é amesquinhar a selecção, pisar a bandeira, cuspir no hino, rasgar a união.

Por outro lado, um tema cardeal para qualquer federação desportiva: a ética desportiva. As nossas leis tratam-no muito bem desde 1990. A ética, cobrindo áreas muito sensíveis de intervenção como a violência, a corrupção, a dopagem, o racismo, a xenofobia, é matéria difícil de exprimir toda inteira em regulamentos. Todos sabemos o que é, sem necessidade de ler uma lei – quando necessitamos de ler a lei para saber o que é ética é porque já está tudo estragado. Cabe sobretudo à administração ser atenta e zelosa na sua afirmação, garantia e defesa. A fonte de referência permanente para a ética não é o “Diário da República”, e seus milhões de páginas, mas essa coisa tão simples que se chama: o exemplo.

Esta “claque” da selecção nacional é péssimo exemplo. Um exemplo desgraçado. Uma má ideia. E, como acontece normalmente com as más ideias, uma realidade ainda pior do que a ideia.

Li que o responsável desta “claque” federativa será um adepto chamado Fernando Madureira. Ouvimos normalmente falar dele como o líder dos “Super Dragões”. Normalmente por más razões: desacatos, zaragatas, ameaças, distúrbios. Tristemente, é assim com a cultura deste tipo de claques, incluindo no Benfica. Não há, creio, nenhuma que escape e possa dizer-se isenta de falta ou de risco. É irresponsável por parte da FPF querer construir e patrocinar, no estado actual da respectiva cultura, uma claque federativa a partir de claques clubistas, sejam quais forem.

Mas o adepto Fernando Madureira foi, ainda, notícia recente por ser, alegadamente, a alma e o motor de um clube chamado “Canelas 2010”, que usará no seu desempenho desportivo métodos tão violentos e intimidatórios que 12 clubes se recusaram a defrontá-lo em competições federadas: Maia Lidador, Serzedo, Valadares, Gondim Maia, Oliveira Douro, Varzim, Leça, Lavrense, Pedrouços, Rio Tinto, Grijó e Padroense. Suspeito que seja um novo modelo avançado de “futebol total”. Não sei como o caso evoluiu: se a FPF fez alguma coisa e já deu por sanado este problema surgido na Associação de Futebol do Porto. Porque, se não está e a Federação foi escolher para a representar com o nosso nome um tal sócio de músculo e gargarejo, de punho e vozeirão, o caso para a FPF é ainda mais grave, ultrapassando a mera irresponsabilidade, insensatez e incompetência. Será uma violação grosseira do seu estatuto, uma traição radical do seu papel, dirigente e ordenador.

Voltemos aos inspirados versos do refrão “Filhos da puta! SLB!” Admito que não fossem escritos pela mão de Fernando Gomes, presidente da FPF – embora, por estes dias, a dúvida fique e a pergunta faça sentido; e seja deste Fernando, não do Madureira, que é devida uma desculpa.

Posso bem com os insultos de um bando arruaceiro, sob escolta. E não está tanto em causa o Benfica, embora, a uma semana do Benfica/Porto, a oportunidade de calendário fosse também desastrada – ou escolhida a dedo.

Estão em causa a seleçcão nacional e a Federação Portuguesa de Futebol. Eu não quero uma claque assim, mesmo se juntasse todos os arruaceiros de todos os clubes, a chamar nomes à Hungria, ou à Suíça, ou a França ou Espanha, ou a quem quer que seja. Não quero esse modelo de claque. Só aceito modelos de claques que integrem, que festejem, que recebam e abracem os adeptos de outras selecções que nos visitem. Não quero claques que precisem de escolta, cassetete e gás pimenta. Não quero ter medo de ir ao futebol com os meus netos. Não quero claques, ícones do extremismo e emblemas do hooliganismo, mas exactamente o contrário – como é a obrigação estatutária e legal da Federação Portuguesa de Futebol: contra a violência, contra o racismo e a xenofobia, pelo fair play.

Nunca precisámos disto, tanto é o carinho e o apoio que os portugueses, sem excepção, dedicam à selecção. Não estraguem isto. Não ponham claques entre nós.

Lembro-me da final do Euro 2004, que perdemos para a Grécia. Não havia claques. Éramos todos uma claque. Foi também no Estádio da Luz. Embora chateados porque tínhamos deixado fugir o pássaro, respeitámos a festa dos gregos e, todos para rua até ao Rossio, partilhámos com eles a festa e a amizade das gentes e do futebol. Se a FPF já soube, onde é que desaprendeu?

Este é um assunto sério. É muito importante, até porque é perigoso. É agora que tem de ter atalhado. Rapidamente. Ou a Federação afasta e despede de imediato, por manifesta incompetência e má figura, quem concebeu tão má ideia e desenvolve política tão desastrosa, ou o governo da República terá que ordenar um inquérito para efeitos de suspensão da utilidade pública desportiva da FPF.

Estão em causa valores fundamentais. No nosso ordenamento jurídico e em qualquer país decente, uma federação desportiva não pode ser o ninho, nem o albergue dos símbolos da violência e da linguagem do ódio.



José Ribeiro e Castro
Advogado, ex-dirigente benfiquista

RECORD, 29.Março.2017


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