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Trinta e um anos de incompetência – e ridículo também


1. A 7 e 8 de Fevereiro, o Diário da República publicou nada mais, nada menos do que três Resoluções da Assembleia da República com recomendações ao Governo na internacionalização da Língua Portuguesa. São as 15, 16 e 17/2017. Uma prolífica produção. Nada tenho contra. Pelo contrário. Tenho batalhado pelos direitos internacionais da nossa língua, uma das principais línguas da globalização e um dos nossos maiores recursos estratégicos. Bem gostaria que essas orientações fossem bem seguidas. O problema é que não tem sido assim.

Detenhamo-nos nas Resoluções. Diz uma: «contribuindo para o seu reconhecimento como grande Língua de comunicação global». Outra: «a afirmação da nossa Língua enquanto língua de trabalho nas grandes organizações multilaterais». E outra: «uma mais ampla utilização e promoção da Língua Portuguesa enquanto importante capital estratégico para a internacionalização da cultura e economia nacionais.» Tudo me enche de alegria. E gostaria que também de esperança. Mas o que tenho visto é muito negativo.

As Resoluções ecoam o propósito de somar a Língua Portuguesa às línguas oficiais das Nações Unidas. Porém, nem no quadro da União Europeia (UE), onde temos a protecção dos Tratados, Portugal tem querido defender e afirmar a posição do português, a terceira língua europeia global; e tem-se auto-infligido derrotas frequentes de desvalorização e menosprezo. Uma vergonha. E capitulação consecutiva.

Os exemplos mais graves e chocantes foram o nosso apoio ao chamado regime de Alicante (nas marcas), em 1993-94, e ao regime de Munique (nas patentes), em 2011 e 2015. Já seria mau que o resto da Europa decidisse contra nós. Pior ainda nós termos votado a favor deles contra Portugal. Nos grandes desafios que se puseram à nossa Língua no quadro europeu, os nossos governantes não souberam tomar posição. Minto. Tomaram uma posição: de cócoras.



2.
O mais caricato é o que se passa na Assembleia Parlamentar Paritária ACP/UE, que organiza a cooperação interparlamentar entre a UE e antigas colónias em África, Caraíbas e Pacífico. Há semanas, uma notícia chamou-me a atenção: o eurodeputado João Oliveira, recusou-se a participar na reunião da Assembleia ACP/UE por «exclusão da língua portuguesa» dos trabalhos. Gostei. Finalmente, mais alguém voltava a bater o pé.

Vale a pena conhecer este confrangedor ridículo político-burocrático. Na cooperação ACP/UE, o regime é o da UE: todas as línguas são oficiais. Mas, na prática, imperam o Inglês e o Francês, únicas línguas em que circulam os documentos; e, nas plenárias semestrais, a interpretação seguia um regime restrito que, quase sempre, excluía o Português.

Quando integrei, no Parlamento Europeu, esta cooperação, quis saber porquê. A regra era só haver cabine portuguesa, se, até um mês antes da reunião, cinco eurodeputados portugueses estivessem inscritos. Isso nunca acontecia, dada a dispersão dos deputados por dezenas de delegações internacionais. Mas, como, entre efectivos e suplentes, éramos cinco, combinámos inscrevermo-nos todos, mesmo que, depois, alguns faltassem. O imaginoso truque foi descoberto, ao fim de duas ou três sessões. E o controlo administrativo apertado: os cinco eurodeputados tinham de estar registados no serviço de viagens do Parlamento Europeu.

Subi para “formas superiores de luta”. Durante seis anos, não sei quantas cartas, petições, abaixo-assinados apresentei, consecutivamente, à hierarquia dos ACP-UE e do Parlamento Europeu e à nossa REPER [Representação Permanente de Portugal junto da União Europeia], mobilizando colegas europeus, lusófonos ACP e embaixadores da CPLP [Comunidade de Países de Língua Portuguesa] em Bruxelas.

Irritava-me que os empedernidos burocratas nos exigissem cinco eurodeputados, sem atender a que, do lado ACP, há seis países inteiros que falam português como língua oficial. Agastava-me que os documentos não fossem pré-circulados em português, mas unicamente como se vivêssemos em império anglófono ou francófono. A coisa é tão ridícula que, em 2005, um moçambicano e eu fomos designados co-relatores da Resolução sobre “Reabilitação pós-conflito em países ACP”. Tivemos de trabalhar em inglês! – por causa do Secretariado. Pior: a versão em português só ficou disponível seis meses depois da aprovação plenária – já sem actualidade, nem utilidade.

Esta experiência anedótica levou-me a preparar, com um assistente meu, em 2006, o que chamámos pomposamente de “Declaração de Viena”, por ocasião da plenária que aí reuniu: um levantamento exaustivo de vários preceitos do Acordo de Cotonu, pondo em evidência o absurdo da prática linguística fechada, que sabota, fora da anglofonia e da francofonia, os propósitos em matéria de envolvimento da sociedade civil, interacção cultural e política, participação da juventude, interesse de escolas e universidades, mobilização da opinião pública. Tive o apoio da Presidente da Assembleia ACP-UE, de dezenas de colegas dos dois lados e de diplomatas africanos. Mais uma vez bateu na trave. Não houve a menor ajuda da diplomacia portuguesa.

Esta é a razão fundamental do persistente fracasso: o total desinteresse do Estado português. A acção de deputados (infelizmente, poucos) pode chamar a atenção, agitar as águas, mobilizar. Mas não é eficaz, se não é acompanhada da acção contínua e da posição firme do Estado. Às vezes, pomos a bola a saltar na linha de golo. Falta sempre o remate: da nossa diplomacia, do Estado. Tudo por falta de instruções dos sucessivos ministros e secretários de Estado, nos Negócios Estrangeiros e Assuntos Europeus.

Está tudo como em 1 de Janeiro de 1986, quando entrámos. São 31 anos e picos de incompetência!



3. Em 2009, tive um pequeno prémio. Após contínuos protestos, a Mesa do Parlamento Europeu concedeu uma aparente melhoria: passava a haver cabine garantida para certas línguas, como o português, mas apenas se se confirmasse, 15 dias antes de cada plenária, que não estavam inscritos menos de três eurodeputados dessa língua. É o prodígio do burocrata excelentíssimo! O controlo passou de positivo a negativo e de 30 a 15 dias de antecedência, ao mesmo tempo que entrámos, pela primeira vez, num grupo selecto de seis línguas e se baixou de cinco para três o número de deputados exigido. Mas continuou a desprezar-se os países ACP de língua portuguesa; e, agora, garantir três eurodeputados portugueses é tão difícil como, em 2004, cinco – então, éramos 25; hoje, apenas 21, repartidos por várias delegações.

A decisão ignorou outro aspecto crucial: a circulação dos documentos preparatórios nas línguas comuns ao espaço UE e ao espaço ACP. A obstinação franco-britânica do Secretariado ACP/UE e as orelhas moucas da hierarquia do Parlamento Europeu são insensibilidade e pirraça. As plenárias ACP/UE discutem, por ano, seis relatórios e correspondentes Resoluções. Ora, isto é a décima parte, ou menos ainda, do trabalho anual de cada uma das 22 comissões permanentes do Parlamento Europeu. Custa quase nada (no máximo, 0,45% do trabalho homólogo do Parlamento) que os serviços assegurem também as traduções ACP-UE em português, como exigimos na “Declaração de Viena”.



4. A casmurrice anglófona e francófona resiste ao óbvio. E transmite a ideia de que, na burocracia ACP/UE e circuitos conexos na Comissão e no Parlamento Europeu, possivelmente ainda não terão conhecimento de que aconteceu o 25 de Abril, se concretizou a descolonização e seis países falantes de português são subscritores do Acordo de Cotonu e quase todos já o tinham sido dos Acordos de Lomé. Não será de lhes mandar uma notificaçãozita?


José Ribeiro e Castro
Advogado e antigo líder do CDS



PÚBLICO, 1.Março.2017



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