Cabo Verde, esse outro como nós
Esta visita do Presidente da República a Cabo Verde poderia ter sido a primeira na CPLP. E, se descontarmos os laços pessoais que ligam Marcelo Rebelo de Sousa a Moçambique, é efectivamente a primeira, embora segunda. Antevejo que será tão radiosa quanto foi a de Moçambique e mais poderosa ainda, por certo, nos seus efeitos. Faço votos por isso. Cabo Verde e os cabo-verdianos merecem-no como poucos.
Cabo Verde ingressou há anos no pelotão dos países de desenvolvimento médio, superando, por mérito e esforço próprios, o estigma e a condenação do subdesenvolvimento. Em 40 anos de independência, passou de “Estado inviável” — como muitos temiam — a país de referência: um modelo para que se olha com orgulho ou com apreço. Teve a coragem de dar o passo para a democracia pluripartidária nos anos 1990; e deu mesmo esse passo, plenamente: não ficou a meio caminho, nem nos tacos de partida. Cabo Verde é hoje, em África, um paradigma de boa governação, de Estado de direito, de respeito das liberdades fundamentais, de funcionamento democrático a todos os níveis institucionais e de poder. Cabo Verde respira futuro.
Conheci Cabo Verde pelos cabo-verdianos, que são a maior riqueza que o país tem — uma riqueza preciosa, uma riqueza talentosa. No nosso ditado, a necessidade aguça o engenho — e os cabo-verdianos, de especialistas da necessidade, tornaram-se campeões do engenho. É uma história de muito sofrimento, mas uma história de superação e crescimento. Os filhos da areia e do pó não foram a nação improvável que a solidão do mar e das ilhas e o quase deserto da pouca terra poderiam antecipar, antes se consolidaram como nação singular e admirada. Conheci Cabo Verde também pela sua música — gosto de imaginar e conhecer os povos pela música que cantam. Os géneros que criaram, a morna, a coladeira, o funaná, outros, correm mundo como inconfundível referência cultural: são uma marca do país e sua gente. Surpreende como uma geografia e uma história tão difíceis produziram um povo com tanta criatividade e uma alegria tão contagiante. Quando ouvimos cantar em crioulo, os que não entendemos nada percebemos a força da língua e da sua sonoridade como um outro instrumento. Não há outra música assim. Só muito depois de conhecer os cabo-verdianos e a sua música pude visitar Cabo Verde. E a realidade agreste da terra só não me esmagou porque já a conhecia dos livros, da televisão, de ouvir contar. Tive que consolidar, ainda mais, a minha admiração. Se há no mundo bons exemplos, Cabo Verde é um deles. Grande terra, grande gente.
A Parceria Especial União Europeia/Cabo Verde, para cuja concepção e conclusão muito trabalhei no Parlamento Europeu, comemora o 10.º aniversário neste ano de 2017. É fundamental que estes dez anos lancem novo e decisivo impulso. Cabo Verde acaba de concluir uma rotação democrática exemplar, nos três ciclos eleitorais de 2016: mudança de maioria parlamentar e do governo, consolidação dos municípios, reeleição do Presidente da República com maioria muito expressiva. Este quadro de democracia, maturidade e estabilidade não pode deixar de ser correspondido e premiado pela União Europeia. Não pode crescer a ideia perversa de que aceder ao estádio de desenvolvimento médio é um factor de penalização — e não de prémio — nos apoios externos ao progresso endógeno e auto-sustentável. Nem pode correr a impressão de que a Europa presta mais atenção às ditaduras africanas do que às democracias. Os dez anos da Parceria Especial têm de representar um novo marco, trampolim para nova década, capitalizando o balanço do conseguido, fazendo concretizar o que se atrasou e lançando as novas linhas que os tempos reclamam.
Noutros artigos e intervenções, tenho chamado a atenção para o facto de alterações institucionais do Tratado de Lisboa terem prejudicado involuntariamente o quadro político favorável ao desenvolvimento da Parceria — e expliquei porquê, no meu entender. Essa falha de impulso político duradouro tem de ser compensada por um maior envolvimento da Comissão e seu Presidente, mas constitui também uma oportunidade — e uma responsabilidade permanente — para Portugal, o irmão europeu de Cabo Verde.
Sempre achei que Cabo Verde e Portugal têm muito em comum. Se nos imaginarmos apenas reduzidos a Açores e Madeira, seríamos um Cabo Verde mais a norte, no mesmo Atlântico. Dizendo de outro modo: somos um Cabo Verde europeu com um pé no continente. Essa circunstância geopolítica irmana-nos, constituindo uma permanente ambiguidade, que não é um passivo, mas um activo inspirador. Brincando com as palavras, às vezes não sabemos de que terra somos. Somos europeus? Somos atlânticos? Ou, no caso de Cabo Verde, somos africanos? Somos países de relação, países de interface, países de chegada e de partida, países de grandes diásporas (curiosamente, gémeas em tantos lugares da Europa, de África e da América). Etnicamente, somos ambos mestiços, nós mais claros, eles mais morenos. Culturalmente, somos ambos crioulos, nós a partir do latim e da cultura mediterrânica, eles a partir do português e da cultura atlântica. Esse capital de relação é um dos grandes trunfos de Cabo Verde, que nós conhecemos e podemos cultivar como mais ninguém. E esse capital de relação é não só um tesouro dos cabo-verdianos, mas também um recurso precioso para a União Europeia e uma especialidade onde devemos ser úteis e cúmplices. Essa nossa especialidade é um trunfo — e uma responsabilidade.
Tenho esperança de ver o Presidente da República contribuir para esse novo fôlego da Parceria Especial a partir destes dias da sua visita oficial. Afinal, nós, portugueses, somos esses parceiros especiais por natureza — é só questão de alargar a outros o abraço e compromisso que sabemos.
Cabo Verde ingressou há anos no pelotão dos países de desenvolvimento médio, superando, por mérito e esforço próprios, o estigma e a condenação do subdesenvolvimento. Em 40 anos de independência, passou de “Estado inviável” — como muitos temiam — a país de referência: um modelo para que se olha com orgulho ou com apreço. Teve a coragem de dar o passo para a democracia pluripartidária nos anos 1990; e deu mesmo esse passo, plenamente: não ficou a meio caminho, nem nos tacos de partida. Cabo Verde é hoje, em África, um paradigma de boa governação, de Estado de direito, de respeito das liberdades fundamentais, de funcionamento democrático a todos os níveis institucionais e de poder. Cabo Verde respira futuro.
Conheci Cabo Verde pelos cabo-verdianos, que são a maior riqueza que o país tem — uma riqueza preciosa, uma riqueza talentosa. No nosso ditado, a necessidade aguça o engenho — e os cabo-verdianos, de especialistas da necessidade, tornaram-se campeões do engenho. É uma história de muito sofrimento, mas uma história de superação e crescimento. Os filhos da areia e do pó não foram a nação improvável que a solidão do mar e das ilhas e o quase deserto da pouca terra poderiam antecipar, antes se consolidaram como nação singular e admirada. Conheci Cabo Verde também pela sua música — gosto de imaginar e conhecer os povos pela música que cantam. Os géneros que criaram, a morna, a coladeira, o funaná, outros, correm mundo como inconfundível referência cultural: são uma marca do país e sua gente. Surpreende como uma geografia e uma história tão difíceis produziram um povo com tanta criatividade e uma alegria tão contagiante. Quando ouvimos cantar em crioulo, os que não entendemos nada percebemos a força da língua e da sua sonoridade como um outro instrumento. Não há outra música assim. Só muito depois de conhecer os cabo-verdianos e a sua música pude visitar Cabo Verde. E a realidade agreste da terra só não me esmagou porque já a conhecia dos livros, da televisão, de ouvir contar. Tive que consolidar, ainda mais, a minha admiração. Se há no mundo bons exemplos, Cabo Verde é um deles. Grande terra, grande gente.
A Parceria Especial União Europeia/Cabo Verde, para cuja concepção e conclusão muito trabalhei no Parlamento Europeu, comemora o 10.º aniversário neste ano de 2017. É fundamental que estes dez anos lancem novo e decisivo impulso. Cabo Verde acaba de concluir uma rotação democrática exemplar, nos três ciclos eleitorais de 2016: mudança de maioria parlamentar e do governo, consolidação dos municípios, reeleição do Presidente da República com maioria muito expressiva. Este quadro de democracia, maturidade e estabilidade não pode deixar de ser correspondido e premiado pela União Europeia. Não pode crescer a ideia perversa de que aceder ao estádio de desenvolvimento médio é um factor de penalização — e não de prémio — nos apoios externos ao progresso endógeno e auto-sustentável. Nem pode correr a impressão de que a Europa presta mais atenção às ditaduras africanas do que às democracias. Os dez anos da Parceria Especial têm de representar um novo marco, trampolim para nova década, capitalizando o balanço do conseguido, fazendo concretizar o que se atrasou e lançando as novas linhas que os tempos reclamam.
Noutros artigos e intervenções, tenho chamado a atenção para o facto de alterações institucionais do Tratado de Lisboa terem prejudicado involuntariamente o quadro político favorável ao desenvolvimento da Parceria — e expliquei porquê, no meu entender. Essa falha de impulso político duradouro tem de ser compensada por um maior envolvimento da Comissão e seu Presidente, mas constitui também uma oportunidade — e uma responsabilidade permanente — para Portugal, o irmão europeu de Cabo Verde.
Sempre achei que Cabo Verde e Portugal têm muito em comum. Se nos imaginarmos apenas reduzidos a Açores e Madeira, seríamos um Cabo Verde mais a norte, no mesmo Atlântico. Dizendo de outro modo: somos um Cabo Verde europeu com um pé no continente. Essa circunstância geopolítica irmana-nos, constituindo uma permanente ambiguidade, que não é um passivo, mas um activo inspirador. Brincando com as palavras, às vezes não sabemos de que terra somos. Somos europeus? Somos atlânticos? Ou, no caso de Cabo Verde, somos africanos? Somos países de relação, países de interface, países de chegada e de partida, países de grandes diásporas (curiosamente, gémeas em tantos lugares da Europa, de África e da América). Etnicamente, somos ambos mestiços, nós mais claros, eles mais morenos. Culturalmente, somos ambos crioulos, nós a partir do latim e da cultura mediterrânica, eles a partir do português e da cultura atlântica. Esse capital de relação é um dos grandes trunfos de Cabo Verde, que nós conhecemos e podemos cultivar como mais ninguém. E esse capital de relação é não só um tesouro dos cabo-verdianos, mas também um recurso precioso para a União Europeia e uma especialidade onde devemos ser úteis e cúmplices. Essa nossa especialidade é um trunfo — e uma responsabilidade.
Tenho esperança de ver o Presidente da República contribuir para esse novo fôlego da Parceria Especial a partir destes dias da sua visita oficial. Afinal, nós, portugueses, somos esses parceiros especiais por natureza — é só questão de alargar a outros o abraço e compromisso que sabemos.
José Ribeiro e Castro
Advogado e antigo líder do CDS
PÚBLICO, 8 de Abril de 2017
Advogado e antigo líder do CDS
PÚBLICO, 8 de Abril de 2017
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