Fernando, Gilberto e a água do Bengo
Às vezes, perguntam-me. Chegaram a confrontar-me politicamente, como se o escondesse. A razão por que não me chamo Santos e Castro é prosaica: quando nasci, a lei proibia que alguém fosse registado com mais de três apelidos. Como o apelido de meu pai era composto (Santos da minha avó, Castro do meu avô) e o da minha mãe binominal (Almeida Ribeiro), os meus pais preferiram respeitar a integridade do apelido da minha mãe a transmitir o nome profissional de meu pai. Assim fiquei com os três apelidos do limite legal: Almeida Ribeiro e Castro — e, na cultura da Faculdade de Direito, fiz o “Ribeiro e Castro”.
Tenho orgulho e muita honra nos dois irmãos Santos e Castro, grandes referências e exemplos na minha vida e formação, a que dedico o Dia dos Irmãos que se festeja para a semana (31 de Maio). A minha avó, Santos, e o meu avô, Castro, eram ambos de longa ascendência madeirense, ilhéus mesmo ilhéus — não lhes conheço avoengo doutra terra. O meu pai, Fernando, nasceu no Funchal, em 1922; o meu tio, Gilberto, era angolano, nascido no Lobito seis anos depois.
O meu avô Castro fez-se oficial das Alfândegas e concorreu à carreira de África. Colocado como director em São Tomé, quando o meu pai tinha três meses de idade, navegou com a família para África. Poucos anos depois, é colocado em Angola, onde parece que a carreira se fazia de sul para norte: Moçâmedes (hoje, Namibe), Benguela, Lobito e Luanda. O meu tio nasceu na escala do Lobito, mediando seis anos dessa errância africana. Depois, a família rumou a Luanda, onde ficou até 1939, altura em que o meu avô se reformou, por problemas de saúde, vindo para a Amadora e, enfim, Lisboa.
Os seis anos de diferença não perturbaram a coesão e cumplicidade dos irmãos Santos e Castro. Sempre me lembro deles assim, desde Mafra ou Lisboa a Luanda, Salazar, Cambambe ou Massangano, ou a Madrid e Lisboa outra vez.
O meu tio Gilberto era assaz selectivo nos alimentos. Cunhou esta frase: “Não como camarão, e gafanhoto também não; não como caranguejo, nem aranha. Não como bichos de forma pouco definida, nem animais com asas. Não como caça, nem mamíferos abaixo de vitela.” Se interrogado sobre o apertado catálogo alimentar, proclamava: “Eu é que sou de ‘boa boca’. Não como de tudo.”
Quando tinha dez anos, num jantar de festa em Luanda, notou que o meu pai, com 16 anos, punha os rabanetes de parte. Era uso, então, decorar pratos e travessas com rabanetes, nomeadamente bifes, carne assada ou quejandos — ainda apanhei esse costume por meus avós. Perguntou o meu tio, que tinha o seu geniozinho inventivo: “Fernando, tu não comes os rabanetes?” Perante o olhar de espanto do meu pai, atalha a minha avó: “Porquê? Gostas de rabanetes?” Resposta pronta: “Eu gosto muito de rabanetes! Como sempre os rabanetes.” E, para não ser desmentido, comeu os dois rabanetes que tinha no prato. A consequência, reza a lenda familiar, foi a de, por uma semana inteira, só ter, no prato, rabanetes para almoço e jantar. Não acredito que a minha avó, que era brincalhona, fosse tão severa. 24 horas de dieta de rabanete terão bastado para educar o génio do filho mais novo — e completar o seu catálogo alimentar: nunca o vi comer rabanetes. Aliás, a ninguém — rabanete era paisagem.
Viveram a infância e a juventude em Angola. Eram angolanos, embora só um nascido lá. Foi por eles que, muito antes de lá ter ido, bebi a água do Bengo, o feitiço que marca os que lá viveram ou por Angola se deixaram tocar. As histórias de juventude que lhes ouvia, as aventuras, as brincadeiras, as paródias, eram de Luanda. Cresci com esse mistério distante.
Com a guerra em 1961, o meu tio, que era militar, foi para Angola, onde faria três comissões e fundaria os Comandos. Seguíamos com ansiedade as notícias. Mas lembro, em especial, o Verão de 1963, altura em que o meu tio voltou cá. Eu tinha nove anos. Recordo, ainda maravilhado, os serões na pequena varanda de S. Domingos de Rana, na casa que viria a ser de meu irmão e meus sobrinhos. A casa está muito diferente, a varanda ainda lá está. Era a varanda onde o meu pai gostava de pôr-se literalmente a ver navios, de binóculos assestados sobre a foz do Tejo, lá em baixo, em São Julião da Barra. A varanda que dava para a pequena salinha onde, três anos depois, noutro Verão famoso, o do Mundial 1966, escaqueirei um divã, aos pulos consecutivos de entusiasmo, a partir do terceiro golo de Portugal contra a Coreia do Norte — aquele jogo inesquecível que vencemos por 5-3, depois de estarmos a perder 0-3.
Depois de jantar, o meu pai e o meu tio foram para a varanda, onde só cabiam os dois, à conversa pela madrugada dentro. Eu sentei-me no chão, atrás, já na salinha, a escutá-los. O meu tio falava mais, meu pai punha as perguntas. Também terão falado da guerra, mas disso não me lembro; lembro as memórias da terra. Lembro-me porque eram sítios que nunca vira, apenas podia imaginar, por entre o diálogo dos irmãos, carregado de saudade, episódios, exclamações e gargalhada. O Aero-Clube, a Fortaleza, a Samba, a marginal, a Brito Godins, a Mutamba, as Ingombotas, o São Paulo, a Maianga, Cacuaco, a estrada de Catete, a ilha, o Clube Naval, a alfândega, a Cidade Alta, o Liceu Salvador Correia... “E à Restinga, Gilberto, foste?” Sim, o meu tio também tinha ido à Restinga, no seu Lobito natal.
Foi por eles que bebi à água do Bengo. Quando, no Verão de 1970, fui pela primeira vez a Luanda com meus pais e meu irmão, pareceu-me que já conhecia, por causa daquele Verão de 1963 e doutros serões assim. Não sonhavam de todo que um viria a ser governador-geral e outro do distrito de Cuanza Norte. O meu tio vivia, então, no bairro de Alvalade, onde moravam alguns militares com suas famílias. Acompanhei, deliciado, os dois irmãos, na romagem pela infância e juventude. Fomos à casa que tinha sido a de meus avós, de que não lembro a morada. Na minha memória, ficou como a casa do “Quitufo”, porque aí ouvi, em directo e ao vivo, a formidável proeza. O “Quitufo” era o gato da minha avó. Foi recrutado pelos dois irmãos, sob a orientação técnica de meu pai, para uma experiência aeronáutica. Subiram ao telhado da casa, enfiaram o gato num saco de pão, com a cabecita de fora, penduraram-no pelos atilhos no cabo de um guarda-chuvas e lá foi o bichano de herói paraquedista até ao chão. A experiência tinha pouco risco, uma vez ser conhecido que os gatos têm sete vidas — e, ali, só arriscava uma. Aterrou, aliás, de boa saúde. Tão boa que, mal os irmãos o libertam do saco, o felino fugiu como um foguete; e só apareceu dois dias depois, para grande inquietação da minha avó. Creio que foi poupada à razão do desaparecimento. Por providência divina, os gatos miam e não falam. Nunca houve denunciante.
A marca que tenho de Angola é de histórias entretecidas comigo mesmo, em que as imaginadas são mais fortes do que as vividas. Angola, terra fantástica, deu-me todas as respostas nas idades das perguntas todas. É por isso que tenho tanta pena de não ser angolano. Devo-o aos irmãos Fernando e Gilberto, ao carimbo que me deixaram.
Tenho orgulho e muita honra nos dois irmãos Santos e Castro, grandes referências e exemplos na minha vida e formação, a que dedico o Dia dos Irmãos que se festeja para a semana (31 de Maio). A minha avó, Santos, e o meu avô, Castro, eram ambos de longa ascendência madeirense, ilhéus mesmo ilhéus — não lhes conheço avoengo doutra terra. O meu pai, Fernando, nasceu no Funchal, em 1922; o meu tio, Gilberto, era angolano, nascido no Lobito seis anos depois.
O meu avô Castro fez-se oficial das Alfândegas e concorreu à carreira de África. Colocado como director em São Tomé, quando o meu pai tinha três meses de idade, navegou com a família para África. Poucos anos depois, é colocado em Angola, onde parece que a carreira se fazia de sul para norte: Moçâmedes (hoje, Namibe), Benguela, Lobito e Luanda. O meu tio nasceu na escala do Lobito, mediando seis anos dessa errância africana. Depois, a família rumou a Luanda, onde ficou até 1939, altura em que o meu avô se reformou, por problemas de saúde, vindo para a Amadora e, enfim, Lisboa.
Os seis anos de diferença não perturbaram a coesão e cumplicidade dos irmãos Santos e Castro. Sempre me lembro deles assim, desde Mafra ou Lisboa a Luanda, Salazar, Cambambe ou Massangano, ou a Madrid e Lisboa outra vez.
O meu tio Gilberto era assaz selectivo nos alimentos. Cunhou esta frase: “Não como camarão, e gafanhoto também não; não como caranguejo, nem aranha. Não como bichos de forma pouco definida, nem animais com asas. Não como caça, nem mamíferos abaixo de vitela.” Se interrogado sobre o apertado catálogo alimentar, proclamava: “Eu é que sou de ‘boa boca’. Não como de tudo.”
Quando tinha dez anos, num jantar de festa em Luanda, notou que o meu pai, com 16 anos, punha os rabanetes de parte. Era uso, então, decorar pratos e travessas com rabanetes, nomeadamente bifes, carne assada ou quejandos — ainda apanhei esse costume por meus avós. Perguntou o meu tio, que tinha o seu geniozinho inventivo: “Fernando, tu não comes os rabanetes?” Perante o olhar de espanto do meu pai, atalha a minha avó: “Porquê? Gostas de rabanetes?” Resposta pronta: “Eu gosto muito de rabanetes! Como sempre os rabanetes.” E, para não ser desmentido, comeu os dois rabanetes que tinha no prato. A consequência, reza a lenda familiar, foi a de, por uma semana inteira, só ter, no prato, rabanetes para almoço e jantar. Não acredito que a minha avó, que era brincalhona, fosse tão severa. 24 horas de dieta de rabanete terão bastado para educar o génio do filho mais novo — e completar o seu catálogo alimentar: nunca o vi comer rabanetes. Aliás, a ninguém — rabanete era paisagem.
Viveram a infância e a juventude em Angola. Eram angolanos, embora só um nascido lá. Foi por eles que, muito antes de lá ter ido, bebi a água do Bengo, o feitiço que marca os que lá viveram ou por Angola se deixaram tocar. As histórias de juventude que lhes ouvia, as aventuras, as brincadeiras, as paródias, eram de Luanda. Cresci com esse mistério distante.
Com a guerra em 1961, o meu tio, que era militar, foi para Angola, onde faria três comissões e fundaria os Comandos. Seguíamos com ansiedade as notícias. Mas lembro, em especial, o Verão de 1963, altura em que o meu tio voltou cá. Eu tinha nove anos. Recordo, ainda maravilhado, os serões na pequena varanda de S. Domingos de Rana, na casa que viria a ser de meu irmão e meus sobrinhos. A casa está muito diferente, a varanda ainda lá está. Era a varanda onde o meu pai gostava de pôr-se literalmente a ver navios, de binóculos assestados sobre a foz do Tejo, lá em baixo, em São Julião da Barra. A varanda que dava para a pequena salinha onde, três anos depois, noutro Verão famoso, o do Mundial 1966, escaqueirei um divã, aos pulos consecutivos de entusiasmo, a partir do terceiro golo de Portugal contra a Coreia do Norte — aquele jogo inesquecível que vencemos por 5-3, depois de estarmos a perder 0-3.
Depois de jantar, o meu pai e o meu tio foram para a varanda, onde só cabiam os dois, à conversa pela madrugada dentro. Eu sentei-me no chão, atrás, já na salinha, a escutá-los. O meu tio falava mais, meu pai punha as perguntas. Também terão falado da guerra, mas disso não me lembro; lembro as memórias da terra. Lembro-me porque eram sítios que nunca vira, apenas podia imaginar, por entre o diálogo dos irmãos, carregado de saudade, episódios, exclamações e gargalhada. O Aero-Clube, a Fortaleza, a Samba, a marginal, a Brito Godins, a Mutamba, as Ingombotas, o São Paulo, a Maianga, Cacuaco, a estrada de Catete, a ilha, o Clube Naval, a alfândega, a Cidade Alta, o Liceu Salvador Correia... “E à Restinga, Gilberto, foste?” Sim, o meu tio também tinha ido à Restinga, no seu Lobito natal.
Foi por eles que bebi à água do Bengo. Quando, no Verão de 1970, fui pela primeira vez a Luanda com meus pais e meu irmão, pareceu-me que já conhecia, por causa daquele Verão de 1963 e doutros serões assim. Não sonhavam de todo que um viria a ser governador-geral e outro do distrito de Cuanza Norte. O meu tio vivia, então, no bairro de Alvalade, onde moravam alguns militares com suas famílias. Acompanhei, deliciado, os dois irmãos, na romagem pela infância e juventude. Fomos à casa que tinha sido a de meus avós, de que não lembro a morada. Na minha memória, ficou como a casa do “Quitufo”, porque aí ouvi, em directo e ao vivo, a formidável proeza. O “Quitufo” era o gato da minha avó. Foi recrutado pelos dois irmãos, sob a orientação técnica de meu pai, para uma experiência aeronáutica. Subiram ao telhado da casa, enfiaram o gato num saco de pão, com a cabecita de fora, penduraram-no pelos atilhos no cabo de um guarda-chuvas e lá foi o bichano de herói paraquedista até ao chão. A experiência tinha pouco risco, uma vez ser conhecido que os gatos têm sete vidas — e, ali, só arriscava uma. Aterrou, aliás, de boa saúde. Tão boa que, mal os irmãos o libertam do saco, o felino fugiu como um foguete; e só apareceu dois dias depois, para grande inquietação da minha avó. Creio que foi poupada à razão do desaparecimento. Por providência divina, os gatos miam e não falam. Nunca houve denunciante.
A marca que tenho de Angola é de histórias entretecidas comigo mesmo, em que as imaginadas são mais fortes do que as vividas. Angola, terra fantástica, deu-me todas as respostas nas idades das perguntas todas. É por isso que tenho tanta pena de não ser angolano. Devo-o aos irmãos Fernando e Gilberto, ao carimbo que me deixaram.
José Ribeiro e Castro
Advogado e antigo líder do CDS
Advogado e antigo líder do CDS
PÚBLICO, 24.Maio.2017
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