Parceria europeia, um estatuto para o futuro


Cabo Verde sempre se posicionou, para muitos de nós, numa posição especial quanto às relações com a União Europeia. Por um lado, tem características que o fazem único e uma interface privilegiada de relacionamento no Atlântico Central, ora com a África, ora com a Europa e com as Américas. Por outro lado, vinha tendo um processo de desenvolvimento absolutamente excepcional e ímpar no contexto africano, apesar da escassez de recursos naturais e da fragilidade inerente à insularidade. Cabo Verde dava nas vistas, não só por ascender à condição de país de desenvolvimento médio, mas sobretudo, desde a década de 1990, a um estádio absolutamente extraordinário de progresso político, segundo os melhores padrões democráticos e de consolidação do Estado de direito.

A certa altura, nesse entusiasmo prospetivo, pôs-se mesmo, nalguns círculos, a discussão sobre se Cabo Verde seria parte de África ou ainda extensão da Europa como os outros arquipélagos da Macaronésia mais a Norte: Canárias, Madeira e Açores. E, sem cuidar de decidir a condição europeia ou africana de Cabo Verde, ou de afirmar a condição euro-africana, houve relevantes figuras que defenderam a adesão de Cabo Verde à União Europeia, como foi o caso de Mário Soares e Adriano Moreira – já vinham intervindo nesse sentido e, em Março de 2005, lançaram em Portugal uma petição com essa proposta. Em 2010, Mário Soares levaria mais longe a expressão do seu pensamento, manifestando que, no seu entender, Cabo Verde “teria muito a ganhar” em ter evitado a separação em relação a Portugal e revelando: “Eu sempre achei que Cabo Verde não deveria ter sido independente, não assisti à independência de Cabo verde por isso mesmo.” Se Cabo Verde não tem adquirido a independência, estaria, hoje, com Portugal, na União Europeia, certamente com estatuto similar ao das Regiões Autónomas da Madeira e dos Açores e, portanto, superior aos dos DOM franceses, como Guadalupe e Martinica, nas Caraíbas. Mas isto é especulação.

Não podemos fingir que a História não aconteceu. Por isso, o desafio posto aos amigos de Cabo Verde na Europa era o de conceber e construir uma resposta que respeitasse por inteiro a independência do país, não fosse centrífuga relativamente ao espaço africano e, pelo contrário, potenciasse todas as virtualidades de relação multidireccional de Cabo Verde. Uma resposta ajustada à natureza e à circunstância do país.

As primeiras notícias de conceber “um estatuto especial” para as relações entre a União Europeia e Cabo Verde tive-as em Novembro de 2003, por ocasião de uma visita ao Luxemburgo do, então, Primeiro-Ministro José Maria Neves. Mas, nessa altura, quer o Conselho, quer a Comissão Europeia eram muito distantes quanto à ideia: em respostas a perguntas oficiais que logo coloquei, remetiam para o Acordo de Cotonu e pouco mais. Disse o Conselho: “O Acordo de Cotonu proporciona um quadro abrangente para o diálogo político, o comércio e a cooperação. Há que explorar ao máximo este potencial antes de se tomar em consideração um estatuto que vá para além de Cotonu.” Já a Comissão declarava ter conhecimento, mas nunca ter sido “formalmente informada deste assunto”, embora soubesse que “as autoridades portuguesas se mostraram abertas à questão da criação de um grupo de trabalho para estudar os diferentes aspectos deste problema.”

Em 2005, o tema conheceu uma aceleração decisiva, em que participei. Por Portugal, continuavam a ouvir-se sugestões de adesão de Cabo Verde à UE. Mas isso era muito mal recebido em Bruxelas. Nem era tanto a habitual reserva ou estranheza perante sugestões pontuais de alargamento da UE a países em espaços extra-europeus, como Israel ou Marrocos, para não falarmos do longuíssimo debate à volta da própria Turquia. Era a circunstância de a difícil digestão do grande alargamento de 15 para 27 Estados-membros, que estava então em curso, ter trancado a questão: em Bruxelas, independentemente dos méritos ou deméritos de cada candidatura, ninguém queria ouvir de alargamentos, ressalvados os casos sobrantes dos países balcânicos.

Havia que encontrar um caminho que permitisse fazer avançar o projecto de Cabo Verde e os seus interesses e que, portanto, não fosse interpretado como uma candidatura à adesão, directa ou indirectamente, nem provocasse esses receios, remotos que fossem, a quem o não queria.

Em Abril de 2005, por ocasião da plenária da Assembleia Parlamentar Paritária ACP/UE, realizada em Bamako e em que fui como deputado ao Parlamento Europeu, conheci o, então, ministro dos Negócios Estrangeiros, Victor Borges. Estava acompanhado do embaixador Fernando Wahnon Ferreira, que já conhecia de Bruxelas e com quem já trocara impressões sobre o desafio. As nossas conversas correram bastante bem e verifiquei que havia total identidade de pontos de vista entre o que eram os propósitos do governo cabo-verdiano e aquilo que, na minha avaliação, poderia conseguir-se em Bruxelas.

Na minha ideia, o estatuto original a conseguir para Cabo Verde tinha de ser o cruzamento de três linhas de políticas europeias: as políticas de desenvolvimento e cooperação no quadro do Acordo de Cotonu, valorizando o desempenho excepcional de Cabo Verde sob todas as perspectivas; um entendimento mais alargado da política de vizinhança, ampliando-a à linha insular costeira do Atlântico Central; e a integração regional das regiões ultraperiféricas, considerando a linha da Macaronésia. Também trocámos ideias quanto a ser indispensável para andamento e consolidação do projecto, que a União Europeia voltasse a ter, na Praia, uma Delegação de corpo inteiro, distinta de Dacar – não fazia sentido reconhecer um estatuto especial a um país que fosse tributário da representação europeia no Senegal, com um estatuto diplomático diminuído. Combinámos, em Bamako, uma articulação estratégica entre o que o governo de Cabo Verde e a sua embaixada fariam junto da Comissão, do Conselho e dos Estados-membros e o apoio político que, pelo meu lado, procuraria movimentar no Parlamento Europeu.

Poucos meses depois, sendo já também Presidente do CDS em Portugal, reuni, no Berlaymont, como eurodeputado, com dois comissários: Louis Michel, o titular do Desenvolvimento e, portanto, peça-chave para o arranque da ideia; e Benita Ferrero-Waldner, titular dos Negócios Estrangeiros, essencial quer para a questão da delegação, quer para a da política de vizinhança. Ambos estavam a par do projecto, por via diplomática. Verifiquei que, vencidas as reservas do sistema, simpatizavam com a ideia, em abstracto, e tinham genuíno apreço pelo desenvolvimento político e geral de Cabo Verde, que percebiam poder ser um parceiro especial da União Europeia no relacionamento euro-africano. Apresentei as minhas ideias, trocámos impressões e senti que o projecto poderia andar, desde que se accionasse um detonador político suficiente – isto é, os comissários, embora simpatizando com a ideia e dando orientações para a amadurecer, não sentiam condições suficientes para a Comissão dar o arranque; o sinal tinha que vir de outro lado.

No final do ano, surgiu, no Parlamento Europeu, uma oportunidade. A Comissão tinha apresentado, em 2004, uma Comunicação, definindo a orientação estratégica para a Política Europeia de Vizinhança; e, no final de 2005, o Parlamento Europeu decidiu ocupar-se do assunto, através de um chamado “relatório de iniciativa”. O designado relator era um deputado britânico, Charles Tannock, um bom amigo, criado e educado em Portugal, falante de Português e bom conhecedor da problemática; foi, por isso, um aliado precioso. Combinei com ele, já em Dezembro, apresentar pelo PPE duas propostas de emenda (as emendas 36 e 38), para serem incluídas pelo plenário. Êxito total! Os parágrafos aditados, por minha iniciativa, na votação final de 19 de Janeiro de 2006, dizem isto:
«G. Considerando a existência, sob a forma de ilhas situadas no Oceano Atlântico, de um determinado número de regiões insulares da União Europeia ultraperiféricas que, todavia, se encontram ligadas ao continente europeu, o que suscita problemas específicos no quadro da PEV, uma vez que também essas ilhas têm, na sua proximidade, vizinhos, sob a forma de ilhas que não pertencem à União Europeia, com os quais partilham laços históricos comuns,»

«7. (…) insta a Comissão a propor e a desenvolver políticas específicas que visem tornar extensiva, quando possível, a política de vizinhança aos Estados insulares do Atlântico vizinhos de regiões ultraperiféricas adjacentes ao continente europeu, quando possam relevar questões particulares de proximidade geográfica, de afinidade cultural e histórica e de segurança mútua;»
Um leitor atento reparará em dois aspectos: um, o texto nunca menciona Cabo Verde; outro, o texto só se aplica a Cabo Verde (e sua vizinhança com Canárias, Madeira e Açores). Foi a táctica que entendi seguir, porque a entendi a única capaz de vencer. E, na verdade, a minha colega Ana Gomes, do PSE, apresentou também duas propostas muito semelhantes (emendas 11 e 12), propostas que também apoiei, mas que seriam reprovadas. Porquê? Porque estas mencionavam expressamente Cabo Verde e as minhas não. Uma das reprovadas foi sujeita a voto electrónico, o que permite ter uma ideia do grau de resistência: 146 a favor, 300 contra, 5 abstenções.

No último debate, no dia 18, disse isto:
«A política de vizinhança tem que ser um conceito mais aberto, não restrito apenas às questões próprias do Mediterrâneo ou na fronteira leste da União Europeia. Não podemos esquecer que temos outros vizinhos nas nossas fronteiras marítimas atlânticas. Quer pela sua importância, quer pela particular sensibilidade que representam para a segurança europeia, deverão também merecer atenção específica neste quadro. Confinando com as nossas regiões ultraperiféricas, adjacentes ao continente europeu, temos que olhar ao caso de países insulares, particularmente vulneráveis aos grandes tráficos contemporâneos, com riscos para eles mesmos e reflexamente para a nossa segurança.

Alguns dizem que o caso de Cabo Verde tem enquadramento próprio no espaço ACP. Mas isso é uma visão demasiado quadrada e inadequada à realidade. Devemos ser capazes de definir políticas que façam o cruzamento fecundo, ágil e imaginativo da política de vizinhança com outros quadros, sejam o âmbito ACP ou outros.

Essa é a nossa necessidade; e Cabo Verde também o merece pelo desempenho exemplar do seu povo em matéria de democracia, boa governação e respeito pelos direitos humanos, além das profundas afinidades históricas, sociais, políticas, culturais e geográficas com a União Europeia. Apelo, assim, ao voto favorável das emendas 11, 12, 36 e 38.»
E, após o triunfo alcançado no dia 19, apresentei esta declaração de voto:
«Cabo Verde mostra desempenho exemplar em matéria de democracia, boa governação e respeito pelos direitos humanos e tem profundas afinidades históricas, sociais, políticas, culturais e geográficas com a União Europeia. Estas tornam-no uma plataforma privilegiada e excepcional para o desenvolvimento e estreitamento da relação euro-africana e um factor de estabilidade e segurança num dos flancos do espaço europeu.

Apesar de constituir a fronteira atlântica sudoeste da Europa, Cabo Verde tem vindo a ser incluído noutros programas que, por si sós, não traduzem a sua verdadeira proximidade, nem reconhecem a sua identificação com valores comuns, tais como o primado do direito, a promoção de boas relações de vizinhança e os princípios da economia de mercado e do desenvolvimento sustentável.

É sabido que têm sido desenvolvidos contactos por parte das autoridades cabo-verdianas e do maior partido da oposição, no sentido de promover a obtenção de um estatuto especial ou parceria com a União Europeia. A inclusão deste país na Política de Vizinhança poderá ser um importante passo nesse sentido e um contraponto decisivo numa Política de Vizinhança que ficaria muito pobre se ficasse restritamente centrada nas fronteiras meridional e oriental da União.

Regozijo-me com a aprovação das emendas 36 e 38.»
Este foi, nas instituições europeias, o tiro de partida. Finalmente, tínhamos a base política, dada pelo Parlamento Europeu, que permitia à Comissão Europeia avançar. Tivemos também a sorte de o responsável do “desk” de Cabo Verde na Comissão ser um italiano, Roberto Rensi, que rapidamente percebeu o assunto, agarrou a oportunidade e fez um trabalho de redacção notável, sempre em diálogo com a diplomacia cabo-verdiana e com o apoio do seu Director-Geral Stefano Manservisi.

2006 e 2007 foram anos de avanço contínuo na afinição do figurino da Parceria Especial. A palavra “parceria” surgira naturalmente pelo lado da Comissão, sendo um termo muito em voga no léxico das relações externas europeias. Ajustava-se como uma luva à ideia intuitiva que tinha bailado logo nas primeiras conversas: Cabo Verde tinha tudo para ser um parceiro especial da UE nas relações euro-africanas.

Pacientemente, foi-se tricotando o quadro de seis pilares que, cruzando e articulando diferentes quadros, constituíram o figurino adoptado. E, no segundo semestre de 2007, tivemos uma outra circunstância feliz: calhando o turno da Presidência portuguesa da UE, o nosso governo fez incluir o dossiê na agenda do Conselho, levando a que a Comissão apresentasse, em Outubro, o texto final e a Parceria acabasse aprovada, em Novembro. Aquando das conversas em Bamako, em Abril de 2005, jamais nos passou pela cabeça que pudesse ser tão rápido. Não conheço nem uma construção tão imaginosa quanto esta, nem um processo de reenquadramento de relações externas que avançasse em tão curto tempo. Cinco a dez anos seria o mínimo que poderíamos esperar – conseguiu-se em dois, desde articularmos uma estratégia comum.

A Parceria beneficia do quadro de acordo nacional em Cabo Verde. Num seminário que organizei no Parlamento Europeu, em 10 de Setembro de 2008, o então líder da oposição, hoje Presidente da Assembleia Nacional, o deputado do MpD Jorge Santos, afirmou: «Nós entendemos que a Parceria Especial com a União Europeia pode ser considerada um dos desígnios actuais da Nação, pois encerra um conjunto de objectivos estratégicos de curto, médio e longo prazo que envolvem interesses tanto de Cabo Verde, como interesses bilaterais dos 27 Estados e da própria União Europeia. (…) O MpD sempre se associou, desde o início, à assinatura do Acordo, apoiando politicamente o processo, pelo que se regozija com o modelo encontrado, defendendo o envolvimento de toda a Nação Cabo-Verdiana.»

Este espírito nacional é indispensável ao desenvolvimento de uma inovação absolutamente ímpar e única, feita à medida de Cabo Verde, permitindo vir a alcançar o que ficou para trás, consolidar o adquirido e construir novos pilares no relacionamento privilegiado entre a União Europeia e Cabo Verde. Quanto ao que ficou para trás, creio importante continuar a lutar para as instituições europeias entenderem que a política de vizinhança não se limita apenas a Leste e ao Mediterrâneo, mas se aplica também a Cabo Verde, na linha arquipelágica atlântica. Quanto ao adquirido, é fundamental consolidar a autonomia da representação europeia na Praia e ir tirando o máximo partido dos seis pilares definidos em 2007, hierarquizando-os, em cada momento, de acordo com as prioridades do Governo de Cabo Verde e as oportunidades que surjam. E, nas novas linhas, temos a nova ideia de um sétimo pilar, recentemente apresentada pelo Presidente Jorge Carlos Fonseca: investimento, crescimento e emprego.

Só posso desejar o maior sucesso. Mas, para que tudo isso e muito mais possa acontecer, há uma base indispensável, que dá força, credibilidade e prestígio à identidade cabo-verdiana e à sua marca: Estado de direito, democracia exemplar, consenso nacional quanto ao relacionamento com a UE. Foi isto que tudo permitiu.


José Ribeiro e Castro
Advogado, ex-líder do CDS

A NAÇÃO (Cabo Verde), 9.Maio.2017

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