A captura pelo carteirista
Temos denunciado nesta coluna o mau funcionamento do sistema político e da representação parlamentar, às vezes com casos-tipo mais chocantes.
Uma das questões é alienação dos deputados, arredados de problemas ou privados do exame prévio cuidadoso das decisões. Foi, em 2014, a “eutanásia social”, na expressão de Bagão Félix: a proibição de os reformados trabalharem mesmo sem remuneração, um caso que contei no prefácio da 1ª edição do Manifesto Por uma Democracia de Qualidade. Ou, também de 2014, a proibição manhosa de os casais, em atraso, se apresentarem, como habitualmente, à tributação conjunta em IRS – o “caso do Zé Augusto”, que aqui relatei: milhares de contribuintes, de recursos médios, com o imposto brutalmente agravado em milhares de euros, em 2016; interveio o Provedor de Justiça e a lei foi revista.
Há casos de grande gravidade, todavia, em que a reacção não soa, nem prevalece. Está um na ordem do dia: os CMEC, tão longamente badalados, quanto sobreviventes.
O cidadão comum tem dificuldade em saber o que são CMEC. Se o leitor, nas suas cogitações, pensar que um “C” significa “captura” e o outro “C” significa “carteirista”, não andará longe da verdade. O esquema, engendrado em 2004 e posto em marcha em 2007, significa “Custos de Manutenção do Equilíbrio Contratual”; mas o leitor revelaria faro e argúcia, se, ao querer adivinhar, pensasse em “Captura Metódica pelo Esquema do Carteirista”.
O esquema consiste num laborioso enredo técnico, impenetrável aos pagantes e muito difícil de entender a quem não seja especialista ou lhe dedique horas de estudo. Ouvindo as explicações, a nossa alma divide-se entre, para um lado, admiração gulosa e, para outro, indignação irada por se ter construído um novelo normativo que, através da articulação entre uma dada engenharia de produção e um sistema de tarifas garantidas, assegura para os lucros de alguns uma arca do tesouro alimentada em contínuo por um moedeiro bem lubrificado. E onde liga o moedeiro? Aos nossos bolsos, aos bolsos dos consumidores de electricidade.
São essas as engenhosas “rendas” não só “excessivas”, mas ilegais à luz do Direito Comunitário: um “pick pocket”, que, sacando 5 euros aqui e 53 acoli, mais 29 euros ali e outros 44 acolá, consoante o nível dos consumos domésticos ou empresariais, alimenta, em todos os meses de todos os anos, uma torrente de milhões que vai parar aos bolsos de alguns. Os CMEC são milhões de porquinhos-mealheiro (os consumidores) a encher, por decreto, o gordíssimo cofre do Tio Patinhas. Benefício público? Zero. Ou questionável. Além disso, impedem a economia de funcionar.
Este esquema de privilégio nunca deveria ter começado – e devia ter acabado há muito. Faço parte de um grupo de portugueses (nos bancos do meio, pois não tenho habilitações técnicas especializadas) que já há alguns anos luta politicamente contra os CMEC. Cremos que são ilegais. E, antes disso e além disso, são gravíssimo erro de política económica e de política energética, que fere as famílias, penaliza as empresas, atinge a nossa economia e a competitividade.
Nunca conseguimos o apoio suficiente para vencer. Sofre-se segregação. E houve quem pagasse mais o preço da verdade: o secretário de Estado Henrique Gomes, a quem presto homenagem, afastado porque queria ir mais longe mais depressa. Os pólos de captura do sistema são muito poderosos, sobretudo quando há muitos milhões em jogo, hábeis a chegar a muito lado de várias formas, incluindo à comunicação social. Não digo necessariamente corrupção – chega, muitas vezes, o poder encantatório dos milhões ou a teia das redes de poder. Há espíritos que se deslumbram com facilidade. Há dependências que se criam, pela publicidade e por mecenatos. E há a sábia máxima dos prudentes: “viver não custa, o que custa é saber viver”.
Em Maio de 2013, organizei, para alguns colegas deputados no CDS, um seminário com excelentes especialistas na matéria. O seminário sucedeu a um outro, realizado em Abril, onde tinha estado António Mexia e a sua equipa. O seminário de Maio, contra as rendas ilegais, foi um contraditório arrasador. A explicação e a prova dos abusos e efeitos nefastos foram tão flagrantes, que lembro não terem ficado dúvidas sobre o imperativo de acabar com isso. Pois bem… não se passou nada. A questão foi explicada a deputados do Parlamento Europeu – também nada se passou. As altas esferas, os centros de decisão, aplicaram ao assunto o triturador habitual e a questão continuou dormente, para não dizer morta. Debate para uma decisão colectiva? Nem um. Tudo rola nos gabinetes, nos corredores, nos restaurantes, nos telemóveis – isto é, nos terrenos favoráveis aos mecanismos de captura.
A troika colocou repetidamente nos memorandos e relatórios esta exigência: «Tomar medidas de modo a limitar os sobrecustos associados à produção de electricidade em regime ordinário, nomeadamente através da renegociação ou de revisão em baixa dos custos de manutenção do equilíbrio contratual (CMEC) paga a produtores do regime ordinário.» Quase nada se passou. O lobby que vive disto tem conseguido resistir à própria troika. Podemos chamar-lhe o LDT: o Lobby Disto Tudo.
Agora, face à ressonância de um caso judiciário, foi convocada a voz grossa dos “chineses”. Sabe-se que, embrulhado com o deslumbre alcunhado de “diplomacia económica”, a compra da EDP e da REN pelos chineses foi, nos corredores, um dos argumentos mais servis para manter o status quo. Compreendo que os chineses possam estar inquietos se lhes tivessem vendido gato por lebre. Mas, aí, teriam de pedir contas a quem, começando pelos órgãos da empresa, lhes tivesse garantido que o Direito Comunitário é para violar, lhes tivesse escondido a controvérsia já existente, lhes tivesse dito que um esquema lesivo da economia nacional poderia manter-se eternamente, ou lhes asseverasse que, em Portugal, o Direito e a política democrática estão submetidos ao poder do dinheiro. O que não podem continuar a ser é os portugueses, os consumidores de electricidade, a pagar os custos de mais um logro.
Tenho verificado que as maiorias, fossem as do PS, fossem de PSD e CDS, nunca resolveram o problema. Caíram nos mecanismos de captura e, muitas vezes, participam neles. Por isso, defendo a reforma do sistema eleitoral: nos CMEC, a informação técnica disponível já é tanta que bastariam 3 ou 4 deputados com pêlo na venta e independência pessoal e política para arrasar esta manipulação no prazo máximo de 2 a 3 anos. Se tivéssemos um sistema eleitoral misto à alemã, conjugando círculos uninominais e plurinominais, o eco daquele seminário de Maio de 2013 não teria desfalecido. Os deputados não seriam manietados ou condicionados. E, se quisessem agarrar essa luta, ninguém os poderia parar, com o que os partidos também ganhariam. Os partidos ganham com deputados assertivos, que enfrentam problemas, interpretam causas, animam questões; não ganham nada com os que vestem o bibe dos poderosos e dos endinheirados.
José Ribeiro e Castro
Advogado, ex-líder do CDS
JORNAL "I", 21.Junho.2017
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