Nero e o dói-dói
Continuo acabrunhado pela tragédia destes dias. Doem os 64 mortos. Esmurra-nos a ratoeira na Estrada Nacional 236-1. Na minha vida, é das cinco maiores catástrofes no país. Em fogos florestais, já houvera outros anos – até recentes – com vítimas mortais; mas nunca assim. Nas últimas décadas, pelo país fora, é este braseiro anual recorrente. Arderam cerca ou mais de 150 mil hectares em 1985, 1991, 1995, 1998, 2000, 2003, 2005, 2013. Assemelhando-se a este horror de Pedrógão Grande e Góis, tivemos o inferno dantesco de 2003, com 425 mil hectares queimados, seguido de 2005, com 340 mil. Já não sei se se diz Verão ou época de incêndios.
Extinto o fogo, é hora de rescaldo e de balanço. Não era antes. São de extremo mau gosto os ataques dirigidos ao Presidente da República, pela generosidade, disponibilidade e risco de que deu provas mais uma vez numa crise muito difícil. Como ele, na coragem de serviço público demonstrada como exemplo pessoal, só me lembro de Ramalho Eanes uma vez, a saltar para a berma da estrada a combater um fogo.
É falso que Marcelo Rebelo de Sousa fosse “dar beijinhos no dói-dói e dizer que não há nada a fazer”. É falso que agisse para “bloquear qualquer ambiente favorável ao nosso aperfeiçoamento”. É falso que tentasse “ilibar por antecipação”. É infelicidade, em crónicas, a comparação com Nero a tocar lira, “enquanto Roma ardia”, ou expressões de desdém sobre “a pessoa de Belém”.
O Presidente não impediu qualquer averiguação ou esclarecimento, nem poderia fazê-lo. Não é da sua natureza, nem estaria ao seu alcance. Diversamente do que os críticos lhe exigiam, no domingo, quando ainda se contavam mortos e faltavam mais três dias de combate, não cometeu a irresponsabilidade de, no pico da crise, semear criticismo, desconfiança, fraqueza. Não escolheu ficar distante no Palácio, na varanda de Nero. Não copiou a cobardia dos prudentes, nem a manha dos calculistas. Não foi farroncas, herói de café. Ousou a presença – e inevitavelmente a emoção – junto dos que sofriam os piores dias da sua vida. Não foi alheio, não foi distante. Não foi voyeur, nem diletante. Não foi intrusivo, nem sabichão. Deu encorajamento, deu ânimo, deu solidariedade. Levantou o moral. Contagiou coragem e determinação. Arriscou poder chamuscar-se. Foi, voltou e tornou a voltar. Agiu. Esteve ao lado. Foi próximo. Foram raros os deputados que fizeram o mesmo no terreno – honra lhes seja.
O espírito dos ataques ao Presidente vem de claques de futebol: “eu só quero ver o Costa a arder”. A presença de Marcelo, apontado pelos mesmos críticos precoces como “o paladino número 1 das coisas como elas estão”, surgiu em Pedrógão a perturbar a linha de fogo. O problema nisso nem é o Governo, pois, se fosse ao contrário, as claques de António Costa estariam a fazer exactamente a inversa: “eu só quero ver o Passos a arder”. O problema, problema nacional, é o ritual de zaragata alternada ser uma das principais razões políticas por que a nossa floresta arde todos os anos da mesma maneira, nesta liturgia de fogo que destrói território, queima riqueza, ameaça populações.
Para as gentes daqueles concelhos, fustigados por cinco dias de fogos violentos e atingidos brutalmente por uma catástrofe humana ímpar, só aconteceu uma coisa boa: a presença constante e solícita do Presidente da República ao seu lado. Na declaração ao País, que abriu o luto nacional, Marcelo Rebelo de Sousa mostrou conhecê-las bem: “… um sentimento de acrescida injustiça, porque a tragédia atingiu aqueles portugueses de quem menos se fala, de um país rural, isolado, com populações dispersas, mais idosas, mais difíceis de contactar, de proteger e de salvar.” Por mim, só consigo dizer uma palavra: Obrigado!
Passada a crise, vamos ao rescaldo e à resposta. O Presidente, como há um ano na Madeira, consolidou mais crédito para vigiar e exigir: não pode ser! Importa fazer o exame exaustivo e exigente de três planos: a estrutura, como as condições da floresta, as alterações climáticas, os sistemas de combate e de comunicação; a conjuntura, como a meteorologia; e o desempenho, em especial da protecção civil e das forças de segurança. Há que não confundir estrutura com conjuntura ou desempenho, nem esconder este atrás daquelas. Além do incêndio, há que explicar as mortes. Importa dispor, minuto a minuto, da cronologia das 24 horas a seguir à ignição do incêndio, esclarecendo quem fez o quê em função do que se soube e por que não se soube o que deveria saber-se. É preciso apurar tudo sobre o uso da EN 236-1 e de onde vieram aqueles que lá morreram.
É erro correr, agora, para a reforma florestal, como prioridade. Sim, é fundamental; mas não é urgente. Pode esperar pelo Natal, para ser bem feita e assimilada a sério. Não cabe fazer uma reforma de fundo como areia no fogo – ou nos olhos. Há outras coisas não só urgentes, mas inadiáveis. Ou já esquecemos que estamos só no começo do Verão? Já esquecemos as muito graves condições de seca? Já esquecemos que basta outra vaga de muito calor para poder acender novo braseiro? E não temos a noção de que, após a crise destes dias, a confiança na Protecção Civil está arrasada? Não vemos que inadiável é repor e reconstruir confiança e capacidade? O urgente são os três meses muito perigosos ainda pela frente.
A função das perguntas pertence principalmente à oposição, como é natural. E a função das respostas pertence ao Governo. Mas é fundamental que esse exercício parlamentar e mediático não degenere na habitual zaragata politiqueira, descurando a objectividade e o foco nos problemas. Enquanto não sairmos do jogo “foste tu/foste tu”, não vamos melhorar. De ciclo em ciclo, o teatro é o mesmo, só mudam os papéis: quem era Brutus passa a César, quem era César faz de Brutus.
Tropeço neste título: “Incompetência do Governo não pode encontrar justificação na meteorologia.” Não, não é de agora. É de Agosto de 2015: um ataque do Bloco de Esquerda contra o Governo PSD/CDS. O Bloco bem podia começar por pedir desculpa deste excesso de 2015, para ajudar a repor um clima de debate minimamente sério. À parte as claques, a população despreza estes confrontos partidários. Porque sabe que são feitos à sua custa. Tem aprendido, Verão atrás de Verão, que a floresta continua a arder enquanto os partidos se guerreiam.
Sabe-se tudo – já. E faz-se pouco – sempre. Nero nunca esteve em Belém. Nero tem estado em S. Bento este tempo todo. É lá que, no Verão, toca lira – tambores e trombones também. Nero tem estado na comunicação social que alimenta a política-espectáculo ou instrumentaliza a tragédia como dói-dói de reality show. Não esteja Nero em S. Bento e a comunicação social que o expulse de dentro de si também, para conseguirmos melhorar e progredir.
Extinto o fogo, é hora de rescaldo e de balanço. Não era antes. São de extremo mau gosto os ataques dirigidos ao Presidente da República, pela generosidade, disponibilidade e risco de que deu provas mais uma vez numa crise muito difícil. Como ele, na coragem de serviço público demonstrada como exemplo pessoal, só me lembro de Ramalho Eanes uma vez, a saltar para a berma da estrada a combater um fogo.
É falso que Marcelo Rebelo de Sousa fosse “dar beijinhos no dói-dói e dizer que não há nada a fazer”. É falso que agisse para “bloquear qualquer ambiente favorável ao nosso aperfeiçoamento”. É falso que tentasse “ilibar por antecipação”. É infelicidade, em crónicas, a comparação com Nero a tocar lira, “enquanto Roma ardia”, ou expressões de desdém sobre “a pessoa de Belém”.
O Presidente não impediu qualquer averiguação ou esclarecimento, nem poderia fazê-lo. Não é da sua natureza, nem estaria ao seu alcance. Diversamente do que os críticos lhe exigiam, no domingo, quando ainda se contavam mortos e faltavam mais três dias de combate, não cometeu a irresponsabilidade de, no pico da crise, semear criticismo, desconfiança, fraqueza. Não escolheu ficar distante no Palácio, na varanda de Nero. Não copiou a cobardia dos prudentes, nem a manha dos calculistas. Não foi farroncas, herói de café. Ousou a presença – e inevitavelmente a emoção – junto dos que sofriam os piores dias da sua vida. Não foi alheio, não foi distante. Não foi voyeur, nem diletante. Não foi intrusivo, nem sabichão. Deu encorajamento, deu ânimo, deu solidariedade. Levantou o moral. Contagiou coragem e determinação. Arriscou poder chamuscar-se. Foi, voltou e tornou a voltar. Agiu. Esteve ao lado. Foi próximo. Foram raros os deputados que fizeram o mesmo no terreno – honra lhes seja.
O espírito dos ataques ao Presidente vem de claques de futebol: “eu só quero ver o Costa a arder”. A presença de Marcelo, apontado pelos mesmos críticos precoces como “o paladino número 1 das coisas como elas estão”, surgiu em Pedrógão a perturbar a linha de fogo. O problema nisso nem é o Governo, pois, se fosse ao contrário, as claques de António Costa estariam a fazer exactamente a inversa: “eu só quero ver o Passos a arder”. O problema, problema nacional, é o ritual de zaragata alternada ser uma das principais razões políticas por que a nossa floresta arde todos os anos da mesma maneira, nesta liturgia de fogo que destrói território, queima riqueza, ameaça populações.
Para as gentes daqueles concelhos, fustigados por cinco dias de fogos violentos e atingidos brutalmente por uma catástrofe humana ímpar, só aconteceu uma coisa boa: a presença constante e solícita do Presidente da República ao seu lado. Na declaração ao País, que abriu o luto nacional, Marcelo Rebelo de Sousa mostrou conhecê-las bem: “… um sentimento de acrescida injustiça, porque a tragédia atingiu aqueles portugueses de quem menos se fala, de um país rural, isolado, com populações dispersas, mais idosas, mais difíceis de contactar, de proteger e de salvar.” Por mim, só consigo dizer uma palavra: Obrigado!
Passada a crise, vamos ao rescaldo e à resposta. O Presidente, como há um ano na Madeira, consolidou mais crédito para vigiar e exigir: não pode ser! Importa fazer o exame exaustivo e exigente de três planos: a estrutura, como as condições da floresta, as alterações climáticas, os sistemas de combate e de comunicação; a conjuntura, como a meteorologia; e o desempenho, em especial da protecção civil e das forças de segurança. Há que não confundir estrutura com conjuntura ou desempenho, nem esconder este atrás daquelas. Além do incêndio, há que explicar as mortes. Importa dispor, minuto a minuto, da cronologia das 24 horas a seguir à ignição do incêndio, esclarecendo quem fez o quê em função do que se soube e por que não se soube o que deveria saber-se. É preciso apurar tudo sobre o uso da EN 236-1 e de onde vieram aqueles que lá morreram.
É erro correr, agora, para a reforma florestal, como prioridade. Sim, é fundamental; mas não é urgente. Pode esperar pelo Natal, para ser bem feita e assimilada a sério. Não cabe fazer uma reforma de fundo como areia no fogo – ou nos olhos. Há outras coisas não só urgentes, mas inadiáveis. Ou já esquecemos que estamos só no começo do Verão? Já esquecemos as muito graves condições de seca? Já esquecemos que basta outra vaga de muito calor para poder acender novo braseiro? E não temos a noção de que, após a crise destes dias, a confiança na Protecção Civil está arrasada? Não vemos que inadiável é repor e reconstruir confiança e capacidade? O urgente são os três meses muito perigosos ainda pela frente.
A função das perguntas pertence principalmente à oposição, como é natural. E a função das respostas pertence ao Governo. Mas é fundamental que esse exercício parlamentar e mediático não degenere na habitual zaragata politiqueira, descurando a objectividade e o foco nos problemas. Enquanto não sairmos do jogo “foste tu/foste tu”, não vamos melhorar. De ciclo em ciclo, o teatro é o mesmo, só mudam os papéis: quem era Brutus passa a César, quem era César faz de Brutus.
Tropeço neste título: “Incompetência do Governo não pode encontrar justificação na meteorologia.” Não, não é de agora. É de Agosto de 2015: um ataque do Bloco de Esquerda contra o Governo PSD/CDS. O Bloco bem podia começar por pedir desculpa deste excesso de 2015, para ajudar a repor um clima de debate minimamente sério. À parte as claques, a população despreza estes confrontos partidários. Porque sabe que são feitos à sua custa. Tem aprendido, Verão atrás de Verão, que a floresta continua a arder enquanto os partidos se guerreiam.
Sabe-se tudo – já. E faz-se pouco – sempre. Nero nunca esteve em Belém. Nero tem estado em S. Bento este tempo todo. É lá que, no Verão, toca lira – tambores e trombones também. Nero tem estado na comunicação social que alimenta a política-espectáculo ou instrumentaliza a tragédia como dói-dói de reality show. Não esteja Nero em S. Bento e a comunicação social que o expulse de dentro de si também, para conseguirmos melhorar e progredir.
José Ribeiro e Castro
Advogado e antigo líder do CDS
Advogado e antigo líder do CDS
PÚBLICO, 26.Junho.2017
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