Os mortos de Pedrógão e a regionalização


Agora que anda tudo de lupa, lanterna e dedo apontado em busca das culpas da tragédia de Pedrógão Grande, convinha não esquecer uma das grandes causas da desgraça: a Regionalização que não está feita e para que, entretanto, nem um sucedâneo se achou. Não é preciso pôr óculos, nem acender as luzes. Vê-se à vista desarmada. Basta prestar atenção.

Sim, sobre a catástrofe acontecida, é imperioso examinar de modo exaustivo o desempenho e identificar as falhas na reacção e combate ao incêndio e na protecção e socorro das pessoas. Sim, há que avaliar com objectividade a conjuntura muito negativa: a longa seca acumulada e condições climatéricas de extremo calor e grande perigo, bem como fenómenos meteorológicos adversos e anormais que tenham ocorrido. Sim, importa verificar se os avisos meteo quotidianos do IPMA não geraram o efeito complacente da habitualidade: há tantos alertas vermelho que, às tantas, desvaloriza-se a gravidade, numa versão moderna da história de “Pedro e o lobo”. Não é que o lobo não venha, vem sempre. É que o lobo vem, mas não morde; ou o lobo vem e damos sempre conta dele – até que, um dia, o lobo vem, ataca, feroz, e já não conseguimos dar conta dele. Sim, é preciso examinar tudo isso. E responsabilizar.

Mas, sem disso fazer um cobertor que esconda falhas de desempenho e erros na avaliação e informação da conjuntura, é decisivo aprofundar a consciência das causas estruturais, que são da mais diversa ordem, libertando-nos do monopólio “eucaliptoclasta”. Sem cuidar dos factores estruturais e tratá-los a fundo, jamais nos libertaremos deste flagelo anual.

Todos os anos a nossa floresta arde aos milhares de hectares. As estatísticas desde 1980 mostram números demolidores: destruição de 120 mil hectares ou mais, em 1985, 1989, 1990, 1991, 1995, 1998, 2000, 2002, 2003, 2004, 2005, 2010, 2013 e 2016. Em nove destes catorze anos, arderam cerca ou mais de 150 mil hectares. E os anos de 2003 e 2005 foram de devastação catastrófica, com 426 mil e 339 mil hectares de área ardida, respectivamente – em 2003, vi-o em muitas zonas, nem o rio Tejo serviu de corta-fogo. Nos outros 23 anos da série, houve catorze anos com valores menos graves, entre 50 e 110 mil hectares queimados – neste ano de 2017, já estamos aí, ainda em Junho! E apenas houve nove anos com área ardida inferior a 50 mil hectares. Mas estes números mais baixos de incêndios florestais em nenhum momento corresponderam a que tivéssemos o problema enquadrado e, muito menos, resolvido. Resultaram apenas de, nesses anos, não termos seca acumulada e o Verão ter sido mais fresco. Todos sabemos isto, sobretudo as populações do interior florestado: se há Verão quente e houve seca, vem pavor pela certa.



Na minha juventude, saiu um filme sobre a libertação de Paris, em 1944, intitulado: «Paris brûle-t-il?» Podemos pôr a mesma pergunta sobre Portugal inteiro. Não tem nada de epopeia libertadora e connosco a pergunta é literal: Portugal está a arder?

A resposta é afirmativa: sim, está a arder. É a ciência certa que acumulámos nas últimas décadas, uns milhares de hectares a cada ano: Portugal está a arder. E, independentemente do exaustivo exame urgente sobre a última aflição, sejamos claros. Todos temos o credo na boca com o resto do Verão ainda por diante. E todos sabemos que Portugal vai voltar a arder em 2018, vai voltar a arder em 2019, vai voltar a arder em 2020. Esse é o verdadeiro “Portugal 2020”: vai voltar a arder!

Tão certo quanto pagar impostos e tão certo quanto ir morrer, tenho esta verdade diante de mim: Portugal vai arder de novo. Se não vier uma chuvinha, a seca não acabar e regredir e o Verão não for fresco, o fogo vai estar aí outra vez a inundar a paisagem e as televisões, a aterrorizar populações.

O problema é não confinarmos o perigo, não circunscrevermos os efeitos, não baixarmos as incidências, não diminuirmos o perímetro. O problema é não garantirmos segurança num ambiente que é de risco natural. O problema é a desordem, o desordenamento, a incúria, a pobreza, a desprotecção que se arrastam, apesar de todos os relatórios, apesar de todos os planos, apesar de todos os investimentos. Quando, em anos anteriores, as mortes – o mais terrível registo do nosso fracasso enquanto Estado – nunca tinham ido acima de 16 e, agora, numa só vez, galgaram para 64 vítimas, sendo 63 mortes de civis, não podemos considerar que estamos melhor. Estamos pior.

Num país que, desgraçadamente, arde todos os anos como tem ardido, algum dia iria chegar uma muito terrível catástrofe. Foi agora. E, não nos enganemos, continuamos inteiramente à mercê doutra.



Tenho-o lido, agora, abundantemente por aí, nas múltiplas análises destes dias de horror, de frustração, de indignação, de choque e de mágoa. “Já está tudo dito”. “Já está tudo escrito”. É verdade: já está tudo diagnosticado. Já está tudo inventariado e proposto. “Por que não se faz?” – esta é a pergunta-chave. Passam os governos, mudam os ciclos políticos, mudam os governantes e outros responsáveis – e tudo continua. Por que não se faz?

A resposta é também esta: por causa da sabotagem da Regionalização – porque de uma sabotagem se tem tratado. Não é só não ter sido feita; é nem sequer lhe ter encontrado e agilizado uma alternativa funcional.

Aquilo que fizemos nos últimos 40 anos – e tenho qualificado como o maior fracasso depois do 25 de Abril – é a destruição do patamar intermédio da nossa Administração Pública. Tínhamos os distritos; e, anteriormente, as províncias ou, antes ainda, as comarcas. Hoje, não temos nada. Ora, sem esse patamar, não temos plataforma para definir, afinar e aplicar políticas territoriais.

Os municípios estão demasiado perto, o Estado está demasiado longe. Os municípios não têm escala, o Estado sofre de gigantismo e centralismo. É isso que justifica e explica a necessidade imperiosa destes patamares administrativos intermédios, entre o plano local e o central. É conhecimento acumulado na Ciência da Administração e no Direito Administrativo. Sempre o tivemos, tanto em patamar autárquico descentralizado, como em circunscrição coerente para gestão desconcentrada das unidades periféricas do Estado. Na tradição portuguesa, são três níveis: local/municipal, provincial/distrital, estadual/central. Em França, que é maior, são quatro níveis: Comuna, Departamento, Região, Estado. É assim, similarmente, em todos os países que conheço, com dimensão média ou superior.

Nos últimos 40 anos, com o impasse da Regionalização, destruímos, por politiquices e incompetência, essa malha administrativa e tornámos mais vulnerável o território. Semeámos o deserto administrativo e fomentámos a desertificação. Procurámos atamancar o disparate com remendos variados e oscilantes, ora de uma maneira, ora de outra, agravando o caos e a descontinuidade. E, hoje, continuamos encravados, sem imaginação, nem vontade política, na paralisia impotente que resultou do referendo de 1998. Estamos a ver.

Estamos a ver a agência da CGD em Almeida a ser extinta. Estamos a ver os tribunais que fecharam. A ver postos de correio encerrados. A ver as escolas que acabaram. A ver maternidades e serviços de saúde a fechar portas. A ver o país a desertificar-se. A ver um território cada vez mais frágil. A ver a floresta e o campo a arder todos os anos. A ver o pavor de Pedrógão Grande, Castanheira de Pera, Figueiró dos Vinhos, Góis, Pampilhosa, eu sei lá. Estamos a ver. Os municípios por baixo, o Estado por cima, estamos a ver. Estamos todos sempre a ver.

Seria interessante, por exemplo, examinar na tragédia da “estrada da morte”, a tristemente famosa EN 236-1, como estariam cuidadas as margens dessa estrada com o aparelho distrital da antiga Junta Autónoma das Estradas e como aconteceu agora no quadro da teia complexa e centralizada de concessionárias e subconcessionárias. Estamos a ver.

Uma principal razão por que falham, ano após ano, as medidas identificadas e as políticas definidas é porque desmantelámos, nestas décadas, o patamar administrativo que é indispensável para lhes dar coerência, adaptação, sequência, execução, vigilância. Não foi só não implantarmos as Regiões, trancadas há 20 anos por um referendo desastroso. Foi nada termos feito em seu lugar, nem sequer estruturar a divisão distrital, como é a recomendação constitucional transitória. Pelo contrário, deu-se uma última machadada no pouco que havia, ao matar os governos civis, que, ao invés, deveriam ter sido organizados e fortalecidos.

Tudo o que é necessário fazer quanto à floresta e aos territórios onde a floresta está, bem como às populações que vivem e trabalham nesses territórios, é expressão de uma política de território. Ora, como podemos desenvolver, afinar, aplicar políticas de território ou políticas de forte matriz territorial, quando arrasámos a malha territorial da nossa Administração Pública?

Os mortos de Pedrógão Grande e Castanheira de Pera são o grito mais lancinante contra esse enorme fracasso administrativo estrutural.



Voltarei a este tema, porque é preciso resolvê-lo, de vez e rapidamente, para não continuarmos a assistir à desertificação e à destruição do território de Portugal e à morte ou abandono das populações. Regiões, distritos, outra denominação, temos de os implantar e organizar. Não podemos continuar com territórios sem dono, problemas e necessidades sem Administração, questões sem responsável, políticas sem agente.

Nestes dias de sofrimento e de desolação nessas terras do Pinhal Interior, ouviram-se e leram-se muitos desabafos de pessoas a quem morreram familiares, amigos ou conhecidos, a que arderam casas, viaturas ou alfaias, ou que viram a destruição de suas empresas e equipamentos, comentando que, se calhar, vão ter de ir-se embora. Tentarão ficar, mas não é fácil. E compreende-se bem que alguns só fiquem, se não tiverem para onde ir.

Essa sangria tem anos. Olhando só aos concelhos de Leiria mais atingidos (Figueiró dos Vinhos, Pedrógão Grande e Castanheira de Pera), podemos verificar que perderam, cada um deles, entre 30% a 40% da sua população desde 1981 até ao último censo de 2011. E, desde 2011 até hoje, a PORDATA estima que cada um desses municípios tenha perdido, ainda, mais 400 pessoas cada um, ou seja, um pouco mais de 10% do que eram em 2011, quanto a dois deles, e um pouco menos de 10%, quanto ao maior (Figueiró dos Vinhos).

Essa quebra populacional tem-se devido ou a gente que morreu e que não foi reposta, dada a crescente quebra geral de natalidade; ou a gente que emigrou para as cidades ou para o estrangeiro. Porém, os próximos que saírem agora, fustigados pela tremenda tragédia que viveram e marcados pelo trauma que os atingiu, já não serão emigrantes. Serão refugiados.

É bom que tomemos consciência disto: estes 64 mortos e 254 feridos mostram-nos que esta floresta é a nossa pequena Síria.

É esse o país que estamos a fazer – ou melhor, o país que estamos a desfazer. Ou estamos preparados para aparelhar rapidamente uma Administração territorial capaz de atender às necessidades, de aplicar e afinar as políticas definidas, de olhar pelo território incluindo toda a extensão do mundo rural, de servir de modo integrado as populações e de vigiar pelas condições das regiões onde vivem e trabalham, ou podemos preparar-nos apenas para ter água para regar o fogo, lágrimas para chorar e botas para fugir. Todos os anos.


José Ribeiro e Castro
Advogado, ex-líder do CDS

OBSERVADOR, 27.Junho.2017

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