A Ponte do Rio Kwanza


Quando conheci a Barra do Cuanza, não havia ponte sobre o vertebral rio angolano. De Luanda, a travessia para a Quiçama, a caminho de Porto Amboim, Novo Redondo – o Sumbe – e mais para sul, fazia-se por uma jangada, nada sofisticada. Às vezes, era travessia arriscada; se a torrente do rio era forte, não podia passar-se. Frequentemente, a espera demorava.

A ponte, projecto do mítico Prof. Edgar Cardoso, foi feita ainda no tempo português, mas acabada já em 1975, numa época muito dura, alvores da guerra civil. Teve falhas de manutenção, nos prolongados anos de conflito que se seguiram. Foi objecto de trabalhos de reabilitação e, recentemente, de importantes melhoramentos. Grande ponte! Bela obra.

Angola precisava de que este 23 de Agosto fosse uma ponte assim: uma ponte entre o passado e o futuro, uma ponte que unisse as duas margens, uma ponte que a todos desse conforto e segurança, uma ponte dos problemas conhecidos para todos os sonhos e projectos, uma ponte que servisse a estrada.

Infelizmente, não estamos, nesta altura, em condições de o assegurar. Não sabemos se ainda se está na fase da jangada – ou, quando muito, da ponte em estado incerto, ansiosa por obras de reabilitação e importantes melhoramentos.



Li declarações do deputado do PCP, António Filipe, testemunhando da transparência do que observou, isto é, até ao final da contagem dos votos nas assembleias que visitou. Outros relataram o mesmo. Não o ponho em dúvida. Até porque, à distância, nós todos o vimos pela comunicação social.

É um facto que merece ser saudado. O povo angolano deu uma lição extraordinária: afluiu massivamente às urnas e tudo decorreu de forma ordeira, com grande civismo e evidente convivialidade entre candidaturas. Um ou outro incidente localizado não chega para manchar o quadro. Este não teve nada a ver com o enorme caos de 2008, nem tão-pouco com o ambiente de 2012. Também a sociedade angolana deu cartas: o clima esteve descrispado e a campanha decorreu bem, com excepção da cobertura muito desigual da comunicação social, como observadores independentes assinalaram. O povo e a sociedade civil de Angola merecem nota 20. O mesmo para o pluralismo partidário.

O problema foi depois, a seguir à contagem dos votos nas assembleias. Aqui, já não houve observação. O juízo sobre a transparência do processo mantém-se, porém, ajustado. Só que, a partir dessa fronteira, viu-se de modo transparente que o processo já não foi transparente. O poder merece nota 8, ou menos.

Cumprida a eleição e encerrada a contagem, mesa a mesa, a questão sobra sempre para a fase da calculadora: o escrutínio e o apuramento, parcial e global. Se tivesse havido missão da União Europeia, teríamos observação fidedigna e juízo imparcial, pois essas missões nunca descuram essa fase crucial.

O que se passou foi ao modo de resultados administrados. A desconfiança ressalta de críticas e reclamações pertinentes, feitas por vários partidos, com argumentos que não são convincentemente respondidos. Lendo a lei eleitoral angolana e tendo assistido publicamente aos factos, custa entender como podem não merecer justo provimento as reclamações e os recursos mais relevantes apresentados.

O MPLA foi o primeiro a anunciar a vitória com maioria qualificada. E, só pouco depois, a Comissão Nacional Eleitoral se apresentou a anunciar os primeiros resultados nacionais provisórios, apoiando essa proclamada liderança, com cerca de, como foi dito, dois terços da contagem. Este anúncio teve três problemas: a forma inopinada como foi feito, na esteira de um partido; ter resultado de operações a que ninguém assistiu, como vários delegados logo apontaram; e sofrer de um erro sintomático – somando as percentagens que a CNE atribuiu aos partidos, o resultado soma 100,37%. Isto só é possível com a mão, porque a calculadora nunca se engana.

O problema não está em ter havido um erro. O problema é não se conseguir esclarecê-lo. O problema é sobretudo não ser possível contrastar com os resultados municipais, provinciais ou nacionais as actas-síntese recebidas, assembleia a assembleia, pelos delegados das listas, naquela transparência que tanto impressionou observadores externos do início do processo. Não podendo ser contrastadas, as actas-síntese passam a instrumentos inúteis – e a transparência esfuma-se por inteiro.

Multiplicam-se, em Angola, vozes da sociedade a apelar a que toda a gente «aceite o que o povo exprimiu de forma livre nas urnas», ou frases similares. São apelos que encerram uma saborosa ambiguidade: tanto podem referir-se ao que o povo realmente votou, como ao que foi proclamado. Fez, de facto, muita falta uma missão de observação a sério, como a União Europeia garantiria. O civismo e a esperança mostrados pelos angolanos a 23 de Agosto bem o mereciam.



Compreende-se que, na sua trajectória, Paulo Portas critique: «uma parte das instituições e sectores de opinião [em Portugal] comporta-se como se o império ainda existisse, analisa África sem sequer a conhecer e actua com a arrogância (e o preconceito) dos ‘educadores do povo’». Por um lado, é uma reiterada distanciação relativamente à fase em que dirigiu “O Independente”. E, por outro, serve de alavanca para introduzir outros pontos de vista e interesses. Mas não é um diagnóstico certo.

Enraizadas que estão relações e genuínos sentimentos de parceria e amizade, não há, desde há largos anos, quaisquer “educadores do povo”, com referência a Angola ou a qualquer país da CPLP. E justamente porque «não compete aos portugueses determinar o futuro dos angolanos», é que nos cabe ouvir, escutar, todos os angolanos e não apenas aqueles que detêm o poder – e o dinheiro. São os angolanos, não nós, que estão a falar. Nós podemos ouvir; ou fazer-nos de surdos.

Há muitos anos que sustento, quanto a Angola, a linha que designei “todos com todos”: isto é, sem prejuízo de relações de proximidade, os dirigentes políticos portugueses devem relacionar-se abertamente com todos os actores angolanos (MPLA, UNITA, CASA-CE, PRS, FNLA, APN e outros), sem preconceitos, por forma a contrariar o cavar de trincheiras. Seria interessante saber se os deputados portugueses que lá estiveram reuniram demoradamente com todos os partidos concorrentes e colheram, de viva voz, os seus relatos e eventuais preocupações. Essa transparência seria muito útil.

O respeito por Angola e suas instituições é fundamental, nomeadamente por quem se coloque numa perspectiva de Estado. O mesmo se diga quanto à estabilidade e tranquilidade pública, sobretudo considerando este país-irmão, que sofreu horrores numa guerra fratricida. Mas isso não significa elogiar o que não está bem. Podemos calar ou ser moderados, mas não devemos apresentar como brilhante o que o não é.

Bajular não é uma ajuda aos angolanos, nem a Angola. Pelo contrário. É unicamente um serviço ao dinheiro, esse único deus universal – e que se troca no cambista. Indo longe de mais, é chegar aos patamares do “culambismo”, imortalizado pelo outro fundador d’ “O Independente”, Miguel Esteves Cardoso.

Lamento que ministros dos Negócios Estrangeiros nossos, todos à direita por sinal, tenham escolhido ir por aí. Lembro-me de quatro. Não é bom para Portugal. Eu, se fosse das cúpulas angolanas, fartar-me-ia de rir. Distância, objectividade e independência são sempre um bom capital. No PS, apesar do pragmatismo, atitude de Estado e realismo, o quadro é, apesar de tudo, diferente. Além de que o PS mantém um conjunto de vozes livres e independentes que não alienam o dever de ouvir todos os angolanos. Angola precisa de um diálogo assim. As duas sociedades é para aí que caminham naturalmente, sobretudo fora da política.



Independentemente das peripécias do processo, é certo que João Lourenço será o próximo Presidente de Angola e Bornito de Sousa, Vice-presidente. Desejo um bom mandato. E, além de muitos que já estavam na Assembleia Nacional, tenho curiosidade e expectativa no desempenho de alguns novos deputados eleitos por diferentes listas: Justino Pinto de Andrade, Carlos Feijó, Cesinanda Xavier, Raul Tati, Vicente Pinto de Andrade. Bom trabalho!

João Lourenço afirmou querer ser o presidente do “milagre económico”. Oxalá! Isso passa, estrategicamente, pela “diversificação da economia”, uma expressão que se tornou quase um chavão. Quando voltei a Angola, em Junho de 2002, a seguir à paz, ouvi esse desiderato pela primeira vez ao presidente da Associação Industrial de Angola, Eng.º José Severino. É um propósito nacional que é também um diagnóstico. Concordei inteiramente com ele e sei como Angola tem condições e recursos abundantes para isso. Continuei a ouvir, ano após ano, essa ideia: diversificação da economia, diversificação da economia. A crise do petróleo foi recebida até como propícia: agora é que se iria fazer a diversificação da economia.

Mas, quinze anos depois da conversa com José Severino, o quadro mantém-se na mesma. Cabe perguntar e responder porquê. Creio que duas respostas estão em dois DD: democratização e descentralização. É difícil haver diversificação da economia, se não houver, à partida, diversificação política, diversificação social, diversificação administrativa. Se Angola continuar com um poder concentrado e centralizado, é duvidoso que consiga diversificar a economia.

Seria importante que se fizessem, finalmente, as eleições locais, matéria para que o novo Vice-Presidente Bornito de Sousa está particularmente apetrechado. E teria sido importante um 23 de Agosto mais brilhante, gerador de confiança popular e genuíno entusiasmo da cidadania mais activa e empreendedora.

Assim, olhando ao Kwanza, não sabemos se se continua ainda à espera da jangada ou se a ponte está lá e vão chegar suficientes obras de reabilitação e de melhoramento. A manterem-se actuais os dados do censo oficial de 2014, 47% dos angolanos têm menos de 15 anos, isto é, tiveram a felicidade de não conhecerem a guerra. E dois terços (17 milhões de indivíduos) têm menos de 25 anos – cresceram no quadro das aspirações da democracia multipartidária; e os mais velhos tinham 10 anos quando se fez a paz.

Dizendo de outro modo: a torrente do futuro de Angola está a chegar muito depressa.





José Ribeiro e Castro
Advogado, ex-líder do CDS

OBSERVADOR, 2.Setembro.2017

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