Agenda para a IV República


Depois do meu último artigo nesta série, perguntaram-me qual era «a agenda da IV República», ideia final do texto. É fácil. Basta olhar às questões fundamentais de que todos falam e ninguém trata. Três pilares – ou três alavancas, conforme o olhar – que se vão adiando sistematicamente. Somos um país encalhado.

A agenda da IV República são três reformas capitais: reforma eleitoral, reforma territorial, reforma do Estado. Quanto a falar delas, não são ideias novas. Ideia nova é querer fazê-las. E é ideia nova articulá-las e resolver nós estruturais do país.

Reforma eleitoral é devolver a democracia à cidadania. O propósito é reconstruir a confiança dos cidadãos, restaurar credibilidade no sistema político, dotar de responsabilidade o sistema e seus actores. Como se faz? Fácil: pôr a escolha dos deputados nas mãos dos eleitores, em vez de no arbítrio dos bastidores. As direcções dos partidos continuarão a escolher, mas indicarão quem os eleitores dêem sinal de preferir e não apenas favoritos e serventuários. 

Temos um exemplo magnífico na Alemanha, cujas eleições foram no domingo passado. Eis um sistema – o melhor sistema da Europa – que é rigorosamente de representação proporcional, mas em que metade dos deputados são eleitos individualmente em círculos uninominais. Esta representação proporcional personalizada tem peculiaridades que não cabe pormenorizar. Essencialmente, cada alemão tem um voto duplo, em que pode escolher o seu deputado e o seu partido. O Parlamento é constituído de acordo com a proporção obtida na votação das listas partidárias – exactamente como cá. Mas metade dos deputados é eleita directamente pela escolha individual dos eleitores. Os candidatos nas listas são eleitos para completar a quota proporcional de lugares de cada partido além dos uninominais obtidos. 

Este simples factor de escolha muda toda o espírito de indicação dos candidatos. E isso influencia também a formação das listas. A arbitrariedade e o capricho deixam de reinar. Há democracia, porque há cidadania também. 

Ora, o facto de todos os deputados terem poder próprio – porque têm voz, rosto, prestígio, capital – reforça a colegialidade e devolve institucionalidade não só ao funcionamento político do Estado, mas aos partidos também. O sistema salva os partidos, porque lhes devolve razão de ser e funcionamento digno. Assim como nas eleições o cidadão volta a ser rei, nos partidos voltam as bases a ser senhor. A participação com decisão informada pode voltar a ser regra. 

O avanço para este sistema é possível desde a revisão constitucional de 1997. Além disso, para maior garantia dos pequenos e médios partidos, defendo um círculo nacional com função de compensação. O sistema já realiza esse equilíbrio, mas o círculo nacional concluiria essa tarefa de justiça representativa. Este círculo é possível desde a revisão constitucional de 1989. Dizendo de outra forma: a III República anda encalhada há 20 e há 28 anos, respectivamente.

Reforma territorial é dotar o país da administração territorial que nos faz falta. Tradicionalmente tivemos sempre um patamar intermédio entre o local e o central: era o distrito; antes, a província; e, antes, a comarca. Agora, não temos nada. Anunciaram as regiões, mas nunca saíram do papel – foram directamente para o cesto dos papéis.

Não há políticas territorialmente ajustadas, se não houver administração territorial. Este patamar intermédio, que destruímos, é simultaneamente o quadro para as unidades desconcentradas da Administração Central e o espaço descentralizado de instâncias autárquicas. O facto de o termos destruído, gerando um caos administrativo que contamina o próprio desenvolvimento das Áreas Metropolitanas, fragilizou boa parte do território do país. Em minha opinião – digo-o há muito – o imbróglio em que a “regionalização” degenerou e a desordem criada são grandes responsáveis pela desertificação, o agravamento de desigualdades, a perda de oportunidades. E o fracasso continuado das políticas de forte componente territorial resulta deste vazio. O exemplo mais recente é de escândalo: a arrastada incapacidade face à praga dos incêndios.

O Estado está demasiado longe, o município não tem escala. Falta o patamar intermédio que esteja, ao mesmo tempo, suficientemente perto, suficientemente distante. Aqui, uma vez que a Constituição não foi cumprida, nem revista, a III República está encalhada há 41 anos.

Enfim, a coqueluche: a mais badalada e a mais frustrada. Somos um país falido, vivendo à beira do abismo. Estamos pendurados de ratings, com endividamento muito elevado. Batalhamos com o défice, não pelos tratados, mas por nossa saúde. Reforma do Estado é, para simplificar, conceber um modelo de Estado mais barato, ou dizendo melhor, ajustado à capacidade da economia e aos recursos financeiros e respondendo às responsabilidades sociais e de soberania. Só isso assegurará o sucesso duradouro do país e a sustentabilidade das políticas públicas. 

É a reflexão colectiva mais importante que temos de fazer, pondo tudo em cima da mesa: aparelhos de segurança e defesa, justiça e diplomacia, administração local e territorial, sistemas sociais, administração central e entes autónomos, dimensão do pessoal político, desde autarquias e empresas municipais até gabinetes e assessorias, quadro e sistema de receitas. Sem essa reforma estruturada, continuaremos a resmungar: ora pelos cortes, ora por cativações. A qualquer desgraça que ocorra, gemeremos “falta de dinheiro”: na catástrofe dos fogos, no assalto de Tancos, num telhado em ruína… E, num outro dia qualquer, seja por novo desvario, seja por o BCE mudar de política, cairemos de novo ou no precipício, ou no colo doutra troika.

Extraordinário é o Parlamento ter aprovado, em 18 de Janeiro de 2013, a Resolução da Assembleia da República n.º 4-A/2013, que constituiu a comissão eventual para a reforma do Estado. A oposição recusou integrá-la e boicotou; e a maioria renunciou activá-la, quando em 2014 a troika partiu. A questão crucial ficou trancada na gaveta, mais uma vez adiada.

Aqui, costumo medir o calendário pelo “discurso da tanga” em Abril de 2002 – desde aí, ninguém pode dizer que ignora o problema. A III República encalhou-nos há 15 anos, pelo menos. 

Reforma eleitoral, reforma territorial, reforma do Estado – eis a agenda para a IV República. As três reformas são fundamentais e coerentes entre si: democracia de cidadania; país coeso para todos; Estado forte, sustentado e sustentável. Todas se interligam. Por exemplo, a reforma do Estado, que é a mais substantiva, dificilmente se fará sem representação parlamentar genuína, com real presença da cidadania, isto é, sem a reforma política da Democracia de Qualidade.

Queremos continuar encalhados?


José Ribeiro e Castro
Advogado, ex-líder do CDS

JORNAL "I", 27.Setembro.2017



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