Homenagem a Regina Pinto Ribeiro da Cunha Amaral
Falar da Regina – Regina Augusta Maria Pinto Ribeiro da Cunha Amaral – é ao mesmo tempo fácil e difícil. Fácil, porque era uma mulher simples, de bom trato, tranquila, esclarecida, com uma vida não complicada, uma mulher bem organizada, desembaraçada, que nunca pesou a ninguém e muitos ajudou. Difícil, porque era melhor não estarmos a falar dela nestas circunstâncias e podermos fruir ainda da sua companhia e com saúde. Mas a nossa vida tem, para todos, dia e hora marcados.
Viveu, de um modo geral, uma vida boa, com coragem para vencer dificuldades de saúde repetidas, que teve de enfrentar nos últimos anos; e foi também para nós uma companhia fiel e amiga, uma fonte de saber, uma referência. Damos graças a Deus por isso: pelo que lhe deu a ela e, por ela, nos deu a nós.
A Regina era uma prima afastada. Se fiz bem as contas, éramos parentes em 5º grau, assim como da outra prima Almeida Ribeiro da minha geração, a Teresa, aqui presente. A avó da Regina era irmã do meu bisavô e do da Teresa também. Era prima da minha mãe – primas segundas, parentes em 4º grau, se fiz bem as contas: tinham o mesmo bisavô, nosso trisavô, fundador da família. Lá em casa, era a Prima Regina. Assim foi sempre, incluindo para nossos filhos: “a Prima Regina”, uma instituição.
A vida tem destas coisas: às vezes, afasta os próximos e aproxima os distantes. Não tem a ver com zangas – que, felizmente, não temos –, mas com as circunstâncias da vida e sua dinâmica natural. A Regina, embora fosse de grau distante, era como se fosse prima direita da minha mãe. Não consigo lembrar um só ano sem a presença da Regina, e várias vezes: fazia parte da mobília. Éramos visita frequente: ora nós dela, ora ela de nós. Passou muitos Natais connosco, senão todos. É também o meu aniversário – faço anos a 24 de Dezembro. E a Regina, portanto, foi uma presença constante do nosso presépio. Era uma prima muito querida nas nossas casas.
Mulher solteira, tinha muito tempo para os outros, para a sua vida profissional como professora exemplar e gostava imenso de viajar. Viajou muito, creio que por todos os continentes. Gostava de conhecer, de ver, de visitar, de pensar – e, depois, contar. Todos os membros da delegação familiar aqui presente temos memórias inapagáveis de experiências de viagem com a Regina. Com os meus pais e comigo e meu irmão, recordo sobretudo uma viagem de navio à Madeira e ilhas Canárias, em 1963, tinha eu 9 anos; e uma outra, mais tarde, em 1973, viagens por terras interiores do Leste de Angola, pela Lunda, o Moxico e o Cuando-Cubango, além de Luanda. Outros têm memórias de Nova Iorque, da Europa, de outras partes.
Na primeira viagem que referi, eu era uma criança irrequieta. Os meus pais tinham saído e eu tinha ficado ao cuidado da Regina, numa pequena vila do Hotel onde estávamos alojados no Funchal, o velho Savoy. Devo ter sido impertinente, na varanda onde estávamos, ela vigilante e à conversa, eu na brincadeira. E a Regina, às tantas, disse-me assim: «Ó pá, não sejas chato!» Eu obedeci. Mas a Regina ficou desconfortável com esse desabafo e pediu-me que não contasse aos meus pais. Era 1963 – não eram expressões grosseiras, mas não eram de salão. Eu não contei nada. Não porque a Regina me tivesse pedido, mas porque não fazia sentido contar: nada havia para contar. Até este momento, ficou o nosso segredo. Quantas vezes a Regina, nos nossos encontros, até recentemente, me recordava, a rir-se: «Lembras-te daquela vez em que eu te disse “Ó pá, não sejas chato”?» Eu lembrava-me. E ríamos os dois.
A Regina era uma grande conversadora: adorava conversar. E eu tenho pena de o não ser. Gosto de falar das coisas que sei, daquilo em que estou envolvido, de debater ideias ou propósitos – mas não sou um conversador, um cultivador da conversa pela conversa. Não tenho esse jeito e gosto. E tenho pena de ter falhado à Regina nessa parceria. Ela queixava-se disso.
Já o meu pai era um grande conversador; e gostava muito de conversar com a Regina e a Regina com ele. Houve muita conversa entre eles, em Campo de Ourique, em Lisboa, para onde se mudou nos anos 1960 da casa onde vivera com a mãe, a Prima Luísa, e onde morreu em 6 de Julho passado.
Professora de História e Filosofia, a Regina era uma intelectual. E o meu pai gostava de entrar com ela, dizendo-a “católica progressista”. O meu pai era conservador. Tiveram grandes debates de que só guardo o barulho de fundo na minha infância e jovem adolescência. Nunca houve discussões. Foram sempre muito amigos e com mútua admiração.
A Regina cultivava Teilhard de Chardin, cujos livros coleccionou e leu, como muitos outros. A Regina era um espírito de estudo, de leitura, de estante, de biblioteca. Achei graça, porque, no meu liceu, tive um memorável e inspirado professor Floriano de Carvalho – que era também de Filosofia, mas não foi meu –, que, nas nossas aulas de História, nos metia Teilhard de Chardin a toda a hora, a torto e a direito. Na minha cabeça de 12, 13, 14 anos, o Floriano de Carvalho era a Regina com calças. Ela era uma seguidora do personalismo cristão. Muitos anos depois do Floriano, já eu na actividade política, trocámos livros de Emmanuel Mounier, um pensador francês, marcante nos anos 1930 e 1940, fundador da revista “L’Ésprit”, um ícone do pensamento personalista e da sua intervenção filosófica, doutrinária e política.
A Regina era cristã sem qualquer espécie de dúvida ou de reserva, exigente na verdade da fé, contrária às exuberâncias ditas religiosas susceptíveis de manipulação, com capacidade de compreensão e de misericórdia, conhecedora do papel da tradição, do essencial que fica e do acessório que muda, muito clara na afirmação dos valores e dos sinais e evidências da verdade, tolerante com as pessoas, inconformada com o lugar das mulheres na Igreja. Não tinha nada de beata, nem seringava as pessoas com a sua fé. Mas, por vezes, se se proporcionava, gostava de conversar e de reflectir sobre o Cristianismo e os desafios do Tempo, a História: a História que foi e a História que poderá ser. Acreditava em Deus, tinha fé plena em Deus. Acreditava em Jesus Cristo e era discípula escrupulosa do mandato que Cristo deixou à Humanidade, sobretudo àqueles que se dizem Seus.
Atenta, crítica e livre, não era uma revolucionária; era uma reformista que queria andar mais depressa. Não era sequer impaciente; era uma mulher de esperança exigente. Talvez fosse a tal católica progressista com que o meu pai gozava, de forma amiga. Mas creio que não. A Regina era realmente, no sentido da cultura britânica (não o dos preconceitos atávicos), uma conservadora avançada – uma conservadora avançada. Gostou do Papa Francisco; imagino que lhe percebeu o Theillard de Chardin que a inspirara – ambos jesuítas, Theillard e Francisco.
Os últimos anos da sua vida – estamos a falar dos últimos trinta anos – foram duros e difíceis. Enfrentou a doença muitas vezes. Doença má, doença maligna. Nos últimos tempos, dizia num misto de surpresa e de orgulho: «Sabes? Já venci oito cancros.» E era verdade.
Houve uma fase moralmente mais difícil, em que foi visivelmente abaixo e se arrastou, mais de um ano, triste e deprimida. Não era caso para menos. Também isso venceu. E os outros cancros que contra-atacaram a seguir, já não abalaram o seu espírito. Recuperou a serenidade de sempre, o gosto de estar com os outros, o prazer de conversar. Nos últimos anos, foi perdendo também a visão. Nunca cegou, mas tinha crescente dificuldade em ler, mesmo com a lupa que comprara. Mulher de estante e de biblioteca, como referi, isso era um grande castigo. Não poder ler tanto quanto desejava, afastava-a da vida e do que era essencial para si. Mas também isso não a deitou abaixo.
Por que conto isto? Porque, fosse o que fosse que o seu coração tivesse sentido quando a adversidade, a dor e o perigo bateram de modo mais surpreendente e mais forte, a Regina venceu a depressão, certamente também com ajuda médica, mas animicamente com uma virtude cristã: aceitação. Foi ter aceite a estrada final que permitiu que essa estrada fosse ainda longa e lhe devolveu a alegria no caminho. Aceitação não é resignação, nem conformismo. Aceitação não é o sentimento do vencido. Aceitação é o sentimento e o alimento do vencedor – neste caso, da vencedora.
Uma vez, nas nossas conversas – ela era de Filosofia, já referi –, disse-me assim: «Zé, tenho estado a pensar e vou descobrindo que isto da psicologia tem muito a ver com a espiritualidade, não achas?» Acho. E a nossa Regina foi exemplo disso.
A Regina foi professora, como referi. E gostava muito da sua profissão. Gostou do seu curso, que fez em Coimbra. Gostou das provas profissionais que teve de prestar, que evocava com orgulho. Gostava de dar aulas, que preparava com brio. Gostava dos seus alunos, de que falava com apreço e saudade, destacando com admiração os mais famosos, como (citando um, aqui, por todos) foi o caso do Prof. João Lobo Antunes, que muitas vezes referiu: «Era um rapaz aplicado. Bom estudante.»
Professora profissionalmente muito exigente, sabia o seu papel e o que a escola e a sociedade pediam dela. Cumpridora e zelosa, era muito crítica de facilidades docentes que viu, a certa altura da carreira, serem concedidas pelo sistema. Considerava-as responsáveis por uma degradação da qualidade do ensino que, nesse tempo, detectou e sempre apontava. Era aí que lembrava as rigorosas provas que tivera de prestar para progressão na carreira docente, como o chamado, salvo erro, “exame de Estado”. Não tinha rivalidades profissionais: a sua preocupação era só com os alunos. E com o país também. Tinha a noção forte de o investimento em Educação não poder ser tempo perdido, anos a passar por nós. Tinha que ser capital que se constrói e acumula. Era este tipo de reflexões – certas – que me levam a defini-la como uma conservadora avançada, como já disse.
Os meus pais morreram novos: o meu pai em 1983, com 61 anos; a minha mãe, ainda mais cedo, em 1974, com 49 anos. Isso, e outros factos da vida do país, romperam as rotinas do nosso relacionamento. Mas a Regina continuou a ser presença em minha casa e eu na dela, acompanhado da minha família que foi crescendo. Muitas vezes a Regina era o eco do meu pai, que nunca gostou que eu me tivesse envolvido na actividade política muito novo, a seguir à Revolução.
Olhando com os óculos de muitas décadas para a delegação familiar que veio a esta homenagem (incluindo o casal que não pôde vir, por ser Embaixador de Portugal em Viena), creio poder dizer, sem me enganar, que a Regina nos foi escolhendo, aos poucos, como os filhos que nunca teve – e assim nos quis, junto com as famílias que constituímos. Isto é uma grande honra: os pais têm-nos como somos; mas, quando nos escolhem, é porque nos querem mesmo. Não falando obviamente por mim e pela minha mulher (a Conchita), mas falando apenas quanto à Teresa (e o Carlos), ao António (e a Isabel), à Joana (e ao Manuel), creio poder dizer, com segurança, que a Regina escolheu bem. Também a escolhemos a ela. Deste grupo, a Joana (com o Manuel) é a única que não é parente directa. Era afilhada da Regina, filha de um grande e velho amigo dela. Mas construíram uma relação madrinha/afilhada como raramente tenho visto – não teve nada de efémero. A Joana foi sempre uma presença constante; e, como médica que é, não tinha só o afecto, a proximidade, a cumplicidade, mas a frieza absoluta, rigorosa e necessária nas questões de saúde. Por isso, peço licença ao Senhor Provedor para aproveitar esta homenagem e nomear a Joana (com o Manuel) Prima Honorária de Grau Oiro da Regina e nossa também. A partir de agora, somos todos primos, com baptismo na Beira Alta, como tinha de ser.
Voltando aos ecos dos conselhos do meu pai, prevenindo-me para os malefícios da política, era curioso que a Regina, apesar disso, guardasse sempre os recortes onde eu aparecia, para me falar disso e me questionar sobre pormenores. Fazia o mesmo, com orgulho e amizade, sempre que aparecia uma notícia ou comentário elogioso sobre o meu pai, que tinha falecido. E esta actividade de “clipping” pessoal, digamos assim, juntando alguns recortes para o nosso encontro seguinte, tornou-se rotina no nosso relacionamento, fosse qual fosse o tempo da minha actividade política ou da vida profissional, cívica ou social: o Direito, a TVI, a Educação, o Benfica, causas cívicas que animei. Era leitora ávida, sobretudo do “Expresso”, que creio que lia da primeira à última linha, durante a semana, para depois, a partir de recortes que funcionavam de apontamentos, buscar e colher de viva voz testemunhos sobre factos vividos, esclarecimentos ou opiniões sobre acontecimentos e, ultimamente, saciar a curiosidade sobre realidades que desconhecia. Por exemplo: o que é software? Ah!... E hardware? Ah!... Então e um e-mail? Como funciona o e-mail? E a internet, é fácil? Ah!... E uma SMS? E o iPhone, é o quê? Ah!... Sobre o WhatsApp nunca perguntou – já não lhe chegou notícia. Não se pode estranhar: a Regina nascera, como a minha mãe, no tempo em que quase nem telefone havia. Fizera toda a viagem tecnológica até ao fim dos anos 1980. Mas, dos anos 1990 para cá, estava mais difícil. Também não precisava.
A Regina foi a nossa última referência das origens da família aqui na Beira Alta (onde acabamos de baptizar a Joana), da zona do Cadoiço e de Mesquitela, em Fornos de Algodres. A Regina era Almeida Ribeiro, embora de nome disfarçado pela erosão das gerações: o seu Pinto Ribeiro era de Almeida Ribeiro, assim como o meu Ribeiro e Castro é de Almeida Ribeiro e Castro. Da primeira geração destes Almeida Ribeiro, apenas a sua avó Benedita ficou por cá. Os irmãos de Benedita, todos magistrados – e um deles político a certa altura –, saíram de cá e andaram por muitas partes. Aqui nasceram ainda sua mãe e ela também, mas acabariam por rumar a Lisboa, por razões profissionais.
A Regina era muito fiel à sua terra. Gostava muito de Gouveia e das suas gentes. Creio que vinha cá todos os Verões, intervalos largos da sua vida profissional; e apenas deixou de o fazer, quando a saúde em absoluto a impediu. E também a falta da fiel Maria, empregada, muito amiga e nós dela, que a acompanhou toda a vida, até morrer já há alguns anos. A morte da Maria deixou a Regina mais só e mais limitada.
Reconstruira e reabilitara com muita alegria e orgulho a casa na estrada da serra. Era uma casa de pedra, simples, modesta, mas muito boa, com uma vista fantástica. Tinha muita vaidade nessa obra e em ter um poiso seu na sua terra. Transbordava de contentamento, aqui. A sua alma era serrana. Ali a visitámos algumas vezes. Umas vezes, de passagem, vindos de Espanha pela estrada da Beira. Outras vezes, de propósito, para passar uns tempos com ela. O que conhecemos daqui foi o que a Regina nos mostrou e nos contou. Lembro-me de nos ter feito ir até Folgosinho e explicar-me que era, aí, a terra natal do Brigadeiro Pires Veloso, famoso nos tempos da Revolução e do PREC. Morreu general, mas, na memória popular, ficou sempre como Brigadeiro, o vice-rei do Norte. Se, um dia, eu for a um concurso de televisão e o ganhar, porque à pergunta «Onde nasceu Pires Veloso?», eu responder prontamente «Folgosinho, Gouveia» – já sabem: fico a devê-lo à Regina.
Esse amor que tinha à sua terra concentrou-o na Misericórdia, ao longo dos últimos anos. Teve sempre uma excelente relação com a Misericórdia e os seus dirigentes, que sempre a acolhiam bem e a apoiavam quando cá vinha. Tinha admiração pela obra que a instituição desenvolve. E partilhou sempre connosco a alegria, a amizade e a seriedade dessas relações, o apreço pelas pessoas e pelo trabalho social. As doações que fez foram fruto de decisões conscientes, longamente ponderadas, avaliadas também connosco, sinal da pertença à terra e da fraternidade com os gouveenses.
Temos muita admiração por esses gestos da Regina. E sentimos comovida gratidão pelas homenagens que lhe fazem por causa do seu maior património: o exemplo que é, a pessoa que foi.
Muito obrigado.
José Ribeiro e Castro
HOMENAGEM PELA SCMG, Gouveia, 4.Novembro.2017
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