O toque de Midas
Em Portugal, ninguém quer seriamente acabar com o sistema proporcional. Esta é a parte que está boa. O que se quer é que os eleitores possam responsabilizar individualmente os deputados.
O nosso sistema eleitoral precisa de um toque assim, um momento quase mágico, transformando em oiro o que se estragou. Um toque que transformasse aquilo que desgosta os eleitores e os afasta cada vez mais num chamariz de mobilização e efectivo poder de escolha. Um toque que fizesse a grande metamorfose de um sistema decrépito, recheado de redes, dependências e manipulações, desprestigiando a política e desacreditando os partidos, num sistema que devolva a democracia à cidadania e resulte em partidos reencontrados com a sua missão e deputados livres, maduros, senhores do seu papel, efetivamente representantes do povo eleitor.
Em Portugal, ninguém quer seriamente acabar com o sistema proporcional. Esta é a parte que está boa, a que nos habituámos e de que gostamos – quando muito, será necessário melhorar a proporcionalidade. Ninguém quer passar para sistemas maioritários, a distorcer fortemente a da representação popular. O que se quer, se for possível, é que, mantendo o sistema proporcional – e melhorando-o –, os eleitores possam escolher os deputados que querem e não estar sujeitos a engolir tudo o que lhes metem nas listas. O que se quer, se for possível, é que, mantendo um sistema preponderante de listas, os eleitores possam responsabilizar individualmente os deputados. O que se quer, se for possível, é articular escolhas plurinominais e círculos uninominais, que permitam ao eleitor a dupla escolha (do deputado e da força política), vertebrando uma consistente representação política do país, fiel a três pilares: justa representação do território, verdadeira representação dos cidadãos, justa representação das correntes políticas.
Ora, é possível! Chama-se sistema de representação proporcional personalizada.
Não só é possível, como funciona e presta boas provas: é o sistema que fez a reconstrução, a afirmação europeia e a reunificação da Alemanha desde o pós-guerra. Não só é possível, como a nossa Constituição lhe abriu claramente as portas na revisão constitucional de 1997, na nova redacção do artigo 149.º, que ainda aguarda compreensão e cumprimento.
Por que é que, ao fim de 20 anos, está por cumprir a Constituição? Porque, se há quem ganhe com a reforma eleitoral (os cidadãos, a sociedade, o país, a verdade e transparência democráticas), também há quem perca (os directórios, os chefes e as cortes, as tribos internas dos partidos de poder, os circuitos de influência, os negócios). Como são estes que conquistaram o poder ao longo das últimas décadas e mandam, não querem abrir mão do que controlam, manobram e gerem. Por isso é que, por múltiplas e variadas maneiras, a reforma eleitoral tem sido sempre boicotada em Portugal.
O toque de Midas, de que falo, seria tão poderoso e eficaz, que mudaria tudo. Acredito, acredito sinceramente, que, se essa reforma tivesse sido feita em 1998, nós não teríamos sofrido a corrupção que nos atolou não só no pântano que inquietava Guterres, mas neste vasto e extenso charco que vamos ainda descobrindo. Às vezes, basta uma voz livre para tudo ser diferente; e, no novo sistema, todas as vozes são livres e têm de ser respeitadas e ouvidas. Há verdadeira prestação de contas, interna e externa. Impera a accountability.
Esse toque de Midas muda radicalmente a forma como os partidos seleccionam os candidatos e a cultura política que preside à escolha. Perdem a sabujice, o manobrismo, o secretismo, o clientelismo, os “faz-fretes”, o malabarismo, os yes men, os boys & girls, o tribalismo, o espírito de seita, a claque. Ganham o prestígio público, a credibilidade externa, a substância, o mérito social, o currículo, a capacidade de realização, o saber, a consistência, o reconhecimento, o espírito verdadeiro do mandato democrático. Passamos da “democracia representativa” de mera representação teatral para a democracia representativa de genuína representação política.
O livro “Reforma Política Urgente”, acabado de lançar, é fruto de três anos de trabalho do “Manifesto Por uma Democracia de Qualidade”, subscrito por 50 personalidades de diversos sectores da vida portuguesa e apresentado em finais de 2014. As suas 370 páginas coligem artigos de opinião de António Pinho Cardão, Clemente Pedro Nunes, Fernando Teixeira Mendes, Henrique Neto, João Luís Mota Campos, José António Girão, Luís Campos e Cunha, Luís Mira Amaral e eu próprio, desenvolvendo as ideias principais, comentando sob esse olhar a conjuntura nacional do último triénio e alimentando a pressão da sociedade civil.
É, na verdade, a sociedade civil que tem de levar a política a fazer a reforma que se impõe. Assim saiba levantar a voz e organizar-se melhor e por formas mais originais e poderosas. É o que procuramos fazer na APDQ – Associação Por uma Democracia de Qualidade.
José Ribeiro e Castro
ECO, 30.Novembro.2017
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