Sem mar, não há Portugal


Portugal não seria sem o mar. Sem este mar que nos define, seríamos como a Eslováquia, ou a República Checa, ou Áustria, ou Hungria. Não sei se seríamos melhores ou piores; seríamos outra coisa. O mar fez boa parte da nossa natureza e carácter, da nossa sensibilidade e resiliência, da nossa imaginação e capacidade de sonhar, do nosso talento mercantil e arte de relacionamento. Foi aqui que nos fizemos, portugueses: ao lado deste mar e dentro dele, olhando-o e aprendendo a navegar, descobrindo a ir para além dele.

Antes de Portugal, não havia portugueses. Como disse no 1º de Dezembro, somos “um reino que fez um povo, um povo que fez um país, um país que fez uma língua, uma língua que, navegando, se fez universal.”

Numa leitura simples da nossa formação, somos o fruto mestiço de vários povos: nativos, como lusitanos e iberos; outros que nos chegaram pelo mar, como fenícios, gregos e cartagineses e, mais tarde, os mouros; e, além dos romanos, outros continentais vindos pelas migrações indo-europeias – celtas, alanos, suevos, visigodos. Estes, depois de atravessarem o continente, não pararam aqui por gostarem das paisagens ou da gastronomia. Pararam, porque não sabiam atravessar o mar, a última fronteira. Quando descobriram… atravessaram-no. Continuaram: venceram essa última fronteira. Éramos já os Portugueses – e, a partir daí, acrescentámo-nos ainda o cruzamento com outros povos que conhecemos mar afora.

A nossa linha de costa – 2.830 km – é mais do dobro da linha de fronteira terrestre com Espanha – 1.214 km. Considerando apenas a costa continental – 942 km –, a nossa fronteira marítima é quase igual à terrestre. No território, a diferença é enorme: em Zona Económica Exclusiva, o território marítimo (1,7 milhões de km2) é 18 vezes superior ao território terrestre. E, se Portugal vir reconhecida a Plataforma Continental, o nosso mar (3,8 milhões de km2) corresponderá a mais de 40 vezes a nossa terra. Este espaço territorial é um oceano de oportunidades.



Pioneiros da globalização

O mar conformou muito da nossa História e identidade. Se a globalização dos dias de hoje se faz por ar e mar, pelo espaço, por ondas magnéticas e telecomunicações, a primeira globalização fez-se somente pelo mar. Fomos nós a iniciá-la, a fazê-la primeiro do que quaisquer outros, há seis séculos. D. Dinis tivera a visão de lançar os primeiros alicerces, iniciando a Marinha no começo do século XIV. E, a partir do início do século XV, com o impulso e a visão do Infante, saímos do Ocidente europeu e do Atlântico Norte para definir novas rotas, que nos levaram a todos os continentes e a todos os mares e oceanos do mundo.

O mar, como muitos têm observado, foi condição da nossa liberdade, livrando-nos do cerco e da solidão perante um único vizinho – permitiu-nos chegar a todo o lado sem ter de o atravessar ou pedir licença. Mas foi mais do que isso: o mar libertou-nos da periferia. Numa Terra redonda, só é periférico quem é tolo: quem está mais longe de uns sítios está sempre mais perto de outros. O mar funda a nossa centralidade. Foi, aliás, um português a fazer a circum-navegação para mostrar que a Terra é redonda.

A frase que melhor define a língua portuguesa é da autoria de Vergílio Ferreira: “Da minha língua vê-se o mar.” Devemos ao mar o facto de a nossa língua se ter tornado universal, língua da globalização e, potencialmente, uma das mais importantes. Além do Inglês, o Português é a única língua presente em todos os continentes do mundo, como língua oficial de algum país ou território. O Português é também a língua mais falada do hemisfério Sul – e a crescer. Não devemos estas oportunidades preciosas a qualquer política (até porque o Estado português tem-se infelizmente caracterizado por uma política da língua ausente, medíocre ou distraída). Devêmo-lo apenas ao mar e ao facto de a falarmos: foi a língua que navegou connosco, porque dela se via o mar. E continua a ver-se: os povos e territórios que tocámos são todos ribeirinhos – na Ásia, na Oceânia, em África e nas Américas, como nós próprios na Europa.


A crise do final do século XX


Com a descolonização, o nosso relacionamento com o mar entrou em crise. Costumo comentar como ironia que “foi-se o Ultramar e parece que o mar também”. Essa crise tem razão de ser: a maior parte da nossa relação com o mar tinha a ver com a expansão ultramarina e era, de alguma forma, a continuidade actualizada das velhas rotas das Descobertas. Por isso, mudado o ciclo histórico, regressados ao tempo pré-Infante, é natural um tempo de refluxo ou, ao menos, de reflexão.

Este tempo de crise foi demasiado prolongado e profundo. Afinal, o mar continuava aí ao lado, nas nossas costas e nas nossas ilhas, a oferecer-nos oportunidades e a reclamar-nos visão e estratégia. Assim como continuavam aí a Madeira e os Açores a puxar-nos para o Atlântico Central ou a colocar-nos a meio caminho da América do Norte. Foi um tempo zero – ou abaixo de zero. Não desenvolvemos os portos, deixámos decair a Marinha (tanto a Armada, como a frota mercante reduzida a quase nada), abandonámos estaleiros, fragilizámos as pescas. Foi um tempo de falta de argúcia e de pensamento, em que olhávamos o mar não como oportunidade e fonte de riqueza, mas como fardo, encargo, uma maçada.


O reencontro contemporâneo


É na viragem do século que, fruto de teimosias, inconformismos, esforços, voltamos a ver o mar e acontece o reencontro. Primeiro, nos discursos; depois, nalgumas iniciativas; enfim, em políticas também. Nestas quase duas décadas do século XXI, há um novo caminho desbravado e vozes claras de ambição. Isso é bom, é mesmo muito bom.

Porém, não podemos descansar: por um lado, o que foi feito está longe de estar consolidado e falta ainda muito, mesmo muito por fazer; e, por outro lado, já se ouvem de novo “velhos do Restelo”, desdenhando, em quase troça, do “cluster do mar”, da “economia azul” e do “grande desígnio nacional”, numa exibição leviana de fastio intelectual, tão comum em círculos elitistas.

Há que levar mais longe esta redescoberta do mar, no ciclo pós-Descobertas, no novo ciclo europeu e atlântico de Portugal. Há que consolidar a aposta feita nos portos como frente ocidental europeia – e há que torná-los sempre mais e mais competitivos e atraentes de tráfego. Temos que ser líderes em investigação marinha e todas as suas ciências – não podemos reclamar-nos das mais extensas zona económica exclusiva e plataforma continental e não estarmos em posição de tudo saber delas e daquilo que guardam. Devemos aprender com a Noruega e, em diferentes áreas das políticas do mar, caminharmos para ser a Noruega da ponta ocidental da Europa. Temos de ser campeões em todos os desportos marítimos, afirmando-nos como referências em todo o mundo, em especial para a juventude. Temos de aproveitar a procura extraordinária de cruzeiros turísticos nos nossos portos – Lisboa, Porto, Funchal, Açores, Algarve – e estimular iniciativas para lançarmos e desenvolvermos a nossa própria frota, com as rotas mais ousadas do ponto de vista cultural e comercial. Importa desenvolver ao limite a aquacultura, com relevo para as operações offshore. Há que revigorar os estaleiros, quer na construção, quer nas oportunidades de reparação naval e manutenção. Devemos valorizar a Marinha, atendendo melhor ao seu papel estratégico, em articulação com os nossos parceiros de Defesa. É imperativo, porventura em parceria com o Brasil, dar novo e decisivo fôlego ao apoio aos nossos irmãos na CPLP para desenvolvimento das suas Marinhas, militar e civil, bem como, em geral, ao progresso acelerado das suas políticas marítimas. Importa fazer do mar uma área-chave, central na cooperação política e económica dentro da CPLP. Todos ganharemos – e ganharemos imenso – se cada país-membro da CPLP, no quadro da sua circunstância, for uma potência marítima regional com importante aproveitamento e projecção dos seus recursos. Não esqueçamos Vergílio Ferreira: “Da minha língua vê-se o mar.”

Este novo ciclo de relacionamento de Portugal com o mar precisa de ser devidamente ancorado, no plano institucional. Ancorado, para não ficar à deriva, nem se perder. Institucionalizado, para ter continuidade estratégica de legislatura em legislatura, de geração em geração. Esse é o desafio da Comissão Parlamentar para as Políticas do Mar, que a Assembleia da República deve estabelecer como relevante comissão permanente. É aí que o mar tem de ter lugar, como trave estrutural do pensamento e do desenvolvimento português. Não o perceber é não perceber Portugal. Já o tentámos em 2011 e em 2015, por petições que mobilizaram milhares de cidadãos. Havemos de dobrar esse cabo. Dele depende boa parte do futuro de Portugal. 



José Ribeiro e Castro
REVISTA DE MARINHA, n.º 995
Janeiro/Fevereiro 2017


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