Portugal e o nosso Mar


Os povos são marcados pelo território. O território é definidor das gentes, da sua cultura e modo de ser. Há povos das montanhas e gentes das planícies, povos das savanas ou das estepes e gentes dos trópicos ou das superfícies geladas, povos continentais e gentes do mar. Os portugueses são povo do mar. O mar define-nos.


A marca do Mar

Ouvi algumas vezes Adriano Moreira contar que a sua avó, nas orações à mesa na pequena aldeia transmontana onde viveu, rezava sempre pelos “nossos marinheiros”, para que Deus os protegesse dos perigos que enfrentavam. Provavelmente nunca vira o mar e rezava sempre pelos marinheiros. O nosso mar chegou às terras altas de Bragança.

Só um povo cujo território principal é o mar faz seu prato principal um peixe que não existe sequer nas suas costas: o bacalhau. Milhares de milhas navegaram os nossos pescadores para pescarem, séculos a fio, toneladas sem conta desta marca central da gastronomia nacional. O nosso mar ia até à Terra Nova e outras partes distantes.

Demos a volta ao mundo pelo mar, chegámos a lugares onde ninguém chegara, descobrimos ilhas ignoradas, contactámos com outros povos antes de quaisquer outros. O mar foi mais a nossa terra do que a faixa estreita de terra de onde partíamos. Hoje, crescemos das clássicas águas territoriais para a zona económica exclusiva e desta para mais ampla plataforma continental. É uma modesta tradução, pelo direito internacional, da nossa secular relação territorial com o mar e aquilo que cobre.

A nossa capacidade de relacionamento e interacção com povos de todas as partes do mundo resulta desse carácter de povo ribeirinho, cruzado com tantos que nos visitaram e outros tantos que, navegando, abraçámos. A nossa habilidade comercial foi definida e desenvolvida pelo mar. A nossa língua é uma das principais línguas globais, falada em todos os continentes, porque viajou por todo o mundo, pelo mar – é a felicíssima frase de Virgílio Ferreira: “Da minha língua vê-se o mar.” O Português é língua da globalização, graças ao mar e ao nosso gosto e capacidade de o atravessar.

Não ficámos na praia. Fizemos do mar nosso território: de afirmação, de crescimento, de comunicação.



O poder do Mar

Qual é o poder do mar? É o seu fascínio. Tenho essa experiência desde que nasci. Nasci e cresci em Lisboa, que é onde foi verdadeiramente o promontório de Sagres. Foi do estuário do Tejo que saíram todas as naus dos descobridores e aqui regressaram – as que voltavam. Cresci com esse feitiço a olhar-me. Criança e adolescente, fiz praia entre Oeiras e Carcavelos, ali onde acaba o rio e começa o mar, ora do lado de cá, ora do lado de lá. Naufraguei diante a Paço de Arcos, numa aventura que podia ter acabado mal. Interroguei-me vezes sem conta sobre o que seria para lá daquela linha do horizonte no fundo do mar. Deslumbrei-me a olhar o infinito a partir de grandes cabos da nossa costa nas rotas da minha vida: Roca, Sardão, São Vicente, Girão ou a Nau dos Corvos, em Peniche. Olhar o mar é uma experiência incansável.

O mar é uma planície. Lembra-me o Alentejo, terra de minha mãe. Assim como o Alentejo me lembra o mar. É uma planície molhada que mexe, às vagas, ondulando. O mar é o caminho das ilhas, terra de meu pai, madeirense.

Fiz a primeira viagem de navio, aos 9 anos, com meus pais e irmão, no “Santa Maria”. Enjoei na estreia, na primeira noite de Lisboa para Vigo – a rota da América do Sul escalava Vigo antes do Funchal, para onde íamos. Fiquei vacinado. Nunca mais enjoei. Minto. Mais tarde, com 14 anos, para grande vergonha minha, voltei a enjoar, a bordo do “Terceirense”, numa curta viagem de Aveiro para Leixões. O navio era um cargueiro de transporte de gado vivo dos Açores para o Continente. O cheiro das vacas e seus dejectos, misturado com o do gasóleo, deu cabo de mim. Aí, sim, fiquei lobo do mar: nunca mais enjoei. O meu irmão já não enjoou com as sobras das vacas. Já decidira ser marinheiro.

Quando vejo o filme “Titanic” e a cena memorável dos dois protagonistas apaixonados na proa do navio, revivo a sensação que vivi sozinho, aos 13 anos, na proa do “Angra do Heroísmo”, em viagem de Lisboa para os Açores. Não há nada igual. Só experimentando se pode entender o que, além da paixão, ali sentiam Jack (Leonardo DiCaprio) e Rose (Kate Winslet): receber o vento e ondular com o navio a romper, vaga após vaga, o mar sem fim diante de nós, sem fim a bombordo e a estibordo e sem fim para trás também. Único! Realmente fascinante.

O mar sempre se apoderou de mim. Tive a mais longa viagem, no “Príncipe Perfeito”, de Luanda para Lisboa, com 16 anos. Dez dias inapagáveis, com muitos dias só de mar: Luanda, Las Palmas, Funchal, Lisboa. Tenho muitas saudades de navegar a sério. Não me surpreende que o mar se apodere de tantos outros também. Nem me surpreendeu quando, estudante, li Camões a prevenir tanto, n’ “Os Lusíadas”, quanto a esse poder do mar.

Nos portugueses, este fascínio é fatal como o destino. Não somos peixes, mas mais ainda.



O desafio permanente da Economia do Mar

Anima-me ver que, depois de décadas de profunda crise após a descolonização, que nos baralhou a compreensão de nós próprios, Portugal está a reencontrar-se com o mar, o seu uso e a sua função nacional. É um fenómeno positivo, cada vez mais intenso, desde há 10 ou 15 anos. A pouco e pouco, a economia do mar reanima-se, diversifica-se e consolida-se. E a sua política ganhou nova consciência e fôlego.

É longo o caminho a percorrer. Há novas áreas, novas linhas, novos projectos nas políticas do mar, que são sem dúvida importantes. Mas há eixos que devem continuar a constituir preocupações importantes de reconstrução, reafirmação e valorização.

Dói-me o muito baixo perfil em que caiu a nossa marinha mercante. Gostaria de ver grandes navios portugueses nos novos mercados internacionais de turismo e suas rotas, na Europa, África e Américas. Quando vejo, com entusiasmo, a frequência crescente dos cais de Santa Apolónia (todos os dias) e de Leixões por grandes paquetes de cruzeiros, com largos milhares de turistas, gostaria que este movimento estimulasse empresas nacionais a investirem no negócio e reconstruírem a frota nacional de passageiros, em termos modernos e para os mercados de hoje. Por que conseguem estrangeiros e nós não?

Dói-me a crise dos estaleiros. Gostaria de os ver a recuperar um lugar de referência na Europa e no mundo, sobretudo na reparação naval, mas na construção também.

Dói-me a quebra sofrida pelas pescas. Gostaria de ver capacidade de investimento e de operação empresarial para modernizar e fazer crescer a nossa frota pesqueira: afirmá-la poderosa na Europa e a nível mundial, operando em diferentes mares, e sector estratégico de criação de riqueza e geração de emprego.

Dói-me sentir que muitos não entendem o papel estratégico da Marinha e dos seus meios. E que regateiam ou desdenham. A nossa defesa assenta, em larga medida, no mar e as responsabilidades internacionais de segurança têm de ser bem servidas, com pontualidade e capacidade ininterrupta. Além disso, uma boa Marinha é uma grande bandeira nacional.

O mar é um convite permanente. Temos de lhe corresponder sempre, senão foge-nos. Como é que foge? O mar é um território comum a outros. Se nós não respondermos, respondem outros – e ocupam-no. Primeiro, pela economia. Depois, pela política.

Feitos que somos de costa e de ilhas, temos de estar sempre à altura, como povo, como sociedade, como Estado, como economia, daquilo que somos: a frente marítima ocidental da Europa. Nem é só não podermos falhar a vocação. É não falharmos a natureza.



José Ribeiro e Castro
REVISTA DE MARINHA, n.º 1000
Novembro/Dezembro 2017

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