A estibordo nada de novo


No vocabulário marinheiro, estibordo é o lado direito dos navios. E, corno os partidos à direita da maioria PS andam bastante à deriva, sem rumo claro, é caso para dizer que, neste momento, não há bem uma oposição à direita, mas uma simples oposição de estibordo.

O Governo vai prosseguindo o seu caminho, com cem dias já passados: enfrentou a questão das “promessas” - incluindo as mais polémicas (portagens e propinas) -, aumentou as pensões, deu algumas primeiras boas provas na União Europeia, fintou PCP e CGTP na questão das 40 horas e acabou averbando uma vitória muito importante quer para si, quer para o país, no acordo de concertação. Guterres esteve particularmente bem no difícil incidente da Bósnia e é capaz de ter as coisas bastante facilitadas quanto ao Orçamento, onde a descentralização avança com reforço das finanças locais. Haverá a brega usual na Assembleia, mas as coisas não deverão ir além disso - ninguém compreenderia e poderia ser duríssima a sanção política e popular a chumbos provocados sem alternativa. Até porque, tudo o indica, a base de apoio social e político ao Governo não se terá, entretanto, reduzido, mas terá até aumentado relativamente a 1 de Outubro.



No PSD, os tempos são de arrastado vazio. Sabe-se quem não vai ser. Não se sabe nem quem, nem o que vai ser.

Cavaco Silva não será. Fernando Nogueira também não. Durão Barroso, aspas, aspas. Ferreira do Amaral, idem. Mota Amaral, também não. Santana Lopes parece que não também. Leonor Beleza não. Miguel Cadilhe também. Marcelo Rebelo de Sousa disse que não. José Miguel Júdice, nem pensar. Pacheco Pereira ainda não, pelo menos.

Enfim... complicado.

No dizer favorito do, de novo, correligionário Vasco Pulido Valente, “o mundo está perigoso”…

O mais penoso de tudo para o partido “laranja” é esta ideia leviana, mas estabelecida e posta a correr, de que “o próximo líder é para queimar”. Decididamente: o mundo está perigoso pelas bandas sociais-democratas.

Alberto João Jardim, sempre directo, aludia em “O Diabo” desta semana a alguns debates havidos no último Conselho Nacional do PSD e criticava asperamente os alegados “autismos” de colegas seus. Às tantas, escreve: “Quando se ouve dizer lá dentro que o PSD é um 'partido de esquerda', o autismo continua.”
Pois é. Esta é justamente uma das mais curiosas e permanentes contradições do PSD - como é que um partido com uma denominação “de esquerda” cresceu como a referência dominante para o eleitorado “de direita” (e “do centro à direita da esquerda”), sem nunca haver esclarecido essa flagrante ambiguidade ou ter tido sequer a menor necessidade disso. Mas agora, de facto... “o mundo está perigoso”.



O Partido Popular bem gostaria de explorar a oportunidade, mas não parece capaz de acertar o passo com o novo estatuto que pretendia assumir e a dimensão eleitoral para que cresceu. Volta, não volta, os traços sonantes de um simples partido de protesto sobressaem como a marca mais saliente.

O infeliz acidente da Bósnia foi pretexto para nova evidência. Cumpria respeitar a dor das famílias dos que morreram e a inquietação dos militares que lá estão, sem a procurar explorar ou agudizar. Num momento delicado de dificuldade e de luto, cumpria respeitar também os códigos próprios da instituição militar, envolvida no cumprimento de obrigações nacionais num contexto difícil e em conjunto com Forças Armadas de países aliados na NATO. Cumpria ainda ter presente a questão global e dar sinais de ponderação ao nível do plano de entendimento próprio de um país, de uma nação e de um estado.

Aparentemente, nada disto seria difícil para um partido que tanto quer assumir “a direita” - todas essas referências são valores comuns justamente entre partidos de direita. Mas não! A tentação do protesto - de protestar sempre - mandou mais alto. E reapareceu, simplista, o populismo sem linha.

Há, de resto, outros sinais de algum desnorte. Ou mesmo de sérios excessos de pensamento. Coisas que, afinal, só servem para ir atraindo, corno o registo mais frequente a posições PP, o título do programa de Júlio Isidro: “Olh'ó Popular!”

Li no PÚBLICO que, há uma semana, falando numa sessão partidária em Coimbra, Manuel Monteiro teria dito o seguinte: “É triste que, tantos anos depois da revolução do 25 de Abril de 1974, a esquerda ainda domine os órgãos de decisão. Cortaram os bigodes, vestiram casacos e gravatas, mas nos cabelos ainda têm os piolhos.”

Ainda pensei que fosse engano meu e que a tirada viesse antes de algum espontâneo exaltado. Fui ler outra vez. Tinha sido mesmo o líder do PP, Manuel Monteiro. Reli com cuidado. A questão é de bigodes, de gravata e... de piolhos. Sobretudo de piolhos. Pronto! Está visto. Passadas as “sanguessugas”, faltavam os “piolhosos”.



O rodopio populista do PP e o vazio de liderança e de caminhos do PSD criam uma situação em que estes partidos acabam por agir mais em função do que acham que “irão pensar deles” do que daquilo que eles próprios acreditem e quisessem propor ao país como alternativa global. O frenesim de “ir a todas” e de, aí, assumir a posição que pareça “render mais” no imediato nunca é boa conselheira e só aprofunda a incapacidade de marcar a agenda, qualquer agenda. Mas a coisa é contagiosa. Ou não caiu também o PSD na tentação da “vulgaridade” - palavras de Barbosa de Melo-, a propósito de Sousa Franco?

Em matéria de fogachos, o mais verdadeiro é que “o que parece não é”. Quando a agenda gira ao simples sabor da manchete do dia, da lágrima do dia, da sensação do dia, quando a agenda anda aos baldões e flutua aos bordos, ao sabor de factos alheios, nada se capitaliza e nada se constrói. Pelo contrário, esse vazio ruidoso aprisiona.

Quer PP, quer PSD adorariam colocar o PS e o Governo numa situação de “reféns do PCP” - sobretudo que, por um lado, isso se tornasse óbvio para os eleitores e que, por outro, estes se incomodassem e zangassem com o facto. Não reparam, porém, que estão a tornar-se cada vez mais reféns da sua própria incapacidade de perfilar uma alternativa.

Tivessem o PP ou o PSD, nesta altura, projecto novo, autónomo e alternativo, e qualquer deles se sentiria livre para, descomplexadamente, assumir desde já que, independentemente da forma - até dura e exaustiva - como o criticassem, iriam abster­se na votação do Orçamento do Estado, viabilizando antecipadamente a sua passagem.

Farto de mais de um ano de incerteza e de “tabu”, o país certamente que compreenderia e agradeceria, quando este é, afinal, o primeiro Orçamento de um Governo resultante de eleições há escassos três meses e com um Presidente socialista, também recém-eleito. O facto em nada limitaria a capacidade ou os créditos oposicionistas de cada um e antes contribuiria para libertar e afirmar o discurso mais vigoroso que entendessem fazer. Porém, reféns de si próprios, PSD e PP parecem mais preocupados com o imediatismo sonante e, no jogo cruzado de disputa dos “trocos à direita”, com a tal obsessão: “O que é que eles pensariam e diriam de nós?”

O PP temerá o “aproveitamento” que o PSD pudesse fazer, sendo que o PP ainda se sente perseguido com o “fantasma da equidistância” e as questões que alimentou contra Freitas do Amaral. E o PSD receia o oposto, sendo que o seu fantasma privativo se chama ''bloco central”.

É claro que qualquer deles cresceria bem mais no crédito público se assumisse, claramente e à distância, a abstenção no Orçamento, do que alimentando um “suspense” próprio de literatura de cordel, inconsequente e absolutamente inexplicável até às últimas consequências. Mas, para isso, era indispensável que PSD ou PP, cada um ou ambos, estivessem à vontade e com rumo definido, no contexto do novo ciclo que se abriu em Outubro. A regra é conhecida: só é capaz de descontracção sem complexos quem se guia por fortes convicções próprias e nisso baseia a sua autonomia. É isso o que falta... a estibordo.

E, sendo assim, ainda iremos talvez assistir a cenas épicas e patéticas no Parlamento. Épicas, a forçar dramatismo, num momento que não tem condições objectivas para o ter e para ir até ao fim. Patéticas, numa contradição de fundo que será flagrante para toda a gente e que poderá até inspirar mais recuos, piruetas e cambalhotas memoráveis. Fazem­ se apostas.


José Ribeiro e Castro
Jurista


PÚBLICO, 3.Fevereiro.1996

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