A Lei Portas/Magalhães de expulsão de estrangeiros
1. Aquando da Cimeira UE-África, convidei elementos da oposição do Zimbabwe, que vieram contestar o regime. Gente pacata. Mas imaginemos que, com outros residentes, tinham gritado insultos diante de Mugabe, no Parque das Nações. Se detidos e levados a julgamento, todos acabariam inexoravelmente expulsos, caso os projectos que o grupo parlamentar do CDS-PP levou recentemente a debate estivessem em vigor. Bem poderia o juiz compreender as circunstâncias e condená-los em multa leve. Nada a fazer. Tendo o crime moldura penal superior a um ano (no caso, dois anos), a sentença Portas/Magalhães cairia automática: fora de Portugal já, sem apelo, nem agravo.
O Nqobizitha Mlilo, jovem estudante, exilado na África do Sul, disse-me como gostou de Lisboa, que gostaria de viver cá. Imaginemos que já cá estava como residente e que, passados anos, gostaria de naturalizar-se português. Com a lei Portas/Magalhães não poderia. Para todo o sempre. Aquele temível insulto atirado a Mugabe pesaria, implacável, no cadastro. Até para simples palavras indignadas escritas na bandeira do Zimbabwe (moldura penal igual a um ano), a lei Portas/Magalhães seria inflexível: mesmo se, no caso concreto, com sanção ligeira, português nunca mais!
2. Os dois projectos de lei tentaram agravar o regime de expulsão de estrangeiros e do acesso à nacionalidade portuguesa. São propostas que não provêm de personalistas. Não denotam traço de respeito pela pessoa humana. São textos pouco cuidados, com gralhas e erros de remissões, que tornam mais difícil compreender o que se pretende, além de erros técnicos. Só para falar destes, um dos textos alveja o «crime doloso cometido em flagrante delito». O que raio é um crime «cometido em flagrante delito»? O texto, deixando espreitar o espírito persecutório, queria talvez falar de indivíduos detidos em flagrante delito. Mas, ainda aí, o texto não faz qualquer sentido, pois, no sistema penal, o flagrante delito releva para medidas de coacção, mas não, como é óbvio, para a pena aplicada em julgamento.
O mesmo espírito de perseguição ressalta de outros traços do regime proposto. Por exemplo, em caso de adiamento do julgamento, a lei fixa curtíssimos dez dias. A iniciativa Portas/Magalhães queria reduzir mais: cinco dias. E, na marcação inicial, a lei determina que o julgamento deve ser feito logo nos cinco dias imediatos após recepção do pedido de expulsão. A iniciativa queria menos: 48 horas. Qual a razão de tamanha pressa? A sonoridade da proposta "48 horas" só me fez lembrar a tristemente célebre ordem "24/24", por que tantos portugueses foram sumariamente expulsos de Moçambique, nos anos mais duros da década de 1970, com 24 quilos de bagagem, prazo de 24 horas.
As propostas vinham embelezadas com o «contrato de imigração», aparência de uma "ideia gira" que não passa disso mesmo. A ideia afigura-se inútil e absurda e, sendo inútil, uma humilhação pessoal, que traduz violação de um princípio fundamental dos contratos: a igualdade das partes. A sujeição dos imigrantes ao cumprimento das leis é óbvia, como, aliás, para todos os cidadãos. Mas, como também é óbvio, isso não resulta de nenhum contrato, antes da força da própria lei. E qualquer sanção que seja aplicável não decorre de qualquer quebra de um "contrato", mas da própria lei. Em que maternidade, ao nascermos cidadãos, assinámos um contrato para que as leis se nos apliquem?
Não escondendo propósitos eleitoralistas, as propostas configuram sobretudo uma lei de expulsão de estrangeiros, baixando cegamente o limiar das molduras penais que determinariam aquele efeito. E procuram jogar com a ignorância de sectores da opinião pública, explorando de modo irresponsável a associação leviana da imigração à criminalidade.
A pena de expulsão já hoje está prevista na lei para crimes graves, no quadro do processo judicial. Por outro lado, é demagógica e contraproducente a associação primária entre crime e imigração, ignorando que é entre os ilegais ou em debilidades do espaço Schengen que estão os maiores problemas, desprezando que muitos crimes vitimam em primeiro lugar comunidades migrantes e abalando a relação necessária com estas comunidades e suas associações, na prevenção e no combate ao crime. Pela nossa tradição e mentalidade e pelas características da nossa imigração, não temos, nem em número, nem em gravidade, os problemas que afectam outros países europeus. Ser ligeiro na importação de ideias de outros é acender um fogareiro, assente no preconceito e na desconfiança, para continuar a deitar gasolina no incêndio.
A Lei da Imigração só subsidiariamente se aplica a nacionais de países da UE. Mas, não sendo um búlgaro diferente de um brasileiro, nem um romeno distinto de um cabo-verdiano, se este discurso pegasse entre europeus, teríamos que receber em Portugal pelo menos 1047 portugueses, detidos actualmente em Estados da UE-27. E muitos outros portugueses mais, presos em países exteriores à UE ou que, não tendo sido sequer condenados a penas de prisão, cometeram algum ilícito leve dentro da inflexível e apertada moldura da lei Portas/Magalhães. Queremos isto?
3. Quando presidente do CDS, procurei que a revisão da Lei da Nacionalidade fosse negociada sinceramente e aprovada por consenso. Uma fracção do grupo parlamentar fez o que pôde para o impedir. E conseguiu. Creio que desejava manter uma linha de fractura: preferia que a lei não ficasse boa, para poder manter desacordo e arma de arremesso. Apesar das cedências e aproximações do Governo em vários pontos, sobrou, das peripécias desses propositados desencontros, o que sempre considerei um erro técnico: que, nos casos em que a condenação pela prática de crimes pode determinar, em absoluto ou temporariamente, a impossibilidade de aceder à nacionalidade portuguesa, qualquer processo de atribuição de nacionalidade se suspendesse na pendência de processos-crime com aquela possível consequência. A direcção do partido chegou a preparar um projecto de lei restrito à correcção desse erro, sem mudança do paradigma da lei. O grupo parlamentar jamais o apresentou. Percebe-se agora porquê: havia que manter o espaço para atacar o paradigma da lei.
Na proposta de agora, o limiar que determina a impossibilidade de vir a ser português baixaria para níveis que abrangem insultos a Mugabe, riscos na bandeira da tirania, um telemóvel achado e apropriado, um azar comercial com insolvência negligente, poluição sonora ou danos contra a natureza por negligência, infracções rodoviárias de diverso tipo. As faltas poderiam ser leves e o juiz brando nos casos concretos. Nada a fazer com a Lei Portas/Magalhães: portugueses, nunca!
Foi-se ao ponto de exigir que até os menores, filhos de estrangeiros, nascidos em Portugal, tivessem, além de todos os demais requisitos, que fazer prova de «capacidade para garantir a sua subsistência», a fim de adquirirem a nacionalidade portuguesa. Até os menores!
4. Hoje, na União Europeia, por razões óbvias, a política de imigração é fortemente consensualizada. Por isso, as suas linhas gerais tendem a resultar da aproximação não só entre os principais partidos de cada Estado, mas também entre os 27 Estados-membros. Não significa isso que os partidos não tenham ideias diferentes e que estas não aflorem no debate das leis nacionais ou, a nível europeu, de directivas e regulamentos. Mas significa que, salvo esses grandes momentos de inovação ou reforma legislativa, os partidos do arco de governo e do arco europeu não abrem, de modo avulso, frentes de ataque pseudofracturante nesta matéria, menos ainda para exploração demagógica de tiques extremistas e apetites eleiçoeiros.
Que o grupo parlamentar do CDS-PP não tenha resistido a isso e juntasse no embrulho de arremesso não só bocados da Lei da Imigração, mas a própria Lei da Nacionalidade - que todos devemos considerar uma lei de regime, um acto superior do Estado e um quadro fundamental do próprio país - constitui um momento triste e particularmente infeliz.
José Ribeiro e Castro
Deputado ao Parlamento Europeu pelo CDS/PP
Deputado ao Parlamento Europeu pelo CDS/PP
PÚBLICO, 20.Janeiro.2009
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