Essa palavrinha "confiança"
“No princípio era o BPN, e o BPN estava com o modelo, e o BPN era o modelo.”
Quando caiu o BPN, receou-se crise sistémica, efeito dominó. Foi assim a nacionalização. Hoje, tudo é duvidoso – e contestável a protecção da SLN. O caso foi contemporâneo do estrondo Lehman Brothers, o que aconchegou a conveniência da intervenção, articulada com a ideia de ser caso isolado.
Quase dez anos depois, estamos mais perto da ideia de o BPN ser sistémico não tanto num estoiro, mas em si mesmo e nos seus vícios. Nessa época, a RTP dedicou um “Prós e Contras” à banca portuguesa. Era Outubro de 2008. Falaram-nos Faria de Oliveira (CGD), Fernando Ulrich (BPI), Ricardo Salgado (BES) e Santos Ferreira (BCP) – um programa memorável, que a RTP podia reemitir, editado, para ser comentado com os “entretantos”.
Na linha do documento “Reconfiguração da Banca em Portugal”, precisamos de avaliar o que se passou, entretanto – e porquê. A banca portuguesa – asseguraram-nos – respirava saúde. Ressoavam abalos em vários bancos europeus, mas a nossa banca era um oásis, porto seguro, o modelo de modernidade de gestão.
Creio que acreditámos. Todos queremos acreditar. Quem não quer acreditar no sítio onde guarda o dinheiro?
De então para cá, a banca modelar revelou-se uma das mais periclitantes da Europa, enorme vulnerabilidade do país. O folhetim BPN foi péssimo, com perdas enormes. O Millennium BCP podia ter quebrado, após uma operação terceiro-mundista de assalto accionário feita com dinheiro público (da CGD), gerando efeitos em carambola: as acções do BCP, que cotaram acima de 5 euros durante muito tempo, caíram a míseros cêntimos, abaixo de loja do chinês. O BPP afundou-se – pesada ironia, no exacto momento em que se lançava, prefaciado por João Cravinho, o livro triunfante da consagração: “João Rendeiro – Testemunho de Um Banqueiro”, destacando a capa “a história de quem venceu nos mercados”. A CGD segue enredada em extenso novelo de mudança de Administração e reconstrução financeira – e vão-se sabendo deploráveis histórias de promiscuidade e má gestão, passando a ideia de piores serem as que não se saberão. O BANIF foi o último falido, depois de consumir centenas de milhões de ajuda pública. E a dor maior foi o BES: pela dimensão e nome do banco; pela posição crucial no sistema bancário.
A banca “muito sólida” de Outubro de 2008 deu nisto. No 11 de Março, indignei-me com a nacionalização. O BES era o “meu” banco, onde, muito jovem, abrira a minha primeira conta. O PREC foi derrotado; entrámos na normalidade das sociedades e economias de liberdade. Hoje, já não sei… A perplexidade cresce ao ouvir parte da direita juntar-se à defesa da nacionalização do que resta do BES. Como a jogar “Monopólio”, regresso à casa da “Partida”.
São milhões os prejuízos acumulados. Há colossais perdas de valor. Mas este é um dos maiores danos causados pelos responsáveis disto tudo: abalaram, enxovalharam, destruíram mesmo, as ideias em que acreditávamos. E sem ideias… não há futuro.
No universo BES, ocorreu a história mais escandalosa: a concessão pelo BESA de 5,7 mil milhões de dólares de empréstimos, sem registos, nem garantias! No fundo, uma gigantesca emissão de moeda falsa, que faz de Alves dos Reis um aprendiz. E é também realmente moeda falsa boa parte das montanhas de crédito mal parado, lixo tóxico de vários bancos. Tudo pagaremos, duma maneira ou doutra.
Não creio que o negócio da banca seja sobretudo o dinheiro. Dinheiro é também o negócio do gatuno. É o negócio do casino. E a arte do moedeiro falso. Há diferença entre a banca, de um lado, e gatuno, casino ou moedeiro, do outro. Essa diferença constitui o núcleo essencial do negócio da banca: confiança e racionalidade.
Os bancos têm de ser pólos e fontes de confiança, pólos e motores de racionalidade. É por nos inspirarem confiança que lhes entregamos o nosso dinheiro; e é por terem racionalidade que têm sucesso com o nosso dinheiro e contribuem para o sucesso da economia.
Uma doença terrível atingiu o sistema financeiro: tirou-lhe a racionalidade e, no final, arrasou a confiança. A doença veio do tempo das vacas gordas. A crise atingiu peças do sistema financeiro, porque a doença estava lá – se não estivesse, os bancos teriam resistido.
Há poucos dias, um ex-líder político, comparando americanos e europeus, dizia: “Vejam como a Europa se torturou e tropeçou na crise financeira. Talvez devêssemos aprender alguma coisa com eles [os americanos] – entre outras coisas foi gente presa pela crise financeira nos EUA.” Sim, em Portugal, não passa nada. E, no resto da Europa, exceptuada a Islândia, muito pouco. Sim, a Justiça deve cumprir o seu trabalho e há que ver o que esteja errado nas leis.
Mas, para repor a confiança, temos de fazer muito mais. O problema é reconstruir a confiança em entidades privadas, não reconstruir a confiança na polícia.
Nos inquéritos parlamentares, vergastou-se a supervisão do Banco de Portugal. Um exame importante. Mas falha o alvo. Chamei a atenção para ser fundamental examinar e graduar as culpas da “supervisão” interna. Não havia administradores? Quantos? E órgãos de fiscalização? Não havia Assembleias Gerais? E auditores e revisores? Como arde a casa toda sem, antes, cheirar a fumo?
Devem explicar-nos tudo o que se passou. Há dias, num texto dedicado a Mário Soares, um ex-banqueiro criticou “políticos despreparados e sem visão de Estado”. Os políticos ainda estão sob escrutínio, embora deficiente. O que falta por completo é o escrutínio dos banqueiros despreparados e sem visão da Economia, nomeadamente pelos próprios pares. Não pode ficar um silêncio de “omertà”, em corporação fechada e mixórdia com supervisores e auditores. Falta esse escrutínio aberto e informado. Por quem sabe – e, sabendo, quer defender a banca séria, livre e concorrencial. Falta abrir a janela para entrar ar fresco.
Depois da terrível crise que nos afundou, é preciso separar o trigo do joio para restabelecer a confiança. É preciso sanear as ideias para reconstruir a racionalidade.
José Ribeiro e Castro
Advogado, ex-líder do CDS
DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 7.Fevereiro.2017
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