Moçambique, a paz


1. Moçambique celebrou o Acordo Geral de Paz em 4 de outubro de 1992. Foi assinado em Roma, entre o presidente Joaquim Chissano, da Frelimo, e o líder da Renamo, Afonso Dhlakama, depois da laboriosa mediação da Comunidade de Santo Egídio. Não fosse o talento de D. Matteo Zuppi, a terrível guerra civil, que já levava 16 anos, teria durado mais uns anos.

Convoco palavras suas, tiradas do discurso em Maputo no 10.º aniversário do Acordo: "Após dez anos devemos perguntar a nós próprios: o que é que fizemos com essa paz? A paz não é apenas o silêncio das armas. Deve crescer no profundo da nossa vida e na sociedade. Nós também temos de aprender a procurar aquilo que une, deixando de lado o etnicismo, a violência, o ódio. Paz é dar dignidade à vida de cada um. Cada homem é um valor, sempre! Temos ainda hoje de tirar espaço à violência e introduzir o respeito e a tolerância. Continua a haver muita violência nos corações, nas palavras, nas mãos. Demasiada. É um insulto para quem foi vítima dela. É um insulto a Deus."
A 4 de outubro último, dia de eleições legislativas em Portugal, havia grande tensão em Moçambique, com Dhlakama de novo desaparecido há semanas e manobras aparentes para o apanhar. Pouco depois, Dhlakama aparece na Gorongosa e viaja para sua casa na Beira, onde anuncia uma conferência de imprensa para dia 9. Neste dia, a polícia, com grande aparato, veda o acesso aos jornalistas, evacua residências vizinhas e invade a casa de Dhlakama, de onde retira bens. Segundo referido, buscava armamento. Criou-se enorme tensão, mobilizando-se mediadores nacionais como Alice Mabota, presidente da Liga dos Direitos Humanos. Era o 23.º aniversário do Acordo de Paz. Lembremos a pergunta de D. Matteo Zuppi: "O que é que fizemos com a paz?"



2. Moçambique tem excelentes manifestações culturais, desde Mia Couto à brilhante expressão musical ou nas artes plásticas. Acompanho com admiração a qualidade da imprensa independente, o desenvolvimento das redes sociais e um dinamismo da sociedade civil com um grau de solidez que não se vê, por exemplo, em Angola - a Liga dos Direitos Humanos é um bom exemplo, com vários anos.

Apesar de imputações de fraude eleitoral, a democracia moçambicana foi avançando. Desde a paz de 1992, Moçambique já vai em cinco ciclos eleitorais. Devagar, com dificuldades e contradições, mas andando em frente. Melhor do que Angola, onde ainda não se fizeram eleições locais, 14 anos passados sobre a paz de 2002. Em municípios importantes, como Beira e Quelimane, a liderança passou para a oposição, com líderes dinâmicos e prestigiados. Além dos dois partidos mais antigos, Frelimo e Renamo, que assinaram a paz, surgiu um outro ator relevante: o MDM, de Davis Simango.

Há dois anos, porém, a política moçambicana parece dançar à beira do abismo. Atingiu-se um altíssimo perigo. Parece que a guerra está à porta, senão latente. No final dos mandatos anteriores, Dhlakama desapareceu, em protesto contra condições democráticas deficientes e ameaçando não participar nas eleições. Um profícuo diálogo entre a Frelimo e a Renamo (e respetivos líderes) salvou as eleições de 2014, em que todos participaram, apesar de alguns incidentes. O novo presidente, Filipe Nyusi, deu imagem de líder dialogante, o que poderia garantir uma acalmação prolongada. Contudo, isso não aconteceu. As deficiências das eleições alimentaram novos protestos e reclamações de Dhlakama e não tem havido condições para prosseguir um processo de diálogo político sério. Repetem-se os incidentes armados, alguns muito graves; a pressão das forças de segurança sobre Dhlakama subiu ao limite; o secretário-geral da Renamo foi baleado e evacuado para a África do Sul; há civis apanhados por ataques ou confrontos nas estradas; há alguns milhares de refugiados em países vizinhos. Uma lástima. Não é que Nyusi tenha comprometido a sua imagem externa de homem dialogante. Mas algo se passa que o impede de impor o diálogo. E o panorama deteriorou-se nas últimas semanas a propósito de dívidas do Estado.

O quadro, gravíssimo, não será porventura irreversível. É imperioso que seja reversível. Mais: é imperativo que seja revertido.

Creio que a mediação internacional é indispensável. A Comunidade de Santo Egídio está certamente disponível. Portugal também. A CPLP idem. A União Europeia também ajudará ou as Nações Unidas. É urgente abrir avenidas de confiança entre a Frelimo e a Renamo, cujo grau desceu abaixo de zero. Aí, as internacionais partidárias - de um lado, a Internacional Socialista, do outro, a IDU ou a IDC - poderão desempenhar um papel importante, assistindo e protegendo essa reposição bilateral de confiança mínima sem a qual nenhum diálogo avança.

Estou certo de que o nosso Presidente da República terá as palavras e os gestos certos. A paz é o bem mais precioso. Com justiça, liberdade e democracia - diálogo político permanente.



José Ribeiro e Castro
Advogado e ex-líder do CDS

DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 3.Maio.2016

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