O renascimento da democracia em Portugal
A reforma eleitoral apresentada ao Presidente da República no início do ano, na proposta da Associação Por uma Democracia de Qualidade (APDQ) e da SEDES, é uma grande ideia cívica: é a proposta capaz de fazer renascer a democracia em Portugal.
Se aplicada às eleições legislativas de Outubro de 2019, a abstenção cairia, de imediato, dos actuais 45% para menos de 30%. Mais 1 milhão e meio de cidadãos iriam votar. Não tenho a mais pequena dúvida. A novidade, a proximidade dos eleitos e a liberdade de escolha iriam consegui-lo já: de novo muito forte participação eleitoral. Voltaríamos a ter a democracia a mobilizar a cidadania.
O segredo desta mudança tão significativa não é segredo nenhum. Está escrito na Constituição desde 1997: «círculos plurinominais e uninominais», em «complementaridade, por forma a assegurar o sistema de representação proporcional», comportando ainda um «círculo nacional» – este é o figurino desenhado e aberto pelo artigo 149º. A inovadora proposta SEDES/APDQ é isso que faz: cumprir a Constituição, de forma precisa, ousada e justa.
É uma evolução suave do quadro actual: o sistema mantém-se proporcional e até de forma mais justa do que actualmente; e continua estruturado a partir dos distritos e regiões autónomas, como circunscrições territoriais de referência. Mas opera uma mudança profunda da ordem política, ao transferir para o eleitorado a decisão quanto aos deputados: são os eleitores que elegem directamente metade dos deputados; e a outra metade é também escolhida sob influência da opinião pública e da cidadania, numa cultura cidadã renascida na formação das listas. Ponto final no poder absoluto dos directórios e arbitrariedade dos chefes.
Este sistema – representação proporcional personalizada – é de democraticidade impecável. Absolutamente exemplar. Perto de nós, funciona na Alemanha, onde tem prestado excelentes provas desde 1949, sob todos os critérios: representatividade, pluralismo, estabilidade governativa, solidez das instituições, plasticidade do sistema partidário, diálogo político, concertação de regime, poder de escolha dos eleitores, multipolaridade territorial. Entre as explicações para o sucesso da Alemanha no pós-guerra, o sistema eleitoral é uma delas.
Nós podemos ter igual. E a Constituição abriu-nos essa alameda há 20 anos. O eleitor português passará a ter duas escolhas no boletim: num, o deputado que quer no círculo uninominal; noutro, o partido que prefere nas listas plurinominais da circunscrição. No final, contados os votos, sai uma Assembleia da República rigorosamente proporcional (conforme as percentagens de votos nos partidos) e com deputados escolhidos pelos eleitores: metade directamente, porque neles votaram; metade indirectamente, porque influenciaram a feitura das listas. Parece magia. Mas não é. É apenas inteligência. E experiência.
Quem não quer que mudemos para um sistema assim tão bom?
Infelizmente, há vozes de resistência e desinformação, que falam dos círculos uninominais como do diabo. Só pode dever-se a malandrice e preconceito, ou a desconhecimento e pouco estudo. Os círculos uninominais num sistema como o alemão não têm nada a ver com o sistema inglês ou o francês, que são sistemas maioritários. Aquele é um sistema proporcional, em que a votação uninominal em parte dos deputados é essencial para a personalização, mas em nada distorce a proporcionalidade.
Há dias, num artigo no “Público”, Francisco Louçã escrevia: «O PS, para concluir os acordos com o Bloco e o PCP, retirou do programa de governo as suas propostas de alteração da lei eleitoral (os círculos uninominais, destinados a fazer o PS e o PSD ganharem na secretaria) …» (“As razões europeias do Dr. Rangel”, 20.1.2018). Louçã não tem razão nesta crítica.
Os círculos uninominais que o PS já defendeu, e oxalá volte a defender, não se destinam a vitórias na secretaria. Não têm essa aptidão. Antes pelo contrário. Francisco Louçã, com honestidade intelectual e o seu crédito académico, tem que examinar bem o sistema alemão. O Bundestag é mais proporcional que a nossa Assembleia: isto é, as bancadas são mais próximas das votações efectivas nos partidos. Basta ver a comparação das últimas três eleições.
Votação e representação
parlamentar
PORTUGAL / ALEMANHA
Assembleia
da República 2009
|
Bundestag
2009
|
|||||||||||||
% votação
|
Deputados
|
% lugares
|
%
votação
|
Deputados
|
%
lugares
|
|||||||||
PS
|
36,6%
|
97
|
42,2%
|
CDU/CSU
|
33,8%
|
239
|
38,4%
|
|||||||
PSD
|
29,1%
|
81
|
35,2%
|
SPD
|
23,0%
|
146
|
23,5%
|
|||||||
CDS-PP
|
10,4%
|
21
|
9,1%
|
FDP
|
14,6%
|
93
|
15,0%
|
|||||||
BE
|
9,8%
|
16
|
7,0%
|
Die
Linke
|
11,9%
|
76
|
12,2%
|
|||||||
CDU
|
7,9%
|
15
|
6,5%
|
Verdes
|
10,7%
|
68
|
10,9%
|
|||||||
230
|
622
|
|||||||||||||
Assembleia
da República 2011
|
Bundestag
2013
|
|||||||
% votação
|
Deputados
|
% lugares
|
% votação
|
Deputados
|
% lugares
|
|||
PSD
|
38,7%
|
108
|
47,0%
|
CDU/CSU
|
41,5%
|
311
|
49,3%
|
|
PS
|
28,1%
|
74
|
32,2%
|
SPD
|
25,7%
|
193
|
30,6%
|
|
CDS
|
11,7%
|
24
|
10,4%
|
Die
Linke
|
8,6%
|
64
|
10,1%
|
|
CDU
|
7,9%
|
16
|
7,0%
|
Verdes
|
8,4%
|
63
|
10,0%
|
|
BE
|
5,2%
|
8
|
3,5%
|
FDP
|
4,8%
|
-
|
-
|
|
230
|
AfD
|
4,7%
|
-
|
-
|
||||
631
|
Assembleia da República 2015
|
Bundestag 2017
|
|||||||
% votação
|
Deputados
|
% lugares
|
% votação
|
Deputados
|
% lugares
|
|||
PàF
|
38,6%
|
107
|
46,5%
|
CDU/CSU
|
33,0%
|
246
|
34,7%
|
|
PS
|
32,3%
|
86
|
37,4%
|
SPD
|
20,5%
|
153
|
21,6%
|
|
BE
|
10,2%
|
19
|
8,3%
|
AfD
|
12,6%
|
94
|
13,3%
|
|
CDU
|
8,3%
|
17
|
7,4%
|
FDP
|
10,7%
|
80
|
11,3%
|
|
PAN
|
1,4%
|
1
|
0,4%
|
Die Linke
|
9,2%
|
69
|
9,7%
|
|
230
|
Verdes
|
8,9%
|
67
|
9,4%
|
||||
709
|
A prova não pode ser mais evidente. Partido a partido, a representação parlamentar na Alemanha é muito mais próxima das votações nas listas do que em Portugal. Até em 2013, em que a cláusula-barreira atingiu partidos significativos, como FDP e AfD (na Alemanha, é preciso 5% a nível nacional para ter direito a representação), os lugares de deputados repartiram-se, ainda assim, de modo mais proporcional do que no nosso país.
É facto que os partidos com maior votação elegem mais candidatos uninominais, como é natural; mas isso não altera a proporcionalidade, que tem de ser respeitada e servida. A eleição uninominal é, em substância, a forma de os eleitores concretizarem a escolha dos deputados que preferem, dentro da quota do respectivo partido; e é o modo de garantir proximidade e representatividade territorial do Parlamento. É um sistema sábio.
Por exemplo, na última eleição, em 2017, a CDU de Angela Merkel elegeu 185 uninominais e a CSU conquistou todos os uninominais na Baviera; mas, por causa disso, a CDU só elegeu mais 15 das listas plurinominais e a CSU não elegeu nenhum. Conclusão: a CDU/CSU, que somou 33,0% na votação partidária, elegeu 34,7% dos lugares no Bundestag – com o nosso sistema actual, alcançaria certamente 40% dos deputados. Em contrapartida, como os quadros mostram, os partidos mais pequenos, como Verdes e a Esquerda (Die Linke), nunca são prejudicados na eleição de deputados, diversamente do nosso sistema. Na eleição de 2017, os Verdes e a Esquerda conseguiram eleger, respectivamente, 1 e 5 uninominais, mas foram buscar às listas mais 66 e 64 mandatos para completarem a representação. O sistema é autoelástico.
No apelo geral de reinvenção por que o Presidente da República abriu o Ano Novo, este é um exemplo de reinvenção, um eixo estratégico de reinvenção. O Presidente convocou-nos: «O ano que hoje começa tem de ser o ano dessa reinvenção.» E precisou o espírito: «Reinvenção da confiança dos portugueses. Reinvenção com verdade, humildade, imaginação e consistência.»
É disto que se trata na reforma eleitoral: verdade e humildade, a reconhecer erros em que estamos atolados; imaginação e consistência na construção da resposta democrática, capaz de fazer renascer a confiança dos portugueses. Quem não quer um Parlamento melhor? Quem não quer uma democracia de qualidade?
José Ribeiro e Castro
Advogado, ex-líder do CDS
JORNAL "I", 7.Fevereiro.2018
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