S.A.R., a RTP

A questão da possível transmissão dos jogos do Benfica pela RTPi suscitada pelo secretário de Estado das Comunidades Portuguesas acabou por pôr a nu, como não podia deixar de ser, aquele que é um dos tiques mais penosos na cultura ainda latente pelas bandas da RTP: a nostalgia e a obsessão do monopólio.

Em minha opinião, esse é o maior atavismo da RTP, fonte principal dos seus crónicos problemas económicos e financeiros, lesando o erário público. Vem de trás, dos governos de Cavaco Silva e da gestão política de Marques Mendes. Mas a actual tutela também não dá mostras de contrariar de modo determinado essa tendência e inércia larvar. As contas são, depois, o espelho desastroso dessa realidade acomodada.

A RTP nunca se habituou, infelizmente, e mal se conforma com "a abertura da televisão às privadas". No novo quadro do sector, aberto em 1992, a RTP tinha duas opções em abstracto: ou aceitava de bom grado jogar a concorrência num quadro comercial aberto e leal; ou se assumia claramente como estação de serviço público, preenchendo lugar e espaço distinto das estações comerciais. Porém, com velhas e preciosas bênçãos governamentais, não quer nem uma coisa nem outra; antes procura guardar a parte comestível de ambos os perfis - quer a carne de ambos os estatutos, sem lhes ficar com os ossos. Quer ser comercial para arrecadar as receitas da publicidade, sem todavia correr plenamente os respectivos riscos. E quer ser dita de "serviço público" para justificar generosa subsidiação por dinheiros públicos, sem todavia se ater completamente aos seus limites e regras. Qual é, então, a vocação real por detrás deste hibridismo feito por medida? Saudades loucas e uma constante obsessão insinuada pelo tempo das "vacas gordas", os anos de glória dos finais da década de 80: uma estação comercial agressiva vivendo em regime de monopólio público.

É a exuberância da cultura majestática: Sua Alteza Real, a RTP. Quem sofre mais com isso? Directamente a própria RTP, eternamente adiada. Pelo meio, os telespectadores. No fim de tudo, os contribuintes, que tudo pagam, aos milhões por ano. Até que se irritem. O futebol, produto televisivo que suscita particular apetência do público, é uma área privilegiada de demonstração. E o caso da RTPi terreno predilecto de exibição. Em território nacional, o monopólio acabou - mais tarde ou mais cedo, a RTP acabará por ter de conformar-se com isso. Mas nas emissões internacionais o quadro é de monopólio, bem propenso por isso à exibição dos reais tiques residuais.

Logo que a RTPi iniciou as suas emissões aqui há uns anos, de imediato se abriu o debate: se a RTPi deveria ser um canal verdadeiramente nacional, aberto também à exibição internacional da produção portuguesa dos novos canais privados; ou se seria apenas um outro biombo para o exclusivismo "erretepista" e suas imputações contabilísticas internas, a preceito.

A única opção estratégica correcta em termos de serviço público e de divulgação portuguesa junto dos emigrantes e do espaço da lusofonia é obviamente a primeira. Mas outros interesses majestáticos sempre perturbaram essa lucidez. Os contratos de concessão, quer o inicial de Marques Mendes, quer o actual de Arons de Carvalho, sugerem claramente aquela "linha justa"; mas fazem-no com tamanha ambiguidade cúmplice ( ou será reserva mental?) que sempre favoreceram que nada realmente aconteça. O frenético bloqueio às privadas quanto às emissões internacionais da RTPi apenas conseguiu ser furado, salvo erro, por duas transmissões pontuais da TVI em cinco anos: umas Marchas Populares de Lisboa, pelo Santo António; e uma Grande Noite do Fado. Em tudo o resto, seja com a SIC, seja com a TVI, o objectivo do maior interesse nacional e de real serviço público internacional tem sido sempre gorado. Muita conversa, muita conserva, mas sempre nada.

Estará na memória de todos a praga (ou seria uma profecia?) do então primeiro-ministro Cavaco Silva a este respeito, na altura em que a RTPi, por um 10 de Junho não muito longínquo, iniciava as suas transmissões: se as privadas quiserem emissão internacional, que aluguem o seu próprio satélite. Estaria tudo certo se fosse a RTP "a pagar o satélite"; mas como, via "indemnização compensatória", são os contribuintes que pagam isso e muito mais ...

Quando agora, reagindo a solicitação da Secretaria de Estado das Comunidades Portuguesas, o presidente do Conselho de Administração da RTP sustenta essa coisa espantosa que é a RTPi "não tem interesse" nos jogos do Benfica (porque são transmitidos pela SIC), mas apenas nos da Olivedesportos (porque servem a cultura de monopólio), faz uma afirmação do mesmo calibre - é a mesma ideia que ecoa. Querem satélite? Comprem-no! Extraordinário ...

Um dia - de preferência mais cedo que tarde - a administração da RTP acabará por perceber, com todas as consequências, que quando uma estação de televisão emite um programa não é para singular deleite dos seus administradores, vendo-os e gabando-os nos gabinetes. É apenas porque há público telespectador, em globo ou por segmentos, que o quer ver e que merece poder vê-lo. O que serve para qualquer dos estatutos possíveis. No estatuto de estação comercial, porque é isso que, a seguir, atrai os anunciantes e gera as receitas - chama-se a isso o mercado. E também no estatuto de estação pública, justificando o que, através do Estado, os contribuintes lhe pagam - chama-se a isso serviço público.

Tudo o mais, como sustentar que "não há interesse" nos jogos do Benfica pedidos pelos emigrantes, e desejados no espaço da lusofonia, só pode ser fonte ou de gargalhadas, ou a de motins.

Chegou a vez de os emigrantes e o espaço da lusofonia experimentarem também o sabor do monopólio. Em matéria de política de programação para a RTPi, está visto: o "slogan" da administração da RTP não é tanto o popularizado "o que é nacional é bom". Antes outro, parecido e mais jeitoso: "O que é da Olivedesportos é bom." Pode ser?


José Ribeiro e Castro
Jurista, vice-presidente do Sport Lisboa e Benfica

PÚBLICO, 22.Fevereiro.1998

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