Arquitectura eleitoral para a cidadania


É interessante – e importante – o último artigo escrito nestas páginas por Jorge Cordeiro, sob o título “Engenharias eleitorais”. O realce que merece não decorre só do texto, mas da circunstância de Jorge Cordeiro, cronista regular do “Diário de Notícias”, ser membro destacado do Secretariado do Comité Central do PCP e também da sua Comissão Política. Traduz, portanto, uma posição política marcante neste debate.

Não é novidade a oposição dos comunistas ao tipo de ideias de reforma eleitoral que decorrem da revisão constitucional de 1997. O PCP não votou a favor dessa revisão constitucional. E, no debate sobre a reforma eleitoral que se lhe seguiu e decorreu na Assembleia da República há exactamente 20 anos, o PCP mantinha, em substância, o tipo de sistema eleitoral actual, que é o que temos desde 1975: um sistema de representação proporcional, segundo o método de Hondt, a partir de listas plurinominais fechadas, apresentadas por partidos ou coligações em 22 círculos eleitorais territoriais. O projecto de lei n.º 516/VII, que o PCP apresentou a esse debate e seria defendido no plenário pelo saudoso deputado Luís Sá, precocemente falecido, só trazia duas novidades: a previsão de um círculo nacional, numeroso; e a redução do número de círculos no Continente pela agregação dos círculos distritais em novas unidades regionais – pelo enunciado, percebe-se que a nova geografia proposta pelo PCP seria coerente com as circunscrições que resultariam da regionalização, a qual, todavia, seria reprovada no referendo do final desse ano.

Linha diferente seguiam os textos do PS e do PSD. Tanto a proposta de lei nº 169/VII, como o projecto de lei nº 509/VII apontavam, em modelos distintos, para introduzir a representação proporcional personalizada a que a Constituição abrira as portas. Mas as esperanças de reforma terminaram abruptamente, em 23 de Abril de 1998, por vetos cruzados, em que cada um só aprovou a sua proposta, rejeitando tudo o mais. O processo nem chegou à fase da especialidade. E tudo tem continuado enterrado nas arcas do fundo da cave do Parlamento.

A preocupação do PCP tem estado sobretudo em diminuir aspectos críticos do método de Hondt. Quer a criação de um círculo nacional de 50 mandatos, quer a agregação em unidades maiores dos actuais círculos distritais proporcionaria, com as mesmas votações, uma representação parlamentar mais numerosa ao PCP, tal como a outros partidos da mesma ordem de grandeza – BE e CDS –, diminuindo o “prémio” dos partidos grandes. Mas isso não resolveria o problema principal do nosso sistema eleitoral: a ligação eleito/eleitores, a relação democracia/cidadania, a responsabilidade eleitoral, a qualidade da democracia. Pode até arguir-se que o projecto do PCP, com círculos regionais bem maiores e um círculo nacional muito grande, poderia favorecer deputados ainda mais distantes e mais dependentes dos directórios, menos vinculados à base. Jorge Cordeiro poderia contra-arguir – e com toda a razão – que isso não depende do sistema eleitoral, mas dos métodos de trabalho de cada partido. Hoje, já é assim. Os partidos não estão obrigados a funcionar tão mal quanto em geral nos vamos apercebendo. A representação poderia não se ter deteriorado tanto quanto temos visto. Mas a verdade é que o sistema eleitoral não contrariou o plano inclinado dessa decadência e as lógicas de concentração de poder interno encarregaram-se faze o resto.

Essa é a necessidade e a oportunidade da reforma eleitoral que tenho defendido, na linha da Constituição e como consta das propostas da SEDES e da APDQ, que o artigo de Jorge Cordeiro critica. Não vou gastar tinta a responder a comentários que faz ao texto da proposta. Este texto traduz as nossas profundas convicções, baseadas na observação do nosso declínio democrático e no inconformismo perante este declínio, bem como no estudo de outras realidades melhores, que iluminam a solução dos nossos problemas. A introdução dos círculos uninominais é, de facto, a chave da reforma do sistema, como a Constituição aponta desde 1997. É a chave, porque muda a cultura de representação parlamentar, introduzindo um mecanismo robusto de legitimação de baixo para cima. E, ao fazê-lo quanto aos uninominais, contagia com o mesmo espírito também e de forma incontornável todos os outros patamares de representação. Há uma maré de cidadania, uma onda de representatividade real. Basta ver o que se passa na Alemanha.

A crítica principal de Jorge Cordeiro está neste trecho: o «argumento, apresentado como de monta, de que um círculo nacional de compensação asseguraria sempre a representação proporcional da conversão de votos em número de mandatos, é uma patranha. De novo o jogo de aparências. A indução de voto útil na disputa uninominal rearrumará nessa dinâmica e nos critérios mediáticos das disputas unipessoais a intenção do voto, desvalorizará projectos e propostas em nome de protagonistas e "Messias". Como alguém assinalou, destes círculos resultarão quase só deputados do PS e do PSD incompensáveis com a actual composição numérica da AR.»

Salvo o devido respeito, esta linha de afirmações é que é uma patranha. Os círculos uninominais previstos na Constituição e desenvolvidos na nossa proposta não têm nada a ver com, por exemplo, os actuais sistemas britânico e francês ou experiências similares feitas em Portugal nalguns períodos da monarquia constitucional. Estes são sistemas de círculos uninominais exclusivos, sem proporcionalidade. Os nossos círculos uninominais são totalmente diferentes, porque estão submetidos à proporcionalidade definida pela votação simultânea nas listas partidárias: não decidem a composição do Parlamento, limitam-se a contribuir para ela. O sistema mantém-se proporcional, até mais impecável – como a Constituição exige e a experiência alemã mostra sem margem para dúvidas. Os círculos uninominais são, neste sistema misto, um ingrediente complementar, uma componente relevante, cujo efeito fundamental é o de assegurar o efectivo enraizamento na cidadania da representação parlamentar, eleição após eleição.

Jorge Cordeiro pode consultar directamente com os seus companheiros do Die Linke ou, antigamente, do PDS. Em 1994, na segunda eleição após a queda do Muro, o PDS seria varrido do Bundestag por ter obtido uma votação nacional abaixo da cláusula-barreira dos 5% – obteve 4,4%. O que é o que salvou? Ter vencido em quatro círculos uninominais, superando o limiar do mínimo de 3. E, assim, acabou elegendo 30 deputados – todos os decorrentes das percentagens obtidas nos diferentes círculos estaduais, incluindo os 4 uninominais.

Seria desonesto da minha parte negar que são, obviamente, os maiores partidos a eleger a maior parte dos uninominais. É assim, por um puro e natural efeito matemático: quem é maior tende a ser maior por todo o lado. Mas não é necessariamente assim. Outros partidos podem apresentar candidatos excepcionais, aqui ou ali, que vençam contra-corrente – há, aqui, até um grande acicate político. E, no meio da maré geral, há zonas de particular influência de algum partido mais pequeno – zonas de concentração de voto, por razões históricas ou sociais. Ou seja, partidos que não são os grandes são igualmente aptos a ganhar eleições uninominais. Depende dos candidatos, dos territórios e das campanhas. Nas últimas eleições alemãs, em fins de 2017, isso aconteceu com o Die Linke, com a AfD e com os Verdes. O Die Linke, que Jorge Cordeiro pode acompanhar com mais interesse, elegeu 5 deputados uninominais – nada mau para um partido que teve 9,2% na votação nacional. Onde foram estas vitórias do Die Linke? Quatro na antiga Berlim Leste e um em Leipzig.

O outro argumento da “indução de voto útil na disputa uninominal” também não funciona como subjaz ao raciocínio de Jorge Cordeiro. É inegável que, nas votações uninominais, tende a haver uma deslocação de votos dos partidos mais pequenos para os maiores. Porém, desde logo, essa tendência é a inversa naqueles círculos em que seja um candidato dos partidos mais pequenos a ter a vantagem e a possibilidade mais forte de ganhar – só que, matematicamente, estes casos são em menor número do que os outros, pelo que há que reconhecer: nas votações uninominais, os partidos maiores tendem a ganhar um pouco mais. Nas últimas eleições alemãs, os partidos maiores (CDU/CSU e SPD) receberam quatro pontos mais na soma das votações uninominais do que na respectiva votação nacional nas listas partidárias; e os partidos mais pequenos receberam, em geral, menos um ponto cada nas uninominais, sendo a diferença de três pontos no caso do FDP e apenas 0,6 para o Die Linke. Contudo, isto é totalmente irrelevante para a composição global do Parlamento, pois a única votação que determina a composição percentual do Bundestag é a votação nas listas plurinominais dos partidos nos círculos estaduais.

A experiência mostra ainda que algum voto útil (ou voto de escolha pessoal) nas votações uninominais não contamina a votação na lista de partido. Tende até a funcionar ao contrário: um eleitor que foi votar “útil” num candidato individual tende a votar fielmente no “seu” partido na votação de lista – e esta, repito, é que determina a composição percentual do Parlamento. Voltemos às eleições alemãs de 2017: o FDP, que teve apenas 7% nas votações uninominais e não elegeu nenhum deputado nestes círculos, recebeu 10,7% nas votações nas listas e elegeu 80 deputados, correspondendo a 11,3% do novo Parlamento; e o Die Linke, que recebeu 8,6% nas votações uninominais, elegendo 5 deputados nesta via, obteve 9,2% nas votações nas listas e elegeu um total 69 deputados (isto é, mais 64 pelas listas), correspondendo a 9,7% do novo Parlamento. Ou seja, por estranho que possa parecer a alguns, é muito melhor do que o nosso: por um lado, o voto útil não afecta como no nosso actual sistema; por outro, o sistema é mais proporcional. Onde é que, em Portugal, um partido com 9,2% dos votos teria 9,7% dos deputados? Cá, obteria cerca de 7,5% dos mandatos.

Há uma última razão por que não podemos, neste sistema de representação proporcional personalizada, valorizar o facto de que os partidos maiores tendem a ganhar a maior parte dos lugares uninominais. É natural. Mas, depois, elegem, correspondentemente, muito menos lugares através das listas plurinominais. Não esqueçamos, volto a recordar, este aspecto fundamental: o sistema é proporcional; e a votação-guia para a composição percentual do Parlamento é a votação nas listas plurinominais de partido. Vejamos de novo o exemplo nas últimas eleições alemãs. A força vencedora foi a coligação CDU/CSU, com uma percentagem nacional de 33,0%. Nas votações uninominais, somaram 37,2% e alcançaram muitas vitórias: a CSU conquistou todos os 46 lugares em disputa na Baviera; e a CDU elegeu 185 lugares por esta via, de um total de 253 que disputou. Mas, em contrapartida, a CSU ficou por ali e não elegeu nenhum das listas; e a CDU só elegeu mais 15 das listas. Consequência: as CDU e CSU elegeram 246 deputados, correspondendo a 34,7% do novo Parlamento. Jorge Cordeiro sabe bem que, no nosso sistema, o “prémio” para o partido mais votado seria muito maior do que isto. Nas últimas eleições portuguesas, em 2015, esse “prémio” na representação parlamentar foi de mais 8% de deputados para a PàF e de mais 5% de deputados para o PS – na Alemanha, apenas 1,5% para as CDU/CSU (o primeiro) e 1% para o SPD (o segundo).

Compreendo as resistências do PCP a reformas eleitorais, face a arremetidas manhosas que aconteceram no passado, nomeadamente centradas no instrumento da redução brutal do número de deputados, porventura com outros truques ainda. Compreendo igualmente desconfianças e resistências similares por parte do BE e do CDS. Os partidos médios não estão dispostos a ser esmagados ou diminuídos por engenharias eleitorais de duvidosa base democrática.

Como escrevemos no Manifesto, em 2014, «a Constituição e o pluralismo existente dão suficientes garantias de seriedade e decência na reforma das leis eleitorais.» Confiamos nisto. Qualquer tentativa de reforma desonesta não passa no Parlamento, chumbaria na consciência pública, não passaria no Presidente da República e seria reprovada no Tribunal Constitucional. Não vale a pena gastar tempo com reformas manhosas – é pura perda de tempo. Talvez por isso, nos últimos 20 anos, nada mexeu. A SEDES e a APDQ, que lançaram este debate público, estão publicamente comprometidas com uma reforma eleitoral honesta, que resolva os problemas que são causa do descontentamento dos cidadãos eleitores, mas garantindo sempre uma justa tripla representação, democrática e plural: da cidadania, do território, das correntes políticas. A nossa proposta aproveita o debate legislativo inconcluso de há 20 anos e a experiência eleitoral alemã, mas procura fazer melhor, por ser à medida das nossas necessidades e da nossa própria experiência democrática. Por exemplo, comparando com a Alemanha, as nossas propostas incluem a previsão de um círculo nacional e excluem qualquer cláusula-barreira, o que melhora a representatividade e a proporcionalidade.

Seria importante que o PCP revisse a sua posição. Uma boa reforma eleitoral tem muito a ganhar com o concurso de todos. As eleições são matéria que a todos interessa e é muito importante que todos se sintam confortáveis nas leis eleitorais e no respectivo sistema. É inteiramente possível fazer uma reforma eleitoral honesta. Tem de ser feita. É para isso que trabalhamos.


José Ribeiro e Castro
Advogado, ex-líder do CDS

DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 29.Março.2018

(Versão integral do texto mais resumido publicado no Diário de Notícias)

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