Na grelha de partida para a reforma eleitoral?


Estão a passar 20 anos sobre o que poderia ter sido um processo legislativo de renascimento da democracia em Portugal. Em 1998, de 16 de Março a 23 de Abril, na Assembleia da República, os partidos e os deputados tiveram a bola nos pés para poderem melhorar significativamente a qualidade da democracia em Portugal. Tiveram-na nos pés… e chutaram-na para as bancadas. Os partidos mandaram, os deputados obedeceram, Portugal continuou adiado.

Naquele período, na esteira da revisão constitucional de 1997, a Assembleia da República apreciou três textos de reforma eleitoral: dois projectos do PSD e do PCP e uma proposta de lei do Governo PS. O PCP não trazia grande mudança, pois os comunistas nunca se afastaram do sistema actual. A proposta de lei do Governo, próxima do modelo alemão, reflectia um longo, amplo e aprofundado trabalho de preparação técnica, a partir de um anteprojecto, envolvendo, ao longo dos meses anteriores, debate político, contributos cívicos e estudos universitários. Os textos legislativos finais do PSD e do Governo PS conduziam-nos, em graus e modelos diferentes, para a representação proporcional personalizada: sem afectar a proporcionalidade das forças políticas na Assembleia, quase metade dos deputados eleitos seriam directamente escolhidos pelos eleitores. Uma mudança crucial! Hoje, Portugal estaria sem dúvida muito melhor em todos os planos, se essa melhoria da representação parlamentar já tivesse sido feita. Melhores deputados, melhores partidos, melhor Assembleia. Provavelmente, não teríamos sido empurrados até à beira da bancarrota, nem a troika teria sido chamada.

Esse processo merece ser revisitado. Pode ser que inspire. Tem momentos notáveis, como os textos legislativos propostos, alguns trechos dos pareceres, partes dos debates sobre estes pareceres. E tem momentos verdadeiramente deploráveis, com destaque para a espiral de crescente zaragata em que, após uma abertura com qualidade e elevação, o debate na generalidade se degradou numa funesta conversa de surdos, até tudo conseguirem matar em S. Bento naquela triste quinta-feira, 23 de Abril de 1998. O Governo apelara à viabilização de todos os textos, vindo, depois, a acertar-se as diferenças na especialidade. O PSD cedo se fincou na redução do número de deputados (184), intimando o PS a comprometer-se com este corte, sob pena de chumbar o texto governamental. Assim fez, vindo o PS a responder na mesma moeda: PS e PSD chumbaram-se um ao outro. O CDS disse que sim, mas fez que não: falhou a oportunidade de integrar uma maioria reformista e votou contra tudo. PCP sempre avisou estar noutra onda: votou apenas o seu projecto, chumbou os demais.

Vinte anos passados, mantemo-nos diante da mesma necessidade. O sistema regenerador a que os constituintes abriram a porta continua trancado por falta de efectiva vontade política dos legisladores. De eleição em eleição, a abstenção sobe, a qualidade da representação decai, o interesse da cidadania pelos partidos a afunda-se.

A proposta SEDES/APDQ, apresentada ao Presidente da República em 19 de Janeiro, já foi exposta nestas páginas: 105 deputados escolhidos directamente pelos próprios eleitores; Assembleia com um total de 229 lugares; sistema de representação rigorosamente proporcional dos cidadãos, do território e das correntes políticas, bem como, nos moldes actuais, da emigração. Agora, depende de ser endossada por 20.000 cidadãos que, a partir da sociedade civil, lancem para o Palácio de S. Bento uma Iniciativa Legislativa de Cidadãos; ou de que um ou mais partidos a assumam e apresentem (ou a outra semelhante).

Como estamos, em matéria de grelha de partida?

O Partido Socialista seria, em teoria, o mais certo. O Programa Eleitoral de 2015 é muito claro. Sob o título “Reformar o sistema eleitoral e adotar mecanismos que ampliem e estimulem a participação democrática”, o PS reconhece que “está ciente da necessidade de aproximar os eleitores dos eleitos” e promete: “Reformar o sistema eleitoral para a Assembleia da República, introduzindo círculos uninominais, sem prejuízo da adoção de mecanismos que garantam a proporcionalidade da representação partidária, promovendo o reforço da personalização dos mandatos e da responsabilização dos eleitos, sem qualquer prejuízo do pluralismo.” Cá está!

Porém, tanto o PCP, como o BE não querem este tipo de reforma, pelo que os acordos políticos da geringonça comprometeram esta promessa eleitoral, congelando-a até 2019.

Com o PCP não pode contar-se, pois nunca gostou de sistema que inclua círculos uninominais. Podemos apenas esperar que conversas com o Die Linke, de que é parceiro no Parlamento Europeu, esbata o preconceito e ilumine o espírito. A experiência alemã mostra bem que o sistema não os prejudica, nem a ninguém. Foram até círculos uninominais que, em duas eleições, salvaram o PDS (antepassado do Die Linke) da degola pela cláusula-barreira dos 5%.

Do BE dir-se-á o mesmo, levando em conta as críticas que Francisco Louçã vai deixando contra o tema, embora parecendo que não estudou os específicos círculos uninominais deste sistema. O BE preza créditos de maior abertura e credenciais académicas. Sem dúvida que conversas com os parceiros do Die Linke e os próximos do Bündnis 90/Die Grünen poderiam abrir o espírito para a verdade rigorosa. O BE poderia ser relevante, se ajudasse a destrancar a geringonça.

O PSD tem responsabilidade decisiva. O PSD tem estragado repetidamente o tratamento desta questão desde 1997, ao pôr à cabeça das suas ideias a redução dos deputados para 180 ou cerca disso. Ora, não só isto não é adequado no quadro europeu comparado, como os partidos médios reagem logo defensivamente, pois percebem que uma reforma dessas tem como objectivo esmagar a sua representação, concentrando o peso parlamentar em dois partidos: PSD e PS. As resistências acumuladas por parte de CDS, PCP e BE têm esta fonte. Basta que o PSD congele essa pretensão ácida e se foque numa reforma qualitativa do sistema para a representação proporcional personalizada, que tudo mudará de figura. O estribilho “palavra dada é palavra honrada” deixará o PS em posição embaraçosa, se não quisesse acompanhar o movimento.

O CDS, infelizmente, não tem tido rasgos neste tema. O que é estranho, se lermos o Programa partidário, já de 1993: “É importante a consagração de um novo sistema eleitoral, de modo a individualizar cada vez mais a responsabilidade política, reforçar o controlo democrático dos eleitores sobre os eleitos e impedir a tendência da democracia de partidos para se tornar numa democracia de directórios.” A única outra coisa que se ouviu foi a ideia de Paulo Portas, disparada a Passos Coelho no Frente a frente da campanha eleitoral de 2011, defendendo um círculo nacional único de 115 deputados e eleição proporcional – ideia que não teve sequência, nem tem viabilidade, e concentraria ainda mais o Parlamento nos cortesãos escolhidos. Seria positivo se o CDS voltasse ao seu Programa e assumisse atitude distinta dos últimos anos, viabilizando uma reforma que também pode ser decisiva para si. O povo habitualmente premeia aqueles que se destacam nas reformas positivas e na concretização das ansiadas mudanças. 


José Ribeiro e Castro
Advogado e ex-líder do CDS
Subscritor do Manifesto Por uma Democracia de Qualidade


JORNAL "I", 7.Março.2018

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