Cumprir 1997: o voto é a arma do povo
Nas grandes frases do 25 de Abril, houve esta: “voto, uma arma do povo”. A mobilização oficial para as primeiras eleições fez-se com esse slogan, o que logo inspirou uma pichagem dos anarquistas: “O voto é a arma do povo; se votas, ficas sem ela.”
Os anarquistas dos grafitis mal sabiam que talvez acertassem. Os cidadãos responderam em massa às constituintes de 25 de Abril de 1975: votaram 91,7%! A seguir, nas legislativas, a 25 de Abril de 1976, a abstenção manteve-se baixa: 16,5%. O mesmo até 1980: afluência nos 84%, abstenção de 16%. Mas, desde 1983, a abstenção sobe em contínuo: já vai nos 44,1%, em 2015.
A participação democrática foi perdendo atracção. O desapontamento com os partidos cresceu. O desencanto com a representação política alastrou. É muita pena quando assim acontece. Pior, quando não se corrige, para recuperar o encanto da democracia e a mobilização da cidadania.
Há vinte anos, a Assembleia da República esteve nessa encruzilhada. A Constituição acabara de ser revista, permitindo significativa reforma eleitoral. O sistema de representação proporcional não era minimamente posto em causa, antes tinha de continuar a ser aplicado. Poderia até ser mais respeitado. Mas a Constituição abriu a porta a que, a par das listas plurinominais, se introduzissem círculos uninominais complementares: cada eleitor poderia também escolher o seu deputado. Esta inovação não tem magia: é possível ter um sistema com círculos uninominais, em que o Parlamento é proporcional e não de composição maioritária. Chama-se representação proporcional personalizada, como vigora nalguns países.
Dizer que a Constituição abriu a porta em 1997 é o mesmo que dizer que a Constituição apontou para aí: as Constituições não abrem portas para voltarem a ser cerradas. E, na verdade, essa reforma – um sistema misto, proporcional, de candidaturas uninominais e listas plurinominais – era aquela que já se sentia que se impunha.
A 23 de Abril de 1998, fez anteontem vinte anos, o plenário da Assembleia debateu e votou na generalidade três textos na esteira da revisão constitucional de 1997. Dois avançavam para a nova representação proporcional personalizada: um projecto de lei do PSD e a proposta de lei do Governo (PS). O projecto de lei do PCP mantinha o sistema ainda actual.
Todos sabiam o que precisávamos face ao mau estado da democracia. E conheciam a urgência. O deputado Luís Marques Guedes (PSD) apontou o dedo: «Há hoje um afastamento crescente dos cidadãos em relação à política e às instituições representativas do País, num processo de divórcio entre eleitores e eleitos que urge inverter.» O deputado Luís Sá (PCP) fazia diagnóstico certeiro: «Não há matéria que mais prejudique o prestígio dos Deputados e que mais os desvalorize do que estarem dependentes de negociatas de bastidores, em que são completamente anulados e em que as questões de princípio, declaradas na véspera, não valem rigorosamente nada!» Na onda, o ministro dos Assuntos Parlamentares António Costa, actual primeiro-ministro, vaticinou: «A presente legislatura assinala os 25 anos do 25 de Abril. Não nos limitemos para o ano que vem a festejar o passado da democracia. Comecemos já este ano a acreditar no futuro da democracia.» E o actual Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, foi citado neste debate, por, num colóquio da Comissão Nacional de Eleições, já em 1992, ter afirmado: «Não vejo urgência fatal na reforma eleitoral, a não ser precisamente naquilo que tem a ver com a relação eleitor/eleito. (…) Deixar tudo como está, será irresponsável. É patente o distanciamento entre representantes e representados e o divórcio cada vez maior entre eleitos e eleitores, o que muito tem a ver com o carácter obsoleto do nosso sistema eleitoral.» É isto mesmo. Como disse, na altura, o actual primeiro-ministro, «uma nova partilha de poder entre os partidos políticos e os cidadãos.» Há vinte anos!
O ministro ainda apelou a que o PS viabilizasse todos os textos, tratando das diferenças na especialidade. Contaria que a oposição fizesse igual. Mas o debate, que começara radioso, foi azedando até ao extremo, pela inflexibilidade do PSD na redução imediata do número de deputados, mais as reacções que provocou. Tudo chumbado! Foi uma das sessões mais funestas da nossa história parlamentar: cada partido só votou a favor do seu texto, reprovando todos os outros. A Assembleia reconhecia a necessidade e a urgência; mas preferiu, por unanimidade, largar a democracia a apodrecer. Esteve na encruzilhada do futuro; mas guinou para trás.
Em termos europeus, Portugal tem um rácio de eleitores por deputado que revela não ser o número de deputados um problema, muito menos prioritário. Nos países similares, com 8 a 10 milhões de eleitores (Portugal, Hungria, Bélgica, Grécia e República Checa), a Assembleia da República tem o rácio mais elevado de todos. Só um encolheu o parlamento nos últimos anos: a Hungria, que reduziu de 386 para 199 deputados. Mas a Hungria ficou, ainda assim, com um rácio mais baixo que Portugal: o nosso é de 42.108 eleitores/deputado, o húngaro ficou em 41.770. Esta é claramente uma falsa questão para montar o bloqueio.
Atabafado por uma oligocracia de directórios e interesses, o voto é cada vez menos a arma do povo. O cidadão eleitor conta muito pouco, porque o deputado eleito também vale cada vez menos. Agora, a Assembleia descobriu a última moda: deliberar ilegalmente, contando presentes e ausentes. Há votações em que se contam os 230 deputados. Tanto faz estar, como não estar no hemiciclo – o partido manda e notifica.
A reforma projectada em 1997 hiberna há vinte anos, soterrada pelos interesses dos que mexem os cordéis. Os cidadãos perdem; mas há sempre quem ganhe com a captura. O bloqueio é daqui que vem. Foi isso que a parou em 1998. É isso que a tolhe desde 1998. Só a cidadania pode abrir alas.
A SEDES e a Associação por uma Democracia de Qualidade trabalham para acordar a reforma eleitoral, fazendo o que o Parlamento deveria ter concluído em 1998. Hoje, vinte anos depois da frustração e do vaticínio por cumprir de António Costa, a notícia deste 25 de Abril é que está pronto o anteprojecto de Iniciativa Legislativa de Cidadãos que queremos levar à Assembleia da República com o apoio e a subscrição de 20.000 portugueses. É o nosso 25 de Abril, actualizado.
O nosso projecto prevê um total de 229 deputados, sendo 225 eleitos no território nacional e 4 pela emigração. Os círculos territoriais seguem a divisão regional e distrital, mas não podem eleger menos de oito deputados – agregam-se as circunscrições vizinhas até alcançar este número. Estes círculos territoriais elegem 210 deputados, podendo 105 ser eleitos em círculos uninominais. O duplo voto permitirá a cada eleitor escolher quer o partido que prefira, quer o seu deputado. Os outros 15 deputados são atribuídos pelo círculo nacional, para acerto da proporcionalidade entre as forças eleitas, corrigindo distorções e acomodando os mandatos suplementares e os complementares, próprios destes sistemas mistos, como na Alemanha.
Estou certo de que esta reforma fará logo baixar a abstenção para menos de 30%, embora sonhemos com níveis de participação acima de 80% como no fim da década de 1970. Mas mais importante que estes números é que os eleitores se reencontrem com a democracia e a sua representação numa Assembleia da República prestigiada, a funcionar muito melhor.
Os que se afastaram terão motivos para voltar. Quando cumprirmos a promessa constitucional de 1997, votar valerá muito a pena. Será mesmo a sério. De que estamos à espera?
José Ribeiro e Castro
Advogado e ex-líder do CDS
JORNAL "I", 25.Abril.2018
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